O Estado de São Paulo – Caderno 2
7 de setembro de 2015
por Vanessa Barbara
Nós começamos falando de sorvetes: eu recomendei um de pistache e ele achou que tinha gosto de antibiótico, mas tomou até o fim, e eu revelei sem pudor a minha total incapacidade de apreciar um gelado sem terminar a noite com pingos de chocolate até naquela dobrinha de dentro do braço. (Pingos esses que permaneceriam, em forma de crosta, até um encontro no dia seguinte, num episódio revelador das nossas diferenças higiênicas e na técnica de tomar sorvetes.)
Não sei bem como tudo se deu cronologicamente, mas emendamos numa conversa longuíssima sobre feminismo, na qual se revelaram certas divergências, e em outra sobre o paradoxo de Olbers, na qual se discutiu por que a noite é escura. Eu tentei mostrar a constelação de Scorpius no céu de inverno, mas quase fomos atropelados e ele não acreditou que eu entendesse patavinas de astronomia. Um dia, quase o cooptei para a luta armada e por pouco ele não conseguiu fazer com que eu entendesse como funciona um acelerador de partículas.
Nos anos que se seguiram, ampliamos ainda mais o leque de temas para debate: mercado financeiro, lasanha, eleições, relatividade geral, Kant, música pop, legalização das drogas, pipoca doce, baiacus, corrida espacial. A existência de Deus poderia ser debatida pouco antes da exibição de um gif animado de cabras montanhesas escalando em ângulos impossíveis ou de um vídeo de gatos dando voadoras em bebês. Já cheguei a acordá-lo no meio da madrugada com argumentos novos sobre um assunto. Ele revelou que não gostava muito de crônicas e eu disse que não achava graça em ficção científica; ele não sabia que Neil Armstrong foi escoteiro e que Buzz Aldrin foi o primeiro homem a fazer xixi na Lua. Calmo e racional, ele me ensinou frases em árabe e em alemão, e nós passamos horas brincando de testar coisas bizarras no Google Trends.
Certa vez, critiquei-o severamente pela leviandade na hifenização das palavras e insinuei que ele precisava de um dicionário de regências nominais. Quanto a mim, fui fonte de inomináveis decepções: em um período de poucos dias, confundi Sagan com Asimov, falei que cobras eram anfíbios e achei que um fóssil de mamute fosse o de um “dinossauro com chifre”.
Não raro, costumo procurá-lo com o pedido: “Me ajuda a pensar numa coisa?”, e passamos o jantar em animada assembleia. Defendemos posições opostas com a mesma facilidade com que trocamos de lado, ou então com que admitimos estar pensando naquilo pela primeira vez.
Acho que, até hoje, ainda estamos numa acalorada continuação daquela primeira conversa sobre sorvetes, como se os mistérios do Universo estivessem ao nosso alcance e representassem a extensão de uma casquinha; sendo estes infinitos, declaro interminável a nossa fonte de assuntos a discutir.
Ele vai achar meio brega essa crônica e eu vou contra-argumentar com uma série de raciocínios falaciosos e sem fundamento, mas ainda assim ele vai guardar o jornal.