Revista Serafina – Folha de S. Paulo
7 de maio de 2017
por Vanessa Barbara
Já disse por aqui que ser “toda errada” demonstra um senso elevado de sofisticação e cosmopolitismo, além de fornecer alegria às pessoas direitas. Neste texto, vou abordar a importância histórica da falta absoluta de discernimento para o progresso da humanidade.
Penso em Alexander Fleming, que saiu de férias e esqueceu suas culturas de estafilococos empilhadas num canto do laboratório. Ao voltar, reparou que uma delas havia sido contaminada por um bolor e que, em torno dela, não havia mais bactérias. “Que engraçado”, comentou. Foi assim que descobriu o “suco de mofo”, ou seja, a penicilina: porque era meio avoado.
Teve também o químico russo Constantin Fahlberg, que passou o dia examinando amostras de alcatrão de carvão e se esqueceu de lavar as mãos. Na hora da janta, notou que seu pãozinho estava doce, assim como (estranhamente) o guardanapo, então voltou ao laboratório e descobriu a sacarina. Entrou para a história da ciência por falta de asseio pessoal.
O marca-passo foi inventado após o uso de um resistor errado, e o vidro blindado, depois que um cientista deixou cair um pote no chão. O velcro, o picolé, o post-it e o micro-ondas também têm origem em trapalhadas.
Donde se conclui que ser distraído, porcalhão e estabanado não é sempre ruim.
Mais que isso: pode ser revolucionário. Um dos muitos célebres “errados” da história foi Homer Plessy, que, em 1896, foi condenado na Suprema Corte norte-americana por ter se sentado no lugar errado do trem. Ele embarcou no vagão exclusivo para brancos, sendo que possuía ascendência negra.
Décadas depois, Rosa Parks até que “acertou” qual era o banco reservado para negros no ônibus, mas errou ao se recusar a ceder lugar a um passageiro branco. Sua falta de reverência à ordem estabelecida deu início ao movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, ainda que, à época, a atitude fosse considerada uma tremenda falta de educação. Parks foi chamada de “encrenqueira”, “agitadora” e “pessoa de baixo calibre”.
Outro desajustado que fez história foi Mahatma Gandhi, que, além de ser desdentado e vegetariano, resolveu produzir as próprias roupas e o próprio sal. Foi chamado de “encrenqueiro” e “com potencial limitado”.
Convenhamos: o velho Mohandas jamais se sairia bem numa entrevista de emprego ou num jantar na embaixada. Provavelmente usaria o garfo de peixes para lidar com os legumes.
Já o escritor Liev Tolstói limpava a casa, lavrava o campo e produzia suas vestimentas. Acabou fugindo da família – de hábitos luxuosos – só para poder levar uma vida mais simples. (Consta que passaria o maior vexame no coquetel de lançamento de “Guerra e Paz”.)
Todos eles de alguma forma não se adequavam, e talvez por isso acabaram conduzindo grandes progressos: sua falta de jeito lhes dava uma outra perspectiva.
E as suffragettes? Foram tachadas de “histéricas”, “grosseiras” e “pouco femininas”. Fica a sugestão.