Uol Esporte – Especial Copa do Mundo
26 de maio de 2018
por Vanessa Barbara
Há quem tenha saudades daquele futebol dos velhos tempos, o futebol-arte despretensioso e romântico, sem malícia, praticado por craques plenos de amor ao esporte. Nesse caso, sempre convém mencionar a singela participação do Brasil na Copa de 1954.
Naquele ano, a seleção chegou à Suíça com uma bagagem pesada: tinha a obrigação de reverter a derrota de 1950. Era preciso calar a imprensa mundial, que quatro anos antes proclamara que o Maracanazo fora “a vitória da fibra sobre a covardia, o triunfo da raça sobre a desnutrição”, segundo contou o jornalista David Nasser, de O Cruzeiro. “Muita imprensa da própria América afirmou que a cachaça derrotara o Brasil. Que éramos um povo mal alimentado, que comíamos arroz, feijão, farinha e nossos atletas mal podiam se manter em pé”, escreveu.
O diagnóstico geral, inclusive dos torcedores da seleção, é que a Copa de 1950 estava praticamente ganha, mas foi desperdiçada pela falta de brio dos nossos atletas, a quem teria faltado “macheza”. Dizia-se que, naquela data, o Brasil tombou vergonhosamente perante o “quadro de velhos” dos uruguaios, “jogadores com varizes e erisipelas [que] arrancaram a máscara dos guapos rapazes brasileiros”. Às vésperas da estreia na Suíça, David Nasser conclama: “Chegou o momento de responder a essa gente. De mostrar a esses cavalheiros que não somos os desfibrados, os medrosos e os sifilíticos que dizem”.
Dá para imaginar, portanto, o nervosismo daquele time que viajava de avião pela primeira vez na vida e que em fins de maio desembarcou na Europa, onde se deparou com a falta de feijão preto e com um regulamento bizarro que escapava ao entendimento até dos próprios dirigentes da delegação. A tabela envolvia a escolha de dois cabeças de chave por grupo e partidas adicionais quando as equipes empatavam em pontos. Os embates das fases finais eram definidos por sorteio. As regras eram tão confusas que pouca gente entendia exatamente o que estava havendo.
Um exemplo singelo ocorreu na partida entre Brasil e Iugoslávia, na primeira fase da competição. Os eslavos saíram em vantagem no início do segundo tempo com um gol de Zebec. Aos 24 minutos, Nílton Santos recuperou a bola do ataque adversário e foi quase até a pequena área, onde passou para Didi, que fez o gol. Com o empate, veio a prorrogação. Os brasileiros partiram para cima como se a perpetuação da humanidade dependesse daquela vitória. Espantados, os iugoslavos tentavam se comunicar por sinais, pedindo que os adversários não corressem tanto. De acordo com um relato da revista Placar, o capitão Zlato Cjaicowski mostrava os dedos indicadores e gritava: “It’s good! It’s good!”. Ou seja: 1 a 1 estava bom. Mas ninguém entendia, e muitos inclusive tomaram essas palavras como provocações.
Quando o juiz apitou o fim da partida, os brasileiros ficaram desolados. No vestiário, o capitão da equipe, José Carlos Bauer, caiu no choro: “Perdemos novamente a Copa do Mundo”. O que todos desconheciam – todos, menos os iugoslavos, que bem que tentaram avisar – era que o empate classificava ambas as equipes.
Em todo caso, o alívio não durou muito. Logo os brasileiros receberam o resultado do sorteio que definiu os jogos das quartas de final: enfrentariam justamente os húngaros, os favoritos do torneio. A Hungria era uma seleção que, àquela altura, havia acumulado quatro anos de invencibilidade internacional, tendo goleado a Coreia e a Alemanha Ocidental na fase preliminar da Copa. A imprensa colaborava para perpetuar o mito de time imbatível, repetindo vezes sem conta, a respeito do escrete magiar: “Não erra um chute no gol”, “São velozes de pasmar”, “É uma gente diabólica, afiada até os dentes”, “Nunca se viu coisa igual”.
