Golden Cosmos

Como é viver com um distúrbio crônico do ritmo circadiano

The New York Times
28 de outubro de 2019

por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil – É difícil se sentir normal acordando todos os dias às 4 da tarde.

Não, não sou uma enfermeira que faz plantão noturno. Tampouco sou a festiva herdeira de uma rica família do agronegócio brasileiro. E antes que você pergunte, também não sou preguiçosa: escrevi sete livros até agora. Eu durmo até o fim da tarde porque finalmente aprendi, depois de lutar por anos, que é melhor se passar por patética do que estar sempre exausta, deprimida ou doente.

Tenho um caso extremo de síndrome do atraso das fases do sono (SAFS), um descompasso crônico dos ritmos circadianos do corpo com o ciclo diário de luz e escuridão do ambiente. A expressão “coruja” não nos faz exatamente justiça; meu horário natural de dormir é aproximadamente às 6 da manhã. Ainda que nós, enquanto cultura, estejamos gradualmente mais conscientes das diversas formas pelas quais o corpo humano pode diferir do padrão, muita gente ainda toma como certo que as pessoas dormem à noite e ficam acordadas durante o dia.

Eu, não. Eu sinto falta de almoçar.

De acordo com o senso comum, dormir cedo e acordar com os pássaros é só uma questão de costume e força de vontade. Essa falácia é bastante difundida, inclusive entre os médicos. E por muito tempo, eu acreditei.

Passei anos tomando melatonina e zolpidem para conseguir dormir às 2 da manhã; costumava acordar às 11 e passar o resto do dia à base de estimulantes como modafinil e Ritalina. Ainda assim, vivia exausta e deprimida – o resultado que geralmente se dá quando tentamos nos forçar a ser diferentes do que naturalmente precisamos ser.

As últimas duas décadas testemunharam rápidos avanços no campo da cronobiologia, o estudo dos relógios bioquímicos que mantêm nossos ritmos fisiológicos naturais. Em 2017, por exemplo, o Nobel de Medicina e Fisiologia foi concedido a três geneticistas americanos pela descoberta dos mecanismos moleculares que controlavam o ritmo circadiano da mosca-da-fruta.

O que aprendemos com essas pesquisas é que os ritmos circadianos afetam não apenas quando acordamos e dormimos, mas quase todas as facetas de como vivemos. Eles regulam, entre outras coisas, a temperatura do corpo, os sistemas cardiovasculares e digestivos, o comportamento e a locomoção, e também as funções metabólicas, cognitivas e imunológicas.

Há variações dentro do espectro do que é normal: as pessoas podem ter inclinações naturais matutinas ou vespertinas. Além disso, os ritmos circadianos, embora sejam essencialmente inatos, podem ser alvo de certos ajustes. A luz do sol nos deixa mais despertos; temperaturas mais frias estimulam as pessoas ao sono. É por isso que quem sofre de insônia comum é encorajado a praticar o que se chama de “higiene do sono”: evitar luz artificial à noite, por exemplo, ou outras formas de estimulação.

Mas esse tipo de coisa não funciona para mim.

Minha rotina de sono é mais higiênica do que um campo cirúrgico. (Na verdade, estou escrevendo este artigo usando óculos especiais que bloqueiam a luz azul; eles podem não ser muito eficazes, mas pelo menos são cor de laranja e me deixam com o aspecto de um visitante do futuro. Pequenas alegrias!) Posso passar a noite inteira na cama, perfeitamente imóvel, ouvindo música clássica ou meditando, e ainda assim não pegaria no sono até que o meu corpo dissesse que chegou a hora.

Para muitos, como eu, essa síndrome é um fardo invisível, porém real. Para alguns, é até mesmo uma deficiência. Quando somos obrigados a viver fora de sincronia com nossos relógios internos, nossa saúde sofre. A discrepância entre o tempo interno e o tempo externo tem sido relacionada a problemas como depressão, diabetes, obesidade e péssima saúde cardiovascular. Nosso sistema imunológico vira um bagunça. Muitos trabalhadores noturnos sofrem de problemas similares; para nós, seguir uma rotina de trabalho das 9 às 5 equivale a manter um trabalho de turno inverso.

Isso ocorre porque, mesmo que nos forcemos a acordar cedo, nosso metabolismo não está preparado para executar tarefas simples como digerir adequadamente uma refeição, por exemplo – nós não produzimos tanta insulina de manhã, em comparação às pessoas normais. Nossa temperatura corporal interna também segue um ritmo próprio, produzindo sonolência ou alerta bem mais tarde. O mesmo ocorre com a liberação de cortisol, melatonina e outros hormônios essenciais ao ciclo de sono-vigília. De manhã, nossos olhos podem estar abertos, mas, para todos os propósitos, ainda estamos dormindo.

