Uol Esporte – Especial Copa do Mundo
2 de junho de 2018

por Vanessa Barbara

Gosto de pensar que nasci no exato instante em que o doutor Sócrates driblou dois soviéticos, preparou a bola como se estivesse em uma cirurgia e chutou de fora da área, bem no ângulo do goleiro Dasayev. Foi no jogo de estreia do Brasil na Copa da Espanha, em 14 de junho de 1982. Mas minha mãe, por motivos compreensíveis, não se lembra do ocorrido com tanta precisão cronológica, e meu pai e minha avó tampouco conseguem acrescentar qualquer fidedignidade ao relato. Os documentos do hospital fornecem um horário desencontrado no registro do nascimento – três e meia da tarde –, que ainda por cima é assinado por um carimbo do meu pé, o que, convenhamos, não dá para ser levado a sério.

De modo que os leitores terão de aceitar a palavra da protagonista do incidente, que garante: vim ao mundo segundos após um arremesso lateral de Leandro, quando a bola ficou quicando entre os zagueiros na área soviética até cair graciosamente nos pés de Sócrates, que vinha trotando do meio do campo. Como era de se esperar, eu, com meus 3,4 kg e 47 centímetros de comprimento, fui obrigada a me esticar inteira, na tentativa de espiar o lance. E foi quando nasci: no potente chute de direita do capitão do time que deu o empate ao Brasil naquela tarde. Virei imediatamente corinthiana. Ninguém ouviu o meu choro, pois estavam gritando gol.

Foi um parto sofrido, assim como a maior parte do jogo. Minha mãe, Luiza, começou a sentir contrações pela manhã e foi para o hospital na hora do almoço, acompanhada do meu pai e do meu avô. Deixou meu irmão de 2 anos sob os cuidados da minha avó, no Bom Retiro. Passava do meio-dia quando eles terminaram de preencher os papéis e minha mãe foi encaminhada para uma sala de preparo. Ela conta que se despediu dos dois e disse que, se quisessem, poderiam voltar para casa, pois achava que ainda iria demorar.

Provavelmente nem precisou terminar a frase e eles já tinham ido embora. É que às 12h15 havia começado Itália e Polônia, e depois seria a vez de Brasil e União Soviética, às 16h, horário de Brasília. Portanto: sim, os homens da família foram para casa ver o futebol e deixaram a minha mãe no Hospital São Camilo, na Pompeia, tendo contrações ritmadas da fase latente do trabalho de parto. Minha avó ficou incrédula quando viu os dois voltando do hospital sozinhos e se acomodando no sofá. Reclamou e mandou que voltassem, mas sem sucesso.

Enquanto Itália e Polônia se enfrentavam de forma um tanto monótona e sem gols, minha mãe vestia a camisola do hospital e deitava numa mesa de exames, onde aparentemente a bolsa foi estourada (ela não tem certeza, já que não disseram nada sobre o procedimento, mas conta que, ao se levantar, deixou para trás uma discreta pocinha no chão). Aguardou cerca de meia hora na enfermaria e logo vieram checar a dilatação. Já devia ter entrado na fase ativa do parto, portanto foi transferida para uma sala bem pequena com uma cama, uma mesa ginecológica, uma bancada e uma mesinha com apetrechos médicos. De ambos os lados da parede havia amplas janelas de vidro.

“Antes de deitar vi que, do outro lado, havia uma televisão ligada passando um jogo e que os funcionários iam e vinham, e paravam para assistir”, ela contou. “Ao me acomodar na cama, minha cabeça ficou do lado contrário e não tive mais visão dessa sala da tevê. A mesa estava encostada na parede e eu, deitada, ficava abaixo do vidro que dava para os corredores. Creio que isso ajudou que ninguém me visse, a não ser da sala de tevê, cujo vidro era maior e mais baixo.”

Entre uma contração e outra, ela ouvia ao fundo o som da televisão, a voz do locutor Luciano do Valle e a equipe do hospital torcendo. Começou a sentir dores mais fortes e constantes, de modo que procurou respirar pouco e não se mexer muito. “Depois, para me distrair dessa dor esquisita, eu virava o rosto para um lado e para o outro, ou punha a mão na parede e empurrava – assim não mexia a barriga para não piorar a situação”, conta. Ficou fazendo isso por um longo tempo (que lhe pareceu uma hora e meia), sozinha, enquanto a dor só aumentava.

No estádio Ramón Sánchez Pizjuán, as coisas também não iam bem. A torcida, que começou apoiando o Brasil, virou de lado ruidosamente aos 17 minutos do primeiro tempo, quando o juiz deixou de marcar um pênalti de Luisinho no atacante Ramaz Shengelia. Nesse momento, ouviu-se uma vaia estrondosa e os espanhóis não mais torceram pela seleção. “Ao contrário, passaram a incentivar os soviéticos ao mesmo tempo em que gritavam: ‘Fuera Brasil, Fuera Brasil”, segundo relato do Jornal do Brasil.

“Como estratégia para sair desses momentos, passei a respirar mais curtinho e rápido, sem controle, e mexer braços e pernas meio sem rumo”, conta a minha mãe. O time brasileiro parece ter seguido a mesma tática, correndo atabalhoadamente pelo campo e errando dezenas de passes sob a marcação pesada dos adversários. Tropeçavam a toda hora nos fotógrafos agrupados na linha de fundo, junto à marca do escanteio. “Nosso time bisonhamente tentava apenas uma jogada alta sobre a área, justamente em cima de um altíssimo e excelente goleiro. E tome bola alta e mais bola alta”, escreveu João Saldanha no Jornal do Brasil.

