O Estado de São Paulo – Caderno 2
3 de outubro de 2016
por Vanessa Barbara
Na semana passada contei umas anedotas psiquiátricas de minha lavra, mas esqueci daquela que mais me deixa orgulhosa: uma vez fui a uma consulta médica usando um tênis no pé esquerdo diferente do direito. Eles eram até que parecidos, mas de modelos distintos. Fiz questão de chamar a atenção para o fato e pedir que o psiquiatra tomasse nota.
No texto, falei rapidamente da tristeza de saber que, ainda hoje, existem pessoas que acham que só gente louca vai ao psiquiatra/ psicólogo/ psicanalista. Desta vez vou dar um passo adiante: inúmeras pesquisas recentes procuram provar a hipótese de que os delirantes são vocês; nós, os deprimidos, somos bastante precisos em nossos julgamentos da realidade, um fenômeno que é chamado de “realismo depressivo”.
Numa série de experimentos efetuados a partir do final da década de 70, psicólogos mostraram que pacientes depressivos conseguem evitar uma série de vieses autoprotetores na hora de atribuir as causas tanto de eventos positivos quanto de negativos. Nós, os deprimidos, somos menos propensos a achar que o mundo está sob o nosso controle e a minimizar a probabilidade da ocorrência de resultados negativos, bem como a superestimar as chances de coisas boas ocorrerem. Somos menos otimistas, e a má notícia é que em geral temos razão. “Em praticamente todos os pontos em que as pessoas normais apresentam autoestima aumentada, ilusões de controle e visões irreais dos futuro, as pessoas deprimidas não apresentam os mesmos vieses. ‘Mais tristes, porém mais sábios’ na verdade parece se aplicar à depressão”, escreveu a psicóloga social Shelley Taylor.
Certos pesquisadores vão além: dizem que pessoas que estão de bom humor ficam menos propensas a reconhecer mensagens de propaganda de baixa qualidade e mais passíveis de confiar no carisma da fonte, em relação às de humor neutro ou às francamente ranzinzas. Pode-se alegar, portanto, que o bom humor reduz a capacidade individual de processar a informação ou inibe a motivação necessária para ir além do processamento simples.
Nos anos posteriores aos primeiros estudos sobre realismo depressivo, executados pelas psicólogas Lauren Alloy e Lyn Abramson, ficou claro que esse fenômeno de aguda percepção do real também se produziria a partir do cinismo e do pessimismo generalizado.
Em 1992, a mesma dupla de pesquisadoras constatou que a própria ilusão de controle das pessoas “normais” estava provavelmente as defendendo de ficarem deprimidas. A depressão levaria à objetividade, mas os óculos cor-de-rosa produziriam uma mente mais saudável, resiliente e adaptável.
Tudo isso para dizer que, antes de acusar um paciente psiquiátrico de ter perdido um parafuso, talvez você deva fazer uma pausa e considerar que, nessa equação, o delirante é provavelmente você. Nós é que carregamos a realidade do mundo nas costas.