O Estado de São Paulo – Caderno 2
9 de março de 2015
por Vanessa Barbara
Eram aproximadamente onze da noite quando um rapaz e uma moça entraram no 118-C. Estavam cobertos de tinta colorida, os cabelos gosmentos, as roupas sujas. Ficaram em pé junto à porta de saída, atravancando a passagem, e ela começou a falar em voz alta, como se anunciasse para o ônibus inteiro:
“Ai, eles me obrigaram a beber um troço no-jen-to, tinha até pimenta lá dentro!… Pimenta! E botaram as meninas pra andar de quatro numa fileirinha, fazendo elefantinho, sabe? Foi hilário!”
A cada meia dúzia de frases, a moça soltava uma risada exagerada, quase histérica, que ecoava pelas portas e janelas do coletivo. Pelo que pude apurar, era o dia mais feliz da vida dela. Os veteranos, além de forçar a tal bebida goela abaixo dos animadíssimos calouros, jogaram ovo e farinha na cabeça deles e os fizeram pedir dinheiro no farol para pagar uma cervejada.
Aumentando ainda mais o tom de voz, a moça descreveu as conversas que travou com os motoristas dos carros durante o trote no semáforo – “Acredita que ele pediu o meu telefone? Eu dei, né, mas falei que tinha que sair correndo porque os veteranos estavam me esperando com o dinheiro”.
O rapaz pouco falou, mas confirmou haver passado pelas mesmas provações e deu a entender que também se achava no ápice de sua plenitude histórica. Mas a moça mal escutava o interlocutor, ocupada em divulgar aos passageiros todos os grandes momentos do dia – como se falasse de um ato de heroísmo ou de um instante de iluminação mística em que houvesse enxergado a face do Criador frente a frente, e tudo lhe fosse perdoado.
“Tinha até mandioca no troço que me fizeram beber!”
“Hãm?”
“É, tinha mandioca! E tipo, eu estou muuuuuito suja, meu cabelo está grudento, e lá em casa sei que não vai ter água, então imagina! Vou ter que dormir assim! Ah!”, e gargalhava.
Sobre a faculdade em si, disse apenas que no dia seguinte as aulas começariam.
“Então, tem muita gente certinha, um pessoal que leva a sério, não tem quase ninguém tipo doidinha que nem eu. Hoje deixei o meu caderno com um menino que eu nem conhecia, só perguntei assim: Você vem amanhã? Leva o meu caderno? E deixei com ele, tipo, sei lá se ele vai amanhã… Ah, mas tinha uma menina que também é tipo doidinha que nem eu.”
Cansados, os passageiros tentavam não escutar. Mas não havia como: quase gritando, a moça declarou que neste semestre teria aulas de anatomia, biologia e “cintologia”. Ficou felicíssima ao descobrir que não teria mais que estudar matemática. E repetiu, embora ninguém tivesse perguntado:
“Pimenta! Tinha até pimenta no troço! Eles me obrigaram a comer pimenta, e me forçaram a tomar cachaça… E sabe o que mais? Eu vou me vingar. Já disse pra todo mundo que vou fazer igual com os bichos do ano que vem!”.