Não é de se espantar, portanto, que os dias que precederam a partida tenham sido de completo pânico entre os jogadores. Correu o boato de que o chefe da delegação, João Lira Filho, já teria comprado as passagens de volta. Ele desmentiu, na véspera, com um discurso longo e exageradamente patriótico que só fez piorar a situação: “Olhem as cores que vocês terão que defender com galhardia dentro da cancha, honrando a nossa Pátria”. Na mesma ocasião, um jornalista mineiro teria dito: “Temos que ganhar o jogo. Temos que vingar os mortos de Pistoia”. (Nessa cidade italiana foram sepultados 462 soldados da Força Expedicionária Brasileira que morreram na Segunda Guerra Mundial, o que obviamente não tem nada a ver com futebol, Hungria e Copa do Mundo.)
Os relatos da véspera são catastróficos: na madrugada anterior ao jogo, o atacante Humberto Tozzi fumou dois maços de cigarros e praticamente não dormiu; o goleiro Veludo e o zagueiro Pinheiro saíram do hotel à noite e demoraram tanto para voltar que se cogitou a ideia de que tinham fugido. O capitão Bauer, que, assim como o meia Brandãozinho, havia perdido cinco quilos na partida contra a Iugoslávia, estava abatido e recebeu autorização para ir a Zurique telefonar aos familiares. Reza a lenda que alguns jogadores chegaram a ingerir pasta de dente para passar mal e não correr o risco de serem escalados. Dois dos atacantes, Baltazar e Pinga, anunciaram de manhã que estavam contundidos. A verdade é que poucos atletas dormiram bem na véspera do jogo, sendo que muitos tiveram disenteria.
David Nasser relata como entraram em campo: “Bauer estava verde. Castilho estava leitoso. Humberto estava transparente – todos trêmulos. Todos envenenados pelo grande erro: o Brasil não pode perder”.
A partida em si foi um deus nos acuda, e entrou para a história com a alcunha de Batalha de Berna. Aos sete minutos, os húngaros já tinham feito dois gols. Numa dividida no meio do campo, Didi rasgou o calção de József Tóth e ele passou um bom tempo jogando com parte da cueca de fora. Aos dezoito, o juiz marcou um pênalti para o Brasil; segundo Djalma Santos, ninguém queria bater. Ele mesmo se prontificou e diminuiu o placar para 2 a 1.
Logo depois começou a chover, o que complicou ainda mais a situação para os brasileiros, que não calçavam chuteiras apropriadas e passaram a escorregar esplendorosamente, como “bailarinos de patins em pista de gelo”. “Fazia pena ver os nossos”, descreveu o jornalista Everardo Lopes, do Jornal dos Sports. “Cada tentativa de arrancada correspondia a um escorregão. […] Quanto mais leve cada jogador, mais espetacular a queda. De Didi, eu cheguei a contar quatorze quedas. No número quatorze eu parei. Já no segundo tempo. Afinal de contas, eu não estava com insônia.”
Por fim, o técnico Zezé Moreira mandou substituir as chuteiras e o Brasil continuou pressionando pelo gol. Aos 16 minutos, o juiz inglês Arthur Ellis marcou um pênalti duvidoso contra o Brasil. (Mais tarde, Pinheiro admitiu ao repórter de O Cruzeiro que caiu com a mão na bola.) Veio mais um gol da Hungria, porém este foi quase que imediatamente seguido por um golaço de Julinho Botelho, resultando no placar de 3 a 2 para os húngaros. Mais tarde, József Bozsik e Nílton Santos trocaram sopapos em campo e foram expulsos. “Valorosas e enérgicas escaramuças foram desfechadas, mas os atacantes nossos falhavam nas finalizações”, resumiu Geraldo Romualdo da Silva, no Jornal dos Sports.
