Trabalho nas horas vagas

Postado em: 23rd fevereiro 2015 por Vanessa Barbara em Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Caderno 2
23 de fevereiro de 2015

por Vanessa Barbara

Outro dia acordei cedo, tomei café, li o jornal, botei uma roupa séria e fui jogar “Papers, Please” [“Os documentos, por favor”].

Lançado em 2013, o jogo de computador se passa nos anos 80 e tem como cenário a cabine do posto de fronteira de uma república imaginária chamada Arstotzka. O herói é o funcionário responsável pelo controle de imigração do país, cuja função é analisar os documentos dos recém-chegados, conferindo ou negando acesso a Arstotzka. Seu objetivo é barrar elementos indesejáveis.

Basicamente é isso. Por horas a fio, o jogador se diverte em comparar documentos e vistos, checando os locais de emissão, datas de expiração, certificados de vacinação, nome, sexo, foto, duração e propósito da visita. Então carimba o passaporte com os dizeres “aprovado” ou “negado”. Se deixa algum detalhe escapar, é advertido ou punido com um desconto no salário.

É bem parecido com o que chamamos de trabalho.

Conforme a história vai se desenvolvendo, mais exigências e particularidades entram em jogo, por exemplo: caso o visitante esteja muito acima do peso registrado nos papéis, é preciso submetê-lo a uma radiografia em busca de armamentos ou drogas. Se os nomes não batem, faz-se necessário tirar as impressões digitais do infeliz. Alguns dias de expediente são abreviados por ataques terroristas, e, após tais ocorrências, há um veto geral para os cidadãos de alguma república vizinha (Obristan, Kolechia, Antegria). Há também listas de criminosos procurados e uma infinidade de minúcias para checar, sobretudo quando se sabe que o tempo é curto e o salário está relacionado à produtividade.

Mais tarde, o herói ganha permissão para prender suspeitos e até alvejar terroristas que se aproximem da fronteira. Há ofertas de suborno, pilantras recorrentes como Jorji Costava e um grupo de rebeldes encapuzados lutando pela democratização de Arstotzka, que afinal de contas é governada por um regime ditatorial. Você pode ou não se meter nisso. Também pode liberar a entrada de imigrantes por piedade, mas terá que arcar com as consequências.

Eu, por exemplo, escolhi ser bovinamente fiel à minha gloriosa pátria e agi da forma mais fascista possível – fascista e incompetente. Escorracei os militantes pela liberação do povo, esmaguei asilados políticos, aceitei suborno dos meus superiores e segui estritamente as regras da fronteira. Lá pela segunda semana de trabalho, meus erros constantes acabaram por reduzir meu salário. Naturalmente deixei morrer meu filho, minha mulher, minha cunhada e meu tio. (Os inúteis viviam doentes e faziam questão de ter aquecimento e comida.) Como resultado, ganhei uma promoção e subi na vida.

Um amigo meu se disse horrorizado com a minha ética de trabalho e afirmou, orgulhoso, que decidiu colaborar com o movimento rebelde e libertou Arstotzka da tirania.

Fingi que não ouvi e chamei o próximo da fila.