O Estado de São Paulo – Caderno 2
22 de fevereiro de 2016
por Vanessa Barbara
Recebi esses dias um portentoso envelope contendo a convenção de condomínio e o regimento interno do meu novo prédio. Naturalmente, como todos os cidadãos dignos e cumpridores das leis, peguei uma banana e fui para a rede da varanda ler com afinco todas as cláusulas e entrelinhas desses documentos.
Descobri que a minha simples existência no edifício é uma violação expressa a pelo menos nove itens do regimento e à cláusula quinta da convenção, que adverte contra elementos que comprometam “a segurança, a solidez, a tranquilidade, a categoria e o nível moral do edifício”.
Quem lê sempre estas crônicas sabe que o caso é perdido; solidez e categoria não são meus pontos fortes, ainda que tranquilidade e favorabilidade estejam em alta. Quanto ao nível moral, sou seguidora do imperativo categórico de Kant, mas não há no documento qualquer referência à doutrina ética em vigor no condomínio.
No regimento interno, os motivos para a minha expulsão sumária são tantos quanto são os erros de vírgula no texto. Este item resume o meu drama: “Não usar […] os apartamentos para fins incompatíveis com a decência e o sossego do edifício, ou permitir sua utilização por pessoa de vida irregular, antissocial, passível de representação penal e política, ou que, de qualquer forma ou modo, possa prejudicar a boa ordem ou afetar a reputação do condomínio ou do edifício”.
Mais uma vez, sou culpada de quase todos os itens: a vida irregular (hábitos de sono absolutamente excêntricos), os modos antissociais (só tiro o pijama para trocar por outro), a probabilidade de sofrer indiciamento político (frequência acima da média em protestos com baderna) e, por fim, o prejuízo total à reputação do condomínio (corintiana, mandaquiense, não tem carro, gosta de pegar coisas do lixo etc.).
Uma das normas proíbe a permanência de pessoas “estranhas” em áreas comuns, e outra diz que nesses locais deve-se evitar “situações de constrangimento”. Sendo o constrangimento uma característica social que me define, posso inferir, sem margem para dúvidas, que é melhor eu não sair do apartamento.
Só que há um porém: o regimento também afirma que o livre direito de fruir da sua unidade autônoma fica restrito “de forma que não seja praticado em seu apartamento qualquer ato que comprometa o bom nome, […] bem como a moral e os bons costumes, dos demais moradores, conforme previsto em lei”. (Que lei é essa que dispõe sobre o grau de decência tolerado dentro de casa?)
Fala-se em “rigorosa disciplina”, “decoro”, “pudor”, “boa ordem” e “comportamentos estritamente familiares”. Há proibições bem específicas, tais como a de dançar no hall social – essa já violei – e fazer lições de escola na saleta comum. (A redação desta crônica foi efetuada em conformidade com o regimento).
Em caso de reincidência, o condômino está sujeito a receber multa conforme o item 17.5, que não existe.