The International New York Times
3 de outubro de 2014
por Vanessa Barbara
Doze anos atrás, ajudei a cassar um deputado. Pelo menos temporariamente.
A história teve início em 7 de setembro de 2002, dia da Independência do Brasil. Naquele feriado, minha avó de 68 anos me contou sobre o curso de informática que estava fazendo. Era gratuito, ela disse, e a professora era boa, mas algo estava muito errado.
O curso era patrocinado por um candidato a deputado estadual. Seu nome estava impresso em todas as páginas da apostila, ao lado do número que deveria ser pressionado nas urnas eletrônicas, e havia também uma grande foto dele sorrindo. Minha avó me mostrou o texto padrão para os exercícios de digitação: era uma breve biografia do parlamentar, um resumo de suas principais realizações e feitos mais nobres. Ela sabia tudo de cor e ficava repetindo mecanicamente – dava para ver que estava zangada.
Além disso, ela teve de apresentar o título de eleitor para se inscrever no curso. “Isso não é ilegal?”, ela me perguntou.
Na época, eu era estudante de jornalismo e queria mudar o mundo, então decidi investigar. Ela me convidou para a cerimônia de formatura, alguns dias mais tarde, e fui ao local com meu gravador e a câmera fotográfica. Gravei o discurso de formatura, no qual a professora pedia aos dez ou mais alunos que votassem em seu benfeitor, “pra ele continuar fazendo esse trabalho bonito que ele faz”. O candidato não estava lá, mas seu assessor aconselhou que os alunos “fizessem o que devia ser feito”, observando que uma das maneiras de valorizar o curso era “através do voto”. O presente de formatura era uma camiseta de propaganda política.
Enviei todas as provas para o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, uma ONG recém-criada que contava com o apoio de organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil. O grupo entrou com um processo contra o candidato por compra de votos, e o caso foi para o Tribunal Regional Eleitoral.
Nesse meio-tempo, ele foi eleito.
Quando minha avó e eu fomos finalmente chamadas para servir de testemunhas de acusação, anos depois, parte da família ficou com medo. Alguns ainda se lembravam de como era testemunhar na época da ditadura militar, apenas trinta anos atrás: inútil, perigoso e potencialmente letal. Outros insistiam em dizer que isso não era da nossa conta.
Mesmo assim, testemunhamos – diante do próprio candidato e de uma fileira extensa de advogados de defesa. Eles me perguntaram uma série de coisas como: “Quantas pessoas estavam presentes?” e “Depois de quanto tempo você soube?”, como se eu fosse abrir uma planilha e responder: “Trezentos e quinze, senhor; oito dias, nove horas e dezessete minutos. Horário de Brasília”.
O candidato foi inocentado por questões processuais, mas o caso foi para o Tribunal Superior Eleitoral, onde ele foi, por fim, condenado.
Poderia ser uma história de sucesso sobre duas improváveis heroínas cumprindo seu dever cívico, mas isso seria muito óbvio. Como o caso demorou mais de três anos para ser julgado, o deputado perdeu apenas o último ano de mandato. Nenhuma outra penalidade foi aplicada. Então, em 2006, ele se candidatou e foi eleito para mais quatro anos na Câmara. De acordo com a nossa legislação, continuava perfeitamente elegível.
Cinco anos atrás, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral liderou uma enorme campanha que levou à aprovação da lei da Ficha Limpa, que torna inelegíveis por oito anos os candidatos previamente condenados por decisão de órgão colegiado. Seria o caso do nosso deputado cassado, que continuava na política, mas ele de alguma forma encontrou uma forma de escapar à lei. Em 2010, perdeu as eleições, mas, como primeiro suplente do partido, substituiu outro deputado e assim cumpriu seu sétimo mandato, no qual criou gloriosamente o Dia Estadual do Ovo. (Que tramitou em regime de urgência.)
Hoje ele concorre novamente a deputado estadual.
Isso resume o atual desencanto dos brasileiros com a política, e também o cinismo da minha avó sobre o assunto. Hoje com 80 anos, ela decidiu que não irá mais votar. (No Brasil, o voto é obrigatório para cidadãos de 18 a 70 anos.)
Nossa história recente aponta para decepções parecidas. Em 1989, o Brasil teve suas primeiras eleições diretas para presidente desde a época da ditadura militar. Dois anos depois, o presidente eleito foi obrigado a renunciar após acusações de corrupção. Fizemos uma nova Constituição em 1988, e era muito boa. Mas muitos dizem que “não pegou”. Em 2002, elegemos nosso primeiro presidente de esquerda oriundo da classe operária, e que mais tarde foi reeleito. Então parte do governo mostrou-se envolvida num esquema de corrupção, em 2005.
Agora estamos prestes a votar de novo para presidente, no próximo dia 5 de outubro, mas desta vez não há grandes expectativas.
A noção de leis aprovadas que simplesmente “não pegam” e de políticos desonestos que continuam a ganhar eleições a despeito de todas as evidências contrárias alimenta a nossa desilusão coletiva. As coisas parecem acontecer (ou não) a despeito dos nossos esforços, de formas que não conseguimos compreender. Ano passado, milhões de pessoas foram às ruas protestar contra a má qualidade dos serviços públicos, mas pouca coisa mudou – se é que isso chegou a ocorrer. Ano após ano, nossos políticos apenas criam mais Dias do Ovo e aumentam os próprios salários.
Hoje a maioria dos brasileiros acredita que nossa democracia representativa está apodrecida. Sentem que nada vai mudar, não importa o que façam. Temo que isso seja verdade.
Mas eles desistiram até de tentar.
Este texto foi publicado em inglês no International New York Times do dia 3 de outubro de 2014. Tradução da autora.