O Estado de São Paulo – Caderno 2
14 de setembro de 2015
por Vanessa Barbara
Pode acontecer após um jantar na casa de amigos, quando o anfitrião se despede das visitas e solta:
– Obrigado por ter vindo, hein. E desculpa qualquer coisa.
No inventário das gentilezas sociais e da etiqueta cotidiana, não há expressão mais insólita. Criada em meados do século passado por uma tia insegura, “Desculpa qualquer coisa” é o epítome da vontade de agradar; é uma expressão-curinga utilizada sempre que a noite foi perfeita, mas se reconhece a tênue possibilidade de alguém ter se ofendido com aquele seu abridor de lata em forma de sardinha, com a quantidade excessiva de cebola na comida ou com um comentário mal colocado que soou como se você estivesse justificando o extermínio do povo cigano.
Por via das dúvidas, na hora da despedida, o anfitrião faz um apelo geral pela anistia: “Desculpa qualquer coisa”. Como se a visitante horrorizada com a quantidade de piadas machistas praticadas durante a refeição voltasse assim apaziguada para casa, depois do vago pedido de armistício quanto à ofensa perpetrada contra si e todos os 3,5 bilhões de mulheres que sofrem violência diariamente e são vítimas de agressões do patriarcado desde o início dos tempos.
No caso, o diálogo mais provável é o seguinte:
– Desculpa qualquer coisa. [Na verdade, me importo tão pouco com você que nem saberia dizer o que fiz de errado.]
– Imagina. Foi um prazer! [Seu canalha. Colei meleca embaixo da mesa.]
*
Outra expressão que simula preocupação com o bem-estar coletivo, mas denota profundo desdém pelos sentimentos alheios é a temida “fazer desfeita”. A ameaça da desfeita já obrigou seres humanos, outrora dignos, a consumir meio quilo de galantina de frango, uma porção de chouriço, dois pratos de sopa creme de nabo, pé de galinha e sagu, só para agradar um anfitrião insistente. O fato de você já ter almoçado ou ser vegetariano não influi absolutamente em nada na chantagem emocional, que é a um só tempo hostil e choramingante. Se por acaso a vítima apela para o clássico: “Eu tenho alergia”, o carrasco da sociabilidade pode argumentar que “só um pouquinho não vai fazer mal”, enquanto serve, à revelia, uma porção generosa de ensopadinho de choque anafilático.
“Eu não gosto” está absolutamente fora de questão.
A coação sob a lógica do constrangimento serve também para eventos sociais mandatórios, como aniversários, formaturas, festas de debutante, chás de bebê, batizados e casamentos. Quem não pode ou não deseja comparecer entra automaticamente no âmbito da afronta, e por lá permanece para toda a eternidade.
Uma boa pedida é levar, sempre, uma vida de desfeitas.