Aos 34 minutos, os soviéticos, que até então trocavam passes na lateral esquerda, transferiram o jogo para o meio de campo. O centroavante Oleh Blokhin atraiu a marcação de Falcão e Sócrates, mas tocou a bola para trás, nos pés do meia Andriy Bal, que chutou molengamente para o gol. Ninguém viu perigo nesse lance — ninguém, nem mesmo o goleiro Waldir Peres, que foi amparar o chute com displicência e deixou escapar a bola. Um a zero para a União Soviética.

Enquanto isso, numa cama de hospital na Pompeia, Luiza passou a chacoalhar a cabeça de lá para cá, pois a dor havia atingido um novo patamar. Como as mulheres da família são discretíssimas (nota: corrigir esse defeito urgentemente para as próximas gerações), ela não gritou. “A dor era geral, não localizada. Era difícil desviar a atenção para algo à parte, pois ela tomava todo o meu pensamento. Eu só pensava numa coisa: ‘Vem alguém, vem logo alguém me ver.’”

Só que começava o segundo tempo em Sevilha. Tão logo se posicionou debaixo de sua trave, do lado onde era maior a torcida brasileira, o goleiro Rinat Dasayev recebeu uma chuva de ventarolas da arquibancada. Os soviéticos se fecharam ainda mais na defesa: Zico estava tão marcado que não conseguia dar um passo. Ainda assim, os brasileiros redobraram os esforços no ataque. No segundo tempo, o jogo inteiro se deu na área soviética, com incansáveis tentativas de finalização dos brasileiros. Aos poucos, a seleção parecia mais à vontade e passou a dominar o jogo – ainda que o gol não viesse. A torcida voltou a apoiá-los.

“Nesse negócio de me debater, a certa altura creio ter ouvido um pessoal gritar gooollll, mas não sei se foi antes ou depois”, conta Luiza, tão confusa quanto Oscar Bernardi e Waldir Peres na pequena área, após um cruzamento de Blokhin. “Sei que num momento alguém na sala de tevê virou o rosto para o lado contrário, olhou para onde eu estava e acabou me vendo no desespero, me debatendo, e aí alguém abriu a porta e veio me ver”, disse.

Cabe aqui um parêntese no relato para admitir que eu não tinha um relógio no pulso e, mesmo se tivesse, não saberia ainda ler os ponteiros, portanto é bem possível que já estivéssemos nos 30 minutos do segundo tempo. Ou seja: o gol de Sócrates pode ter acontecido pouco antes dessa enfermeira anônima reparar naquela mulher pequenina que chacoalhava a cabeça e procurava não chamar a atenção, em desespero, sozinha há horas em uma cama de hospital. Digamos que doutor Sócrates já mostrava os punhos cerrados e comemorava com os colegas de time o seu gol de gênio quando a porta se abriu. Imagino que eu já devia estar coroando, ou seja, com a cabeça na marca do pênalti.

Sem receber nenhuma informação sobre o andamento da dilatação (ou sobre o placar do jogo), Luiza foi transferida para a mesa ginecológica, onde mais duas enfermeiras cobriram seus joelhos com um pano azul. A médica se posicionou junto à mesa de instrumentos e pediu que minha mãe empurrasse, só que ela estava sem fôlego até para respirar e só conseguia dizer: “Não estou conseguindo, estou cansada”.

A obstetra decidiu fazer uma episiotomia – minha mãe tem até hoje uma cicatriz saltada –, e depois uma das enfermeiras colocou as duas mãos no início da barriga e se pôs a empurrar. Aposto que, nessa hora, já estávamos aos 43 minutos do segundo tempo e algo incrível estava por vir. Paulo Isidoro virou a jogada da direita para o meio-campo, onde estava Falcão. Atrás dele, Éder gritou: “deixa!” e Falcão permitiu que a bola passasse entre as pernas, fazendo o corta-luz. O ponta-esquerda mal teve tempo de ajeitar a bola com o pé direito; sem deixá-la cair na grama, disparou um canhão de pé esquerdo no ângulo superior direito do goleiro soviético. Golaço. Eu finalmente consegui nascer e disseram para a minha mãe: “É uma menininha”. Éder comemorou com uma cambalhota.

Chorei bem fraquinho. As enfermeiras me limparam, me embrulharam e me mostraram à parturiente como se eu fosse a própria taça Jules Rimet. As primeiras impressões da minha mãe foram as de ter parido uma indiazinha muito cabeluda. Então avisaram que eu tinha nascido com icterícia e que precisaria ir ao berçário tomar um banho de sol. Enquanto minha mãe descartava a placenta e as enfermeiras suturavam o corte, ela se lembra de ter ouvido exclamações de alegria – talvez o fim do jogo e a vitória por 2 a 1. Talvez o início da partida. Nunca vamos saber com certeza qual foi a cronologia daquela tarde.

Só o que se sabe é que meu pai e meu avô voltaram horas depois do término da partida e ficaram muito satisfeitos com o esforço da nossa seleção.

**

Nota irônica: a índia de cabelos pretos nascida em 14 de junho com as bênçãos do doutor Sócrates agora está grávida de uma menina. A data provável do parto é no dia de Brasil vs. Costa Rica, pela primeira fase da Copa do Mundo da Rússia. Vidros não serão poupados caso me deixem sozinha numa sala, em trabalho de parto, enquanto todo mundo torce pela seleção.