Alguns conservadores brasileiros enxergam o candidato a presidente Jair Bolsonaro como representante de tudo aquilo que eles valorizam. Deviam olhar com mais cuidado.
The New York Times
24 de outubro de 2018
SÃO PAULO, Brasil — Para uma mulher liberal como eu, é difícil entender por que alguém votaria em um candidato a presidente que foi descrito pela imprensa internacional como “racista, homofóbico e sexista” (Libération), “uma ameaça à democracia” (The Economist), um “Trump dos trópicos” (The Guardian), “um xenófobo” (Clarín) e um simpatizante de “ditaduras militares e torturadores” que “expressou abertamente ideias fascistas” (Zeit).
Estou me referindo, é claro, a Jair Bolsonaro, o atual líder na corrida para se tornar o próximo presidente do Brasil. O candidato de extrema direita é um ex-capitão do Exército que serviu sete mandatos como deputado federal, período no qual, segundo o Le Monde, ele foi “um político insignificante de Brasília, mais conhecido por seus excessos verbais do que pelo ativismo parlamentar”. Agora, de acordo com uma pesquisa recente do Ibope, 59% dos eleitores pretendem apoiá-lo no segundo turno eleitoral que acontecerá no próximo domingo. (Fernando Haddad, o candidato de esquerda do Partido dos Trabalhadores, tem 41% de intenção de votos.)
A ascensão de Bolsonaro polarizou profundamente a sociedade brasileira. Na última década, nossas eleições foram palco de confrontos entre centro-esquerda e centro-direita que tantas vezes provocaram debates acalorados – mas agora parece que o circo está pegando fogo. Mais do que nunca, a eleição se tornou uma disputa sobre valores – equidade vs. igualdade, liberdade vs. autoridade, justiça vs. legalidade –, na qual ambos os lados estão apelando para a natureza óbvia de suas próprias visões.
Portanto, num esforço para entender meus compatriotas, voltei-me para o trabalho do psicólogo Jonathan Haidt, cuja teoria das fundações morais faz uma tentativa impressionante de conectar pessoas com diferentes visões políticas. Ao fazê-lo, devo admitir que existe algo em Bolsonaro que ativa profundas intuições morais em seus eleitores. Muita gente toma partido do candidato não por suas propostas, mas porque, para essas pessoas, ele se tornou um símbolo de tudo o que é bom. O problema é que essas pessoas estão apenas reagindo a Bolsonaro como símbolo – e não como ser humano.
Bolsonaro fala de equidade, por exemplo. De acordo com Haidt, a equidade diz respeito à proporcionalidade; é a ideia de que as pessoas apenas devem obter o que merecem. Os eleitores de Bolsonaro ficam zangados com o percebido abuso de programas sociais como o Bolsa Família, que provê apoio financeiro a famílias pobres. Eles se sentem ultrajados pela ideia de pessoas ganhando dinheiro sem trabalhar. (Também não apoiam ações afirmativas, como cotas em universidades.)
Tudo isso é compreensível. E ainda assim, se esse é o problema, por que os eleitores de Bolsonaro não ficam mais incomodados com as ocasiões em que ele mesmo violou princípios de equidade? Por muitos anos, por exemplo, ele recebeu auxílio-moradia do Congresso, apesar de possuir um apartamento em Brasília. Quando perguntado sobre isso, ele afirmou a um jornal, em linguagem chula, que usou o dinheiro para fazer sexo (“comer gente”). E quanto ao fato de que, após 26 anos como legislador, ele só conseguiu aprovar dois projetos de lei, enquanto multiplicava seus bens e os de sua família? Bolsonaro e os filhos têm um patrimônio de 15 milhões de reais, de acordo com o jornal Folha de S. Paulo.
Bolsonaro fala de patriotismo e autoridade – fundações morais importantes para os conservadores. O slogan de sua campanha é: “O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. E ainda assim, enquanto capitão do Exército, nos anos 80, foi preso por deslealdade após escrever um artigo em uma revista reclamando publicamente de seu salário – uma demonstração peculiar de respeito à autoridade. Ele foi posteriormente indiciado e condenado por planejar pôr bombas em quartéis e em uma adutora que abastece o Rio de Janeiro, também como parte de seu protesto contra salários baixos. (Bolsonaro nega o plano das bombas e foi inocentado após recorrer.)
De acordo com registros militares, os superiores de Bolsonaro também o consideravam imaturo. Por um breve período, ele esteve envolvido com o garimpo de ouro; seu superior, coronel Carlos Pellegrino, disse que o capitão tinha ambições de “buscar por outros meios” – ou seja, fora do Exército – “a oportunidade de realizar sua aspiração de ser um homem rico”. Não é preciso dizer mais nada sobre todo aquele patriotismo.
Uma coisa é certa, porém: Bolsonaro é leal. O clã dos Bolsonaro é um bando coeso, e muitos de seus membros trabalham na mesma área. Bolsonaro é tão partidário das estruturas familiares tradicionais que se casou três vezes. Sua primeira esposa, Rogéria, foi vereadora do Rio de Janeiro por dois mandatos, com apoio do então marido. A segunda mulher, Ana Cristina, acusou Bolsonaro de ameaçá-la de morte, mas acabou retirando a queixa; ela concorreu a deputada federal, mas não conseguiu ser eleita.
Três de seus filhos também são políticos: Flávio acaba de ser eleito para o Senado; Eduardo foi reeleito como deputado federal; e Carlos é vereador do Rio de Janeiro desde os 17 anos de idade. O irmão de Bolsonaro, Renato, tentou e não conseguiu se eleger prefeito de Miracatu; depois se tornou assessor especial de um vereador. Foi exonerado do cargo depois que uma reportagem de TV descobriu que ele estava recebendo o salário sem aparecer para trabalhar.
Muitos conservadores apreciam a autoridade porque ela cria ordem. Eles desejam eleger um governante forte com um pulso firme no país. Porém, não sei se Bolsonaro é capaz de impor seu comando. Um exemplo: ele admite que tem apenas um “conhecimento superficial” de economia. Quando lhe fazem perguntas sobre impostos ou dívida pública, ele depende inteiramente do julgamento de seu assessor econômico, Paulo Guedes. Além disso, após ser esfaqueado em um evento recente de campanha, ele se recusa a comparecer a debates com Haddad, o que não o faz parecer nem um pouco competente ou autoconfiante.
De acordo com Haidt, os eleitores conservadores também dão uma importância singular ao valor da santidade (ou pureza), rejeitando ideias de degradação. Mas Bolsonaro degradaria o nosso país com sua rudeza e ignorância. Ele foi desrespeitoso às mulheres, aos homossexuais, aos negros e aos indígenas, e demonstra inabilidade em representar nosso povo com classe e inteligência. Está muito longe de ser um líder mundial.
Quando o assunto é intuições morais, Bolsonaro parece pronto para atender aos desejos dos conservadores, só que apenas na superfície: basta analisar mais detidamente para ver que ele age contra tudo o que eles mais valorizam. Vamos esperar que os brasileiros percebam isso – e rápido.
Vanessa Barbara é autora de dois romances e dois livros de não-ficção em português. É colunista de opinião do New York Times – Internacional. Tradução da autora.