O Estado de S.Paulo – Caderno 2
25 de agosto de 2014
por Vanessa Barbara
Há vinte anos, sofro de uma afecção curiosa, uma moléstia pouco estudada que se caracteriza por uma intensa coceira nas mãos ao avistar um objeto redondo (Em casos mais graves, pode se manifestar diante de objetos ovais, cilíndricos e até mesmo quadrados, circunstância na qual se recomenda a internação imediata).
Apesar de ausente dos manuais médicos, a doença faz, todos os dias, centenas de vítimas: são pobres infelizes que vagam com o olhar perdido em torno de quadras de vôlei, ávidos por uma oportunidade de entrar em campo e participar de duas ou três jogadas, mesmo que à custa de roubar a bola alheia e perder o ponto.
Não importam a falta de habilidade, a baixa estatura ou a comorbidade com outras patologias; o vício pelo esporte arrasta consigo hordas de inocentes em busca de alívio temporário, ainda que estes acabem invariavelmente em clínicas de ortopedia, onde também buscam a alegria do tratamento com uma bola medicinal.
De fato, é possível identificar qual a etiologia e a natureza da afecção ortopédica do sujeito apenas olhando para seu estilo de jogo: se ele salta para atacar e se esborracha no chão, pode apostar que tem um problema nos joelhos. Se ele salta para bloquear e, quando cai, leva a mão às costas, é hérnia lombar. Se ele não tem força para atacar e começa subitamente a usar o braço esquerdo, se torcendo inteiro para golpear a bola, é bursite. Levantadores de longa data podem agir de forma a acusar uma retificação cervical grave.
Nada disso é motivo para abandonar o vício; pelo contrário, apenas serve para alimentá-lo. É por isso que os Sescs estão lotados de gente no banco do “próximo”, e por isso há quem acorde cedo e atravesse a cidade para bater uma bolinha inocente que pode se estender até a hora do almoço. Lembro nitidamente de partidas com gente semimorta se arrastando tarde afora, até bem depois de escurecer; lembro de uma vez em que acabou a luz na quadra e nós tentamos continuar a jogar. É com certa vergonha que me recordo de uma proposta coletiva feita ao porteiro do Macabi, que, exausto, implorou que fôssemos embora – se ele nos deixasse jogar só mais um pouquinho ganharia uma carona pra casa, veja só a cara desses infelizes, tenha piedade dessas almas adictas.
O anúncio de “último saque” é o cigarro derradeiro de um condenado à morte, e é por isso que nos arremessamos ao chão e defendemos o ponto final como se a nossa vida dependesse disso. Aliás, fazemos isso com todos os pontos, mesmo quando não está valendo nada e o nosso adversário é um trio de crianças de dez anos. “Café com leite” não existe. E o detalhe de estarmos jogando há vinte anos sem evoluir é praticamente irrelevante.
Consta que, um dia, existiram clínicas de tratamento para o vício, mas alguém teve a ideia de esticar um barbante entre dois postes e a coisa facilmente desandou.