O Estado de São Paulo – Caderno 2
6 de junho de 2016
por Vanessa Barbara
A micose está para o podólogo assim como a varanda está para o cronista. Cada profissional escolhe um objeto de trabalho com seus chulés específicos e desafios mais ásperos; alguns se debruçam sobre os dedões e se interessam por joanetes, lixando calcanhares com o furor de quem ergue pontes; outros se debruçam sobre a janela e analisam com zelo científico as minúsculas ocorrências diárias, com o furor de quem tira unha encravada.
É verdade que saí de férias, mas fui vista trabalhando com afinco durante dias a fio, sem descanso, deitada na minha rede e apreciando a rua. É esse o meu nível de comprometimento com o leitor – inserir aqui vastos elogios ao profissionalismo da cronista, com cópia para o meu chefe – e se em alguns momentos pode ter parecido que cochilei, só estava tirando uns minutos para aprimorar mentalmente um parágrafo.
Um dia, por exemplo, vi três carros vermelhos estacionados em sequência na esquina do prédio. Achei que fosse um código para alguma coisa. Em outra ocasião, acompanhei com curiosidade um rapaz que estava caminhando tranquilamente por uma ruazinha próxima, quando deu meia-volta. Correu num pique tresloucado, sendo que não havia ninguém atrás dele; percorreu a ruazinha inteira, dobrou a esquina e por fim, após alguns segundos de suspense, chegou aonde queria: um degrau diante de uma casa onde ele havia esquecido o celular.
Já vi um acidente leve e várias brigas de bêbados, e teve o dia em que caiu um balão gigante numa casa das redondezas. Vieram uns malucos gritando numas motos, pularam o portão da casa, escalaram com destreza até o telhado, deram uma apagada parcial no fogo e fugiram correndo. Pouco depois apareceu um carro do Corpo de Bombeiros e duas viaturas de resgate pra apagar o resto do incêndio, que era um foco relativamente pequeno. Tudo em menos de quinze minutos diante do olhar de espanto dos moradores da casa.
Acompanhei a greve dos operários da construção de um dos prédios novos, quando eles sopraram apitos e vuvuzelas e se reuniram no portão até que lhes pagassem o salário. Assisti a uma Missa de Ramos na escadaria do fim da rua e vi uma procissão daquelas antigas com incenso e crianças vestidas de anjo. Perdi por pouco um caminhão de bombeiros entrando na contramão. E houve um fim de tarde em que eu e a vizinha ficamos em nossas respectivas sacadas fiscalizando por horas o pessoal da Eletropaulo enquanto eles instalavam um poste novo de luz.
Mas tenho reparado há meses que os moradores dos dois apartamentos de cobertura do prédio da frente estão sempre assistindo à TV, em geral no mesmo canal – e olha que eles têm varanda.
A varanda está para o cronista assim como o suco gástrico está para o endoscopista e as guerras púnicas para o historiador, e é com satisfação que comunico: estou de volta ao meu posto de observação.