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O Cruzeiro do Sul, a Nebulosa Carina e a Via Láctea, vistos do Quênia. Créditos: Babak Tafreshi / National Geographic Society, via Corbis

 

 

 

 

 

The New York Times
28 de dezembro de 2014

Por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil — Meses atrás viajei para Fernando de Noronha, uma ilha na costa nordeste do Brasil, apenas quatro graus ao sul do Equador. No caminho para o restaurante, notei algo estranho no céu noturno: era Ursa Major, uma constelação que os americanos chamam de Big Dipper [algo como “Colherona”] e os britânicos de Plough [“Arado”].

A Big Dipper, comum no norte, é raramente vista no Hemisfério Sul, embora um amigo jure ter avistado a constelação uma vez, do alto de uma montanha em São Paulo. De acordo com ele, estava colada ao horizonte.

Tenho inveja de quem possui a Big Dipper. Também tenho ressentimento daqueles que podem ver a aurora boreal, fenômeno que testemunhei recentemente numa viagem a Islândia.

Mas é só.

O astrônomo neerlando-americano Bart Bok costumava dizer que “o Hemisfério Sul possui todas as coisas boas”. Ele provavelmente se referia ao fato de que temos “os dois melhores aglomerados globulares, as maiores e mais brilhantes galáxias exteriores visíveis a olho nu, a maior nebulosa difusa, a maior nebulosa escura e uma Via Láctea brilhante o suficiente para produzir sombras em certas épocas do ano, a partir de nosso céu escuro e límpido”, nas palavras do jornalista Luke Dodd.

Aqui a porção central da Via Láctea está muitas vezes posicionada exatamente no alto do céu, visível de um horizonte a outro como uma ferida aberta e brilhante. Também temos uma vista exclusiva de duas galáxias vizinhas à nossa, a Pequena e a Grande Nuvem de Magalhães. Ambas têm a declinação — medida astronômica que designa a distância do equador celeste — de quase 70 graus sul e são circumpolares, o que significa basicamente que são visíveis apenas nessa metade do planeta. (Um viva ao Terceiro Mundo!)

É verdade que, assim como a Ursa Major, os habitantes do norte têm para si a constelação Cassiopeia e Vega, a quinta estrela mais brilhante do céu noturno. Vega foi usada como base para a escala de magnitude aparente, que mede o brilho das estrelas, e para calibrar telescópios.

Ainda assim, o Hemisfério Sul detém as três estrelas mais brilhantes do céu noturno: Sirius, Canopus e Alpha Centauri. Canopus pertence à constelação Carina, notória por dois motivos: a Nebulosa Carina, quatro vezes maior e mais brilhante do que a Nebulosa de Orion, e o sistema estelar Eta Carinae, que irá explodir como supernova ou hipernova em algum momento entre hoje e os próximos mil anos. (Um cientista falou à BBC que a explosão poderá ser tão intensa a ponto de ser vista durante o dia, e de permitir a leitura de um livro com seu brilho durante a noite.) Alpha Centauri e Beta Centauri, esta última a décima-primeira estrela mais brilhante, são chamadas de “Guardiãs da Cruz”, pois apontam para a constelação Crux (popularmente conhecida como Cruzeiro do Sul). Crux é a menor das 88 constelações, mas uma das mais distintivas. É visível em praticamente qualquer época do ano em todo o Hemisfério Sul.

Junto à borda leste de Crux se localiza a Nebulosa do Saco de Carvão, um trecho profundamente escuro onde nascem estrelas. Nas proximidades do Saco de Carvão pode-se enxergar a Caixinha de Joias, um aglomerado de aproximadamente cem estrelas vermelhas, brancas e azuis, visíveis com a ajuda de binóculos. Há também Omega Centauri, o maior e mais brilhante aglomerado globular, com suas estrelas nas cores topázio, laranja e vermelho.

Constelações como Sagittarius e Scorpius são vislumbradas com grande facilidade no Hemisfério Sul; esta última se localiza no centro da Via Láctea, bem no alto do céu de São Paulo. É possível identificar o escorpião do aguilhão às quelíceras, incluindo a supergigante vermelha Antares, localizada no coração do animal.

Neville H. Fletcher, hoje professor emérito da Australian National University, disse certa vez: “No campo da astronomia costuma-se observar — geralmente são invejosos habitantes do norte — que Deus, ao criar o universo, localizou perversamente as regiões mais interessantes da galáxia no Hemisfério Sul, mas todos os astrônomos no Norte”. Como resultado, pode ser mais difícil identificar daqui as formas pelas quais as constelações foram originalmente nomeadas.

Um exemplo clássico: Orion, o caçador, não está orgulhosamente de pé, mas dando uma estrela. Também o corajoso leão da constelação Leo parece mais uma tartaruga de ponta-cabeça. Ou talvez uma lâmpada mágica. Os irmãos de Gemini estão em queda livre. Boötes, o trabalhador com arado, e o cão de Canis Major estão ambos tropeçando. De modo que mais criatividade é exigida de nós, sul-americanos, africanos, australianos, neozelandeses e outros sortudos habitantes do Hemisfério Sul.

Há uma citação atribuída a Bart Bok, que nos anos 50 deixou Harvard pela Austrália e às vezes dava palestras a membros da Royal Astronomical Society, de Londres, que resume bem a questão: “Cavalheiros, vocês vivem sob o lado errado do céu!”.

 


Colunista do jornal brasileiro O Estado de São Paulo, editora do site literário A Hortaliça e colunista de opinião do NYT.

Este texto foi publicado em inglês no The New York Times do dia 29 de dezembro de 2014. Tradução da autora.