The New York Times
27 de junho de 2014
by Vanessa Barbara
SÃO PAULO, Brasil — Em fevereiro, durante um protesto contra a Copa do Mundo, um grupo de manifestantes estava fugindo de balas de borracha e gás lacrimogêneo quando topou com um bloco de Carnaval de rua. O pessoal carnavalesco procurou abrigo num bar e passaram a aplaudir a repressão policial, com gritos de: “Parabéns! Parabéns!”. Um homem xingou uma manifestante. Ele estava rindo e batendo palmas, os olhos injetados de uma mistura de raiva e alegria.
Cenas parecidas se repetiram pelo país nas últimas semanas. Tem-se a impressão de que não existe apenas uma seleção representando o Brasil nesse período, mas duas: uma formada pelos que apoiam a Copa e outra composta pelos que a criticam.
O lado favorável inclui fãs de futebol apaixonados pelo torneio, bem como os brasileiros alinhados com o governo federal. Eles alegam que se trata de uma ótima oportunidade para a economia e uma boa forma de promover o Brasil no exterior. Também acreditam que nosso país tem recursos suficientes para sediar o torneio e continuar investindo em serviços públicos como saúde e educação. Para eles, não faz sentido culpar a Copa do Mundo pelos nossos problemas domésticos. Eles geralmente usam a palavra “legado”.
“Ninguém, quando voltar do Brasil, sairá daqui e levará na mala estádio, aeroporto, obras de mobilidade urbana”, disse a presidente Dilma Rousseff. Para ela, isso permanece como benefício para a população.
Os apoiadores da Copa dizem que os protestos deviam ter acontecido sete anos atrás; hoje seria tarde demais para reclamar. Os que insistem em expressar seu descontentamento são vistos como inimigos do governo de esquerda – logo, os manifestantes são considerados fascistas ou terroristas.
O time do contra é representado pelos ativistas nas ruas. Eles estão praticamente sozinhos nessa causa. Precisam enfrentar a desaprovação da mídia e a repressão policial; durante o protesto de fevereiro, foram 2.300 policiais para 1.500 manifestantes – mais de um policial por pessoa. Naquele dia, 262 foram detidos.
A principal justificativa usada para reprimir ou desdenhar os manifestantes é considerá-los vândalos e criminosos. Alguns deles de fato utilizam táticas Black Bloc – são em geral muito jovens, por vezes anarquistas, que se vestem de preto e cobrem os rostos. A tática originou-se no interior de movimentos anticapitalistas e antigovernistas na Itália e na Alemanha, no fim dos anos 70. Consiste em aplicar técnicas de defesa como formar uma linha de frente para proteger os manifestantes e erguer barricadas, mas também pode envolver ações ofensivas como engajar-se em confrontos de rua e vandalizar alvos simbólicos como bancos e prédios governamentais.
É claro que os Black Blocs representam uma pequena parcela dos protestos – eu diria que aproximadamente 10%. A maioria dos manifestantes é pacífica e apenas deseja expressar publicamente sua desaprovação com o gasto excessivo de dinheiro público num evento privado. Eles observam que, sete anos atrás, o governo prometeu que “nenhum centavo de dinheiro público” seria gasto na construção ou reforma de estádios. Hoje, quase 97% do investimento nas arenas veio dessa fonte. Dos 25,5 bilhões de dólares que foram gastos com a Copa do Mundo, 85,5% foi retirado dos cofres públicos. Os manifestantes também criticam as remoções forçadas, as mortes dos operários na construção dos estádios, a isenção de impostos e a corrupção.
Em 12 de junho, dia da abertura da Copa, um protesto em São Paulo foi brutalmente reprimido antes mesmo de poder começar. A polícia deteve 33 cidadãos para “averiguação”, ainda que isso seja ilegal conforme a nossa Constituição. Advogados foram proibidos de acompanhar seus clientes, enquanto socorristas e observadores legais também foram agredidos. Inúmeros policiais removeram suas tarjetas de identificação.
A despeito de tudo isso, nossa mídia está cobrindo política como se fosse um evento esportivo. “Residentes 3 x 1 Ativistas”, dizia a manchete recente de um jornal de grande circulação, após um protesto em São Paulo – como se a realidade fosse uma partida de futebol entre a polícia e os manifestantes, com pessoas assistindo das arquibancadas.
O jornal relatou que moradores hostilizaram os ativistas e, em uma cidade, jogaram ovos neles. “Mete bala”, gritou um morador para a polícia, na sacada de um prédio. “Passa por cima deles”, berrou uma senhora de 70 anos, alegando que os brasileiros estavam passando vergonha diante do mundo. Um vendedor aposentado disse ao repórter do New York Times: “Eu só quero que o Brasil vença a Copa e cale a boca desses palhaços que estão protestando”.
Chegamos, portanto, a uma situação de Brasil vs. Brasil, um cenário competitivo em que um lado comemora os danos infligidos ao outro. O que eu não entendo é como os entusiastas da Copa poderiam vencer quando os manifestantes são reprimidos, já que seus próprios direitos civis estão em jogo. Quanto mais eles aplaudem a violação de direitos básicos como a liberdade de expressão e de reunião, mais todos perdem.
Isso ficou claro para mim durante o protesto de fevereiro, quando o bando carnavalesco estava aplaudindo a polícia debaixo do toldo do bar. De repente, sem motivos, a polícia atirou uma bomba de efeito moral dentro do estabelecimento. O homem que, momentos antes, insultara uma manifestante foi o primeiro a ser brutalmente empurrado por um policial.
Mas, já que estamos falando de esportes, vamos ao placar final: desde o começo dos protestos em São Paulo, há seis meses, até o momento em que a seleção brasileira concluiu sua primeira partida, tivemos um total de dez bancos depredados (vidraças quebradas) e duas concessionárias vandalizadas. No mesmo período, 505 pessoas foram detidas e 89 feridas (de acordo com o GAPP, o Grupo de Apoio ao Protesto Popular), incluindo um atingido por munição letal.
Ninguém vai ganhar essa partida.
Este texto foi publicado em inglês no The International New York Times do dia 26 de junho de 2014. Tradução da autora.