O Estado de São Paulo – Caderno 2
23 de janeiro de 2017
por Vanessa Barbara
Gosto de comprar quebra-cabeças usados, sobretudo da marca alemã Ravensburger. Em 30 de março de 2014, encontrei dentro da caixa uma peça que não pertencia ao meu quebra-cabeça. É toda bege com alguns veios mais escuros, achatada horizontalmente em forma de letra H e com “braços” nas laterais. Claramente pertencia a algum cenário desértico e não à minha bucólica paisagem de trem nos Alpes suíços. Terminei o quebra-cabeça e ela ficou sobrando.
Isso quer dizer que em algum lugar do mundo existe um quebra-cabeça com esta peça faltando. Vocês não sabem como isso ataca a minha ansiedade. Quem estiver sentindo falta de uma peça nas especificações acima, por favor escreva para este jornal com nome, endereço e recompensa oferecida pelo resgate. Imagino que possa haver alguma criança doente por causa disso.
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Os primeiros quebra-cabeças foram criados a partir de mapas e eram passatempos de cunho educativo. A atividade ganhou força na época da Grande Depressão, por se tratar de uma opção barata que podia render muitas horas de entretenimento – e ainda por cima ser reutilizada.
Como tudo nesta vida, existe um submundo de entusiastas de quebra-cabeças. Os mais habilidosos conseguem encaixar até 100 peças por hora, enquanto a média faz 25 a 50 (eu faço umas quatro). Muitos dos mais experientes preferem ficar de pé durante o processo, pois acreditam que sentar é um fator limitador para seu estilo.
Em geral, a tática mais utilizada é solucionar as bordas e depois separar as peças por cor. Mas há também quem as classifique por formato e número de “pernas”, a fim de facilitar a localização conforme a figura vai sendo preenchida.
Eu pessoalmente uso a tática Vaca Louca: sentar num canto, concentrar-se numa indistinta área de céu (ou telhado) e começar a testar as peças uma a uma, enquanto converso aleatoriamente sobre o dia em que eu estava sentada no escritório com a janela aberta e o vento engoliu as anotações de uma entrevista que fiz com um coordenador do Ibama – ou qualquer história do mesmo naipe. Alternativamente coloco para tocar alguma seleção de músicas passíveis de serem cantadas em voz alta, com uma ou outra faixa de cunho mais reflexivo – que é para quando você fica em silêncio tentando resolver o quebra-cabeça e pensa no absurdo da existência.
Os produtos da Ravensburger são notáveis porque suas peças são robustas, bem cortadas e encaixam perfeitamente. A marca comercializa o maior quebra-cabeça do mundo, um painel de 680 por 192 centímetros com dez cenas de desenhos da Disney. Ele tem 40.320 peças.
Foram eles também que lançaram o Krypt Silver Puzzle, um quebra-cabeça monocromático retangular com 654 peças prateadas e dispostas em círculo, tudo rigorosamente da mesma cor. Outro considerável desafio para os adeptos do passatempo é um puzzle de 5 mil peças com cores em degradê desenvolvido pelo artista Clemens Habitch. E há um puzzle da Clementoni só de peixinhos Nemo e uma única Dory.
Cada vez mais, os fabricantes têm desenvolvido novas formas de dificultar a resolução de seus produtos. Uma das marcas mais maquiavélicas é a Stave, que já produziu um quebra-cabeça impossível de resolver como pegadinha de Primeiro de Abril. A marca é conhecida por não trazer a figura na caixa (só uma pista por escrito) e por introduzir uma série de maldades como um “canto falso” (peça de canto que encaixa no meio de um quebra-cabeça), uma “beirada maldita” (peças adjacentes de beirada que não se encaixam por si só, mas exigem uma terceira peça para se juntar) e um “corte na linha da cor” (peças cortadas bem na linha divisória entre duas cores diferentes, de modo que uma peça azul pode emendar numa verde sem nenhuma pista da junção).
Alguns puzzles da Stave contém espaços em branco só para despistar.