Valei-me, Zé da Cândida

Postado em: 13th agosto 2014 por Vanessa Barbara em Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de S. Paulo – Caderno 2
11 de agosto de 2014

por Vanessa Barbara

Encarregaram-me da missão de apresentar este novo espaço ao leitor, um terreno onde semanalmente serão cultivadas as mais viçosas crônicas para a apreciação do atilado visitante, seja este um regrado assinante do jornal ou uma alma curiosa em busca de distração; ocorre que sistematicamente me vejo suplantada em qualidade, estilo e retórica por uma figura bastante conhecida nas áreas residenciais da Zona Norte e em outros subúrbios: o Zé da Cândida.

Trata-se de um senhor que dirige pelas ruas um carro de produtos de limpeza com um alto-falante acoplado, através do qual uma gravação anuncia garbosamente “mercadorias da mais alta qualidade pelos menores preços. Aqui tem de tudo: tem cândida, Ajax, cloro, tem desinfetante com oito fragrâncias… Aqui tem tudo a preços de arrasar”, ele repete.

Gostaria de poder dizer, tal qual o Zé da Cândida, que “ninguém pode fazer concorrência à qualidade e aos preços que estamos oferecendo em nossos produtos”.

Mas estaria mentindo.

A verdade é que a minha Kombi de mercadorias pretende fornecer ao leitor um sortimento generoso de advérbios de modo, hipérboles, epístrofes e anacolutos, enquanto a dele “tem sabão dínamo, tem amaciante, tem removedor, sabão de coco, tem limpa-pedras, sabão em pó, álcool perfumado, pasta de brilho também; aqui tem xampu para carros, tem inseticida: acabe com as formigas de sua casa, aqui nós temos de tudo”, exclama. “Estamos oferecendo vassouras de piaçava, vassouras de pelo, vassouras caipiras, rodos, panos de chão, flanelas, e muito mais”.

Donde é possível afirmar que já saio em desvantagem com relação ao Zé da Cândida, que além de tudo é modesto: outro dia me informou que o texto da propaganda não é realmente dele. A fita cassete com a gravação original tem quase dez anos e foi concebida por um locutor anônimo, que gozava de grande popularidade entre os vendedores itinerantes da capital e do interior, mas faleceu há alguns anos.

Sua obra, porém, continua reverberando pelas ruas – coisa que poucos de nós, cronistas, podemos garantir com relação aos nossos textos.

Imortal, sua voz firme segue ecoando pelos quarteirões: “À senhora que é dona de casa, responsável pela economia do lar: não é sempre que passa na sua rua e para pertinho de sua casa um carro lotadinho de produtos de limpeza da mais alta qualidade. Mas venha logo! Nós não podemos ficar muito tempo, outras freguesias estão nos esperando.”

E termina, tal qual um Demóstenes dos desinfetantes: “Mesmo que a senhora não precise de nada, compre para guardar.”

Rogo, portanto, ao senhor ou à senhora que é responsável pela ilustração do lar: dê uma olhada nestas crônicas que passarão na sua rua, pertinho de sua casa. Mesmo que não precise de nada, leia para guardar.

Aqui teremos de tudo.