No finzinho do jogo, o juiz deixou de marcar um pênalti contra Julinho Botelho, o que provocou a indignação dos brasileiros. Também expulsou Humberto por ter desferido uma voadora no adversário. Aos 43 minutos, com o time inteiro do Brasil na ofensiva, os húngaros aproveitaram o contra-ataque para fechar o jogo em 4 a 2, garantindo a classificação para a fase seguinte e a eliminação do Brasil.
E foi quando toda aquela pressão explodiu. Ao fim do jogo, segundo relato de jornalistas e do juiz de linha da partida, o atacante Maurinho ofereceu a mão ao ponta-esquerda Zoltán Czibor. Quando o húngaro se dispôs a apertá-la, Maurinho o cumprimentou com a mão direita e, com a esquerda, deu-lhe uma bofetada.
O radialista Paulo Planet Buarque largou o microfone, saltou o alambrado e desceu ao gramado para dar um tapa no juiz. Foi impedido por um guarda suíço. Só que Paulo sabia lutar judô e aplicou uma rasteira no pacato policial. O guarda caiu e, ao se levantar, meteu a mão no bolso traseiro. Quando todos achavam que ele iria sacar uma arma, o suíço apenas tirou calmamente um lenço e limpou o rosto.
Enquanto isso, no estreito corredor de acesso aos vestiários, o radialista Geraldo José de Almeida e o atacante húngaro Ferenc Puskás, que naquele dia estava contundido e não entrara em campo, trocaram gentilezas em seus respectivos idiomas. Pinheiro levou uma garrafada na cabeça, supostamente arremessada pelo próprio Puskás. Luís Vinhais, supervisor da seleção, pôs-se a esmurrar o craque da Hungria. Julinho voltou do vestiário com um tubo de oxigênio e o atirou a esmo. Maurinho cuspiu em Mihály Lantos. No ápice da pancadaria, o técnico Zezé Moreira deu uma chuteirada na cara do vice-ministro de Esportes da Hungria, Gusztáv Sébes. (Ele usou a chuteira de traves baixas de Didi, que havia sido substituída após os escorregões.)
Naquele espaço exíguo, baldes, cadeiras e garrafas de leite foram arremessados de ambos os lados. A certa altura, estouraram o globo de iluminação e tudo ficou às escuras.
Segundo o relato dos húngaros, registrado pelo Correio da Manhã, o meia-direita József Tóth subia as escadas quando foi atingido por uma garrafada na têmpora e caiu. Enquanto dois companheiros o socorriam, um burocrata da delegação foi atingido por outro vasilhame e cambaleou, no que foi seguido pelo vice-ministro de Esportes, que também foi alvejado. Na versão deles, foram os brasileiros que quebraram as lâmpadas.
A pancadaria prosseguiu por vários minutos na penumbra, até que a polícia, convocada através dos alto-falantes do estádio, deu fim à cizânia. Dois policiais ficaram feridos. Em reportagem para O Cruzeiro, o repórter Luciano Carneiro diz que não teve acesso ao exato local da briga, mas que de longe viu um Luís Vinhais “completamente transtornado a botar de escadas abaixo o goleiro reserva dos húngaros e vários policiais”.
Resultado: Sébes precisou de quatro pontos no rosto e assistiu ao sorteio para as semifinais coberto por um esparadrapo que ia do nariz até a orelha. Pinheiro foi socorrido quase inconsciente, aos gemidos, tendo sofrido um corte profundo de oito centímetros sobre o olho esquerdo. Um certo burocrata húngaro, de nome Krajovics, também precisou de um curativo na arcada superciliar direita. Tóth ficou com o olho roxo.
Ou seja: da próxima vez que alguém mencionar os bons e velhos tempos em que o espírito esportivo reinava no futebol-arte – o futebol moleque, o futebol maroto –, basta lembrar do dia em que o Brasil foi campeão de arranca-toco na Suíça. Em 1954, as chuteiras dos nossos atletas tiveram uma utilização menos digna. E não restou nenhuma garrafa de leite para contar a história.
Este texto faz parte de um especial do Uol Esporte, que convocou dez escritores para narrar histórias de copas do mundo passadas.