The International New York Times
23 de março de 2015

por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil — Numa sexta-feira do mês passado, acabou a luz na favela da Palmeirinha, no Rio de Janeiro. Três adolescentes negros conversavam na calçada. Um deles correu e os outros o seguiram, rindo. Nesse momento, a polícia chegou atirando. Chauan Jambre Cezário, de 19 anos, foi gravemente ferido no peito. Alan de Souza Lima, de 15 anos, morreu no local com o celular na mão – ele captou tudo em vídeo, incluindo seus últimos momentos.

De acordo com um relatório oficial divulgado no dia seguinte, os garotos foram atingidos durante um confronto com a PM. Os policiais teriam supostamente encontrado duas armas na cena do crime e autuaram Cezário em flagrante por resistência à prisão. O rapaz, que vende chá gelado na praia de Ipanema, foi levado ao pronto-socorro e algemado à maca do hospital.

Dias depois, o vídeo de nove minutos veio a público. As imagens claramente mostravam que os adolescentes não portavam armas e que tampouco houve confronto ou resistência. Segundos após os tiros, um policial perguntou por que eles estavam correndo, ao que Cezário, sangrando, respondeu: “A gente estava brincando, senhor”.

As acusações foram retiradas, mas a experiência de Cezário e a morte de Lima refletem um histórico de violência contra jovens negros no Brasil.

Os afro-brasileiros – indivíduos que se auto-identificam como negros ou pardos – compõem 53% da população do país, ou 106 milhões de indivíduos. É a maior população negra fora da África e a segunda maior depois da Nigéria. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), um adolescente negro ou pardo de 12 a 18 anos no Brasil possui um risco quase três vezes maior de ser vítima de homicídio do que seu compatriota branco ou amarelo; segundo o último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os negros correspondem a 68% das vítimas de homicídio.

Eles também são as principais vítimas da polícia: um estudo da Universidade de São Carlos mostrou que 58% das pessoas mortas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo eram negras. Os afro-brasileiros compreendem 62% da população carcerária do Brasil.

“Ao passar por uma viatura, o coração gela”, afirmou Luiz Roberto Lima, um fotógrafo negro que mora no Rio de Janeiro e viveu nas ruas durante a adolescência. “Podem matá-lo por você estar na rua, por estar defendendo os seus direitos e também por prazer. Se você não for criminoso e não tiver passagem pela polícia, não tem problema: forja-se”. Ele se refere aos infames “autos de resistência”, que ocorrem quando as vítimas são mortas durante um suposto confronto com a polícia, mas não há maiores investigações – é o que provavelmente aconteceria na Palmeirinha se não fosse o vídeo gravado pelo celular.

A desigualdade racial no Brasil tem claras raízes históricas. A escravidão durou aproximadamente três séculos, do início do século XVI a meados do século XIX, quando 5 milhões de escravos foram trazidos da África para o Brasil – aproximadamente onze vezes mais do que para a América do Norte. O país foi o último do hemisfério a abolir a escravidão, em 1888. Mas muitos afro-brasileiros continuam confinados à margem da sociedade; atualmente, quase 70% dos habitantes que se encontram abaixo da linha da pobreza são negros. E eles continuam quase que totalmente ausentes dos postos de poder – todos os 39 ministros do novo gabinete da presidenta Dilma Rousseff são brancos, exceto um: a chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

Numa entrevista recente, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie afirmou que “o Brasil está em negação sobre a questão racial”. Ela se surpreendeu ao perceber, durante uma visita em 2008, que os brasileiros não tocam no assunto. E acrescentou: “Não consegui deixar de notar como raça e classe estão conectadas no Brasil. Eu ia a restaurantes bons e não via uma única pessoa negra.”

Essa observação pode ser confirmada através daquilo que alguns chamam de “teste do pescoço”. Criado pelo funcionário público Francisco Antero e pela professora de história Luzia Souza, o teste consiste em contar o número de negros e brancos em diversos papéis, em diferentes circunstâncias. Por exemplo: estique o pescoço para dentro de uma joalheria e conte quantos vendedores são negros. Ou dê uma espiada num colégio particular e conte quantos alunos e professores são brancos, e quantos negros estão varrendo o chão.

Apliquei recentemente o teste do pescoço numa sorveteria em um bairro nobre de São Paulo. Cinco dos sete funcionários eram negros, em comparação a apenas um entre trinta clientes – e acho que ele era estrangeiro. Em outro momento, num ônibus urbano, eu era um dos três únicos brancos entre mais de vinte passageiros.

Nos últimos anos, na tentativa de mudar esse cenário, o governo instaurou alguns programas de ação afirmativa, tais como reservar vagas no serviço público e nas universidades para candidatos pertencentes a minorias raciais. Também emitiu títulos parciais de terras para nove comunidades quilombolas, formadas por descendentes de escravos. Embora esse direito seja garantido pela Constituição, apenas 5,8% das 214 mil famílias que moram em quilombos o receberam.

O programa de cotas mais antigo do país, mantido pela Universidade de Brasília, existe há dez anos e ainda é alvo de fortes críticas. Um de nossos maiores jornais mantém um posicionamento editorial firme contra as cotas raciais nas universidades, argumentando que seria suficiente desenvolver um sistema de seleção que estimule a diversidade socioeconômica. Os críticos muitas vezes enxergam as cotas como um racismo reverso, ou temem que elas incitem o ódio racial em nossa imaginária democracia racial, onde brancos e negros brincam lado a lado nas ruas sem tomar tiros no peito.

É como disse Adichie: o Brasil continua em negação.

 


Cronista do jornal O Estado de São Paulo, editora do site literário A Hortaliça e colunista de opinião do NYT.

Este texto foi publicado em inglês no The International New York Times do dia 23 de março de 2015. Tradução da autora.