O Estado de S. Paulo – Caderno 2
28 de setembro de 2015
por Vanessa Barbara
Há casos bem mais graves: conheço a história de uma inglesa de 28 anos que acorda todos os dias achando que é 15 de outubro de 2014, dia em que escorregou, bateu a cabeça e perdeu a capacidade de criar novas memórias. E de outra inglesa, de 35 anos, que sofreu um derrame e simplesmente perdeu 13 anos de lembranças – quando acordou, no hospital, não reconheceu o marido e nenhum dos três filhos, além de estranhar imensamente o fato de seu irmão estar calvo.
Em comparação a esses casos, não passa de um leve incômodo o que às vezes ocorre comigo: esqueço por completo o enredo de livros e filmes, ainda que os tenha assistido nesta década e gostado muito. Um exemplo: outro dia assisti de novo ao longa Operação França, que devo ter visto pela primeira vez há menos de dez anos, e as três coisas que lembrava dele eram as seguintes: a) que adorei o filme; b) que é com o Gene Hackman; e c) que nele há uma cena lendária de perseguição.
Qual foi o meu espanto ao perceber que a perseguição se dava entre um carro e um trem do metrô, detalhe de menor importância que sumiu por inteiro da minha memória. Todo o resto do enredo era uma incógnita: por exemplo, qual era a profissão do personagem de Gene Hackman? Na minha cabeça, ele podia ser mímico, motoboy, cientista nuclear, dançarino. (Resposta: policial.) A cidade era Chicago ou San Francisco? (Resposta: Nova York.)
Isso acontece com praticamente todos os filmes e muitos dos livros que passam pelas minhas mãos: de Os irmãos Karamazov, me recordo que li na praia e que Alieksiéi tinha uns probleminhas com o pai; de Cama de gato, sei apenas que é muito engraçado; de Paralelo 42 não lembro nada. (Acho que a capa era verde.) Guardo sobretudo sensações: gostei de tal filme, odiei aquele outro, fiquei com pena de um personagem que não lembro qual é. De Amnésia, aliás, só guardei o tema.
Assistir várias vezes é útil, mas não resolve completamente o problema: já repassei a série The Wire três vezes, e ainda me surpreendo imensamente com certas mortes. “Você não lembrava disso? Sério que você não tinha a menor recordação disso?”, me perguntam. Acho péssimo quando decido ver de novo algum filme e a pessoa ao meu lado, com quem já assisti àquilo uma vez, diz, animadamente: “Esse é ótimo! Lembra daquela cena em que a moça ajoelha na terra e arranca um rabanete?”. E eu respondo: “Não. Por favor, não me conte.”
Acho que sou a única criatura do mundo vulnerável a spoilers de séries que já vi e, pior, vulnerável a spoilers vindos de mim mesma, o que às vezes ocorre quando leio uma resenha antiga que publiquei em algum lugar. Outro dia, fui pesquisar sobre um assunto e encontrei um texto que me causou boa impressão por ser particularmente elegante e altivo. Só lá pelo final vi que era meu.
Nesse ritmo, está próximo o dia em que lerei, com surpresa, os romances que eu mesma escrevi.