O Estado de São Paulo – Caderno 2
26 de janeiro de 2015
por Vanessa Barbara
Poucas coisas me parecem tão misteriosas quanto a transição entre boa tarde e boa noite. É de se espantar que os primeiros criadores das línguas humanas tenham insistido em manter esse dilema para todas as gerações vindouras.
Em tempos de horário de verão, a trama se complica. Se ainda não escureceu, podemos chamar de noite? A partir de que horas “boa tarde” vira “boa noite”? Talvez seja às seis em ponto, às seis e um, ou quem sabe exista um protocolo oficial baseado no azimute do Sol e na amplitude ortiva vezes o fuso horário menos oito – protocolo vastamente conhecido pelos nossos barbeiros e taxistas, com quem nunca se deve discutir.
Para o resto de nós, o drama é cotidiano. Conheço um amigo que, pouco depois do meio-dia, resolveu falar “boa tarde” para o porteiro. “Ele me deu bom dia”, contou, de forma dramática. “Repeti ‘bom dia’, claro, ele parecia mais decidido do que eu.”
Entendo perfeitamente. É sempre constrangedor ser corrigido em nossas saudações cotidianas, sobretudo quando são sete da noite e você diz “bom dia!” para o psiquiatra. (Provavelmente ele fará algumas anotações a respeito.)
Uma das saídas é afirmar, de forma singela: “Aposto que um monte de gente já te deu bom dia hoje, eu já estou dando bom dia para amanhã, para garantir”. Ou a clássica: “É bom dia porque eu não almocei ainda, né?”.
Depois da meia-noite, então, o cenário vira terra de ninguém. Faz-se igualmente aceitável proferir “bom dia” ou “boa noite”, sendo, porém, questionável a escolha de “boa tarde”, ainda que em nome da autonomia dos seres e da defesa das liberdades individuais.
(Lembrança aleatória: certa vez, quando eu tinha uns 12 anos, uma bola de futebol desceu a ladeira e foi interceptada por uma senhora, que a devolveu. Como forma de agradecimento, um dos meninos exclamou: “Muito obrigado! E tenha uma boa vida”.)
Como se vê, a questão é espinhosa. Muito pode ser dito em defesa dos atendentes de telemarketing, que, do interior de suas P.A.s (posições de atendimento), não conseguem enxergar o mundo lá fora e, portanto, estão autorizados a escolher o período que lhes convêm. (A esse respeito, muitos garantem que o trabalho é tão massacrante que, em casa, continuam atendendo ao telefone da seguinte forma: “Santana Laboratórios, Sheila, bom dia”.)
Pessoas mais inseguras optam pelo “olá” ou por um aceno de cabeça. Outras se recusam a participar desse jogo doentio. Lembro de uma amiga que, às seis da manhã de um dia frio, recebeu bom dia de outrem e respondeu, furiosa: “Bom dia pra quem?”.