E não adianta ficar exausto e dormir pouco com a intenção de, no dia seguinte, pegar no sono mais cedo – uma recomendação que já ouvi muito, inclusive de médicos. O ritmo circadiano opera de forma independente do sistema de pressão do sono. Isso se aplica inclusive para pessoas “normais”: mesmo se você dormiu mal na noite passada e acordou bem cedo, é bastante improvável que hoje você consiga dormir às 6 da tarde; isso ocorre porque nosso ritmo circadiano continua seguindo seu ciclo habitual, sem se afetar por sua falta de sono. Sua tentativa de adormecer mais cedo se chocaria com algo chamado “zona de manutenção da vigília” (Wake-maintenance zone), um intervalo de três a quatro horas de máximo alerta fisiológico. (Em dormidores normais, isso ocorre das 6 às 9 da noite.)

A síndrome do atraso das fases do sono tem uma base genética, conforme comprovado por meu próprio universo não-científico de amostragem: minha mãe também sofre disso, embora o caso dela não seja tão extremo. Fora isso, outros mecanismos podem explicar o distúrbio. Alguns estudos indicam que nosso período circadiano intrínseco pode ser atipicamente longo (digamos, 25 horas em vez de 24); outros identificaram uma disfunção em nosso impulso homeostático de sono, uma resposta reduzida aos efeitos de reajuste de fase da luz do dia, ou uma resposta excessiva aos efeitos de atraso de sono da luz artificial noturna. Ainda não há cura – apenas intervenções de curto prazo como o uso de caixas de fototerapia e a administração precisa de comprimidos de melatonina. Contudo, a longo prazo, a maioria de nós não consegue se adaptar.

Aí é que está a questão: quando somos deixados por nossa conta – ou seja, quando temos a possibilidade de seguir nosso relógio biológico –, nós dormimos muito bem.

Indivíduos com casos extremos dessa síndrome são incapazes de ter empregos convencionais. Não somos nem remotamente confiáveis em honrar compromissos matutinos e participar de atividades sociais diurnas. Aprendemos a dar desculpas e mentir. Eu geralmente digo que trabalho à noite, o que é verdade – apenas não é a história toda. Muita gente respeita justificativas profissionais, mas trata com desdém problemas de saúde de que nunca ouviram falar.

Essa é a pior parte de ter um distúrbio do ritmo circadiano: viver em uma sociedade que atribui um valor moral ao horário que seu despertador costuma tocar. Muitas culturas relacionam enfaticamente o acordar cedo à retidão moral: como dizemos no Brasil, “Deus ajuda a quem cedo madruga”.

Mas nós, os notívagos, estamos reagindo. Na verdade, estamos conspirando enquanto vocês dormem. Há tempos nos reunimos em listas de discussão e grupos de apoio online. Compartilhamos indicações de especialistas e novas linhas de tratamento e pesquisa; discutimos acomodações obrigatórias para o nosso distúrbio (no caso dos Estados Unidos) e pensões do governo (no caso de alguns países europeus).

Acima de tudo, encontramos uns aos outros. Há muito a ser dito sobre o efeito terapêutico de conhecer pessoas que compartilham seus dramas: “Como você lida com o horário de check-out dos hotéis?”, “Quantas vezes você teve que acordar mais cedo esta semana só para dar um telefonema?”, “O que você faz quando a assistência técnica diz que vai chegar entre as 8 e as 14h?”.

Nos últimos anos, entre os que sofrem desse distúrbio, tem ocorrido um movimento cada vez maior rumo à autoaceitação. Em vez de tentar desesperadamente enganar nosso relógio biológico – e pagar o preço com nossa saúde –, estamos optando mais e mais por abraçar essa condição como parte do que somos. Trocamos de profissão e desistimos de certas atividades (adeus, cafés-da-manhã dos hotéis!). Passamos a aceitar trabalhos precários como free-lancers só para poder trabalhar dentro do nosso ciclo natural de sono-vigília. Reajustamos nossas ambições. Mantemos o mínimo possível de compromissos matutinos. Contratamos babás para o período da manhã e imploramos pela compreensão de nossos companheiros. Tentamos não socar as pessoas que dizem que é apenas uma questão de força de vontade.

E se alguém perguntar: sim, nós também trabalhamos das 9 às 5. Só que das 9 da noite às 5 da manhã.


Vanessa Barbara é autora de dois romances e dois livros de não-ficção em português. É colunista de opinião do New York Times – Internacional. Tradução da autora.