O Estado de São Paulo – Caderno 2
27 de julho de 2015
por Vanessa Barbara
Às vezes conto para as pessoas que sofro de uma doença de sono que me obriga a dormir, no mínimo, dez horas por dia. Dez a doze. Menos que isso, é praticamente impossível – a saída seria passar o dia à base de medicamentos estimulantes como a modafinila para me manter alerta. E nem isso costuma funcionar bem.
Conto que tenho uma doença que me obriga a dormir dez horas por dia, e o que sempre ouço é: “Quem me dera poder dormir dez horas por dia!”.
Se o leitor pensou isso, faça o favor de voltar ao primeiro parágrafo: eu tenho uma doença. Não foi uma escolha. Eu bem que gostaria de poder dormir apenas seis ou oito horas por dia. Tenho, além disso, um “atraso de fase”, ou seja, só sinto sono depois das três ou quatro da madrugada, o que só faz piorar a situação. Além de dormir menos, eu também gostaria de almoçar como as pessoas normais, de marcar compromissos pela manhã, de fazer planos do tipo “acordar cedo, sair para nadar e depois ir para o trabalho”, de ter um emprego padrão e de ver a luz da manhã – ela é completamente diferente da luz da tarde.
Só que não posso.
E não foi por falta de tentar. Mas, como dizia a minha médica, numa analogia inesperada, ter uma doença crônica é como nascer morena e querer ser loira – você até pode pintar o cabelo, mas a raiz vai continuar nascendo escura. É como ser diabético e gostar de doces, ou como ser hipertenso, ou como não ter uma perna; existe um terreno muito reduzido dentro do qual você pode tentar manobrar e procurar paliativos, como tomar modafinila nos dias piores, mas basicamente não se pode fazer muita coisa a respeito além de conviver com o problema. E, vez ou outra, lidar com o fato de que vou acordar com o sol se pondo e ficar mal por ter perdido o dia.
Mesmo explicando tudo isso, ainda ouço: “Vidão, hein?”, ou: “Eu também dormiria o dia todo, se pudesse”. Ou pior: “O organismo se acostuma. Eu mesmo não gostava de acordar cedo, mas arrumei um emprego e agora acordo às seis”.
Ao que parece, há pessoas absolutamente incapazes de se colocar no lugar do outro, e que medem o mundo de acordo com a sua própria régua. Ou seja: se eu consigo acordar cedo todos os dias, é certamente por mérito próprio, então devo julgar aqueles que não conseguem usando o meu parâmetro. Se eu consegui comprar uma casa com o meu salário, não há motivo para que os outros não consigam; se eu consegui amamentar o meu filho até os dois anos de idade, as outras mulheres é que são incompetentes. E por aí vai. Cansei de escutar conselhos sobre higiene do sono dados por quem nunca teve problemas para dormir, ou por quem teve apenas um pouco de insônia nesta vida.
Para essas pessoas, uma novidade: admitir que há mais sorte do que mérito na maioria das coisas que conseguimos fazer não machuca. E nos ajuda a ter mais empatia com aqueles que não precisam do seu palpite, mas da sua compreensão.