O Estado de São Paulo – Caderno 2
7 de dezembro de 2015
por Vanessa Barbara
Outro dia falei de expressões automáticas que fazem boa figura no âmbito do congraçamento social, mas que não têm nenhum sentido se você pensa bem nelas.
Um exemplo clássico acontece quando uma visita se apresenta à sua porta e, enquanto ela limpa os pés educadamente no capacho de entrada, você exclama:
– Entre, por favor. E não repare na bagunça.
Dizendo isso, você fatalmente chama a atenção para a montanha de meias sujas no chão, as fatias de pizza de anteontem largadas pelo sofá, o chorume escorrendo pelos ralos e aquele rato morto que você esqueceu de varrer do meio do caminho. Talvez, se não fosse isso, a pessoa nem notaria.
Em todo caso, lembrando-se das regras de etiqueta transmitidas oralmente de geração em geração, você afasta as toalhas úmidas e abre um lugar no sofá, dizendo:
– Fique à vontade. A casa é sua.
É outra frase inócua que não tem nem sombra de sentido literal, já que obviamente a casa não é da visita, nem se espera que ela fique exatamente à vontade – botar os pés na mesa de centro não é lá um gesto apropriado, bem como achar que está muito quente e decidir ficar só de cuecas.
Mas a sequência de gentilezas obrigatórias é como um churrasco de confraternização que não tem fim, e depois que o visitante se instala, você oferece um refrigerante, uma cerveja, um suco (ainda que não tenha nada disso na geladeira). Como falei anteriormente, está muito calor, e a visita, que também aprendeu boas maneiras com uma tia-avó, diz que só gostaria de uma “água gelada, por favor”.
Só que, neste caso hipotético, você mora na periferia de São Paulo, onde nunca tem água depois do meio-dia. Então simula um ar compungido e diz, imitando o governador:
– Água eu vou ficar te devendo.
“Vou ficar te devendo” é minha expressão favorita; da primeira vez que a ouvi, proferida por uma vendedora em face da ausência do sorvete de chocolate, julguei que poderia voltar outro dia para cobrar a dívida. Os juros seriam pagos em cobertura de granulado, imagino.
Mas voltemos à visita, que, para não fazer desfeita, resolve aceitar um pedaço da pizza de anteontem que você ofereceu só por educação. Você finge estar satisfeito em seu papel de anfitrião e pede:
– Por favor, pegue mais um pedaço! Não faça cerimônia.
Pode ser que posteriormente a pessoa tenha uma forte dor de estômago por conta do mofo felpudo sobre a cobertura de queijo, mas isso não importa. Basta saber que logo ela vai olhar para o relógio, comentar que está tarde e que “o papo está bom, mas preciso ir”.
É a senha de que mais uma visita protocolar foi concluída com sucesso e que você pode se despedir daquele parente – do qual você nunca gostou em particular – com as frases:
– Vamos marcar, hein? Abração. Tudo de bom.