Itaú Cultural
Brechas Urbanas, mar. 2020
por Vanessa Barbara
Eram 4 da manhã de uma sexta-feira, mais ou menos um ano atrás. Eu estava (invariavelmente) ninando o bebê na varanda do meu apartamento, no 14o andar, tentando não colapsar de sono e de tédio. Então vejo um motociclista passar velozmente pela rua de cima. Ele dá meia-volta, atravessa a pista e estaciona diante de uma escadaria. Olha para trás. Sai da moto, tira o capacete. Certamente vai cometer um ilícito. O homem parece analisar o jardim. Olha para os lados e pula uma mureta baixa. Colhe uma rosa branca. Depois parece refletir melhor, colhe mais outra e uma terceira (depois de escolher muito bem). Amarra em um buquê, bota o capacete de volta e sobe na moto. “Alô, polícia?”, pensei em anunciar. “Temos aqui um meliante agindo de forma premeditada com a flagrante intenção de roubar um coração. Não demorem. E tragam reforços.”
Ninguém precisa de televisão quando se tem uma varanda – ou, vá lá, uma janela com vista para a rua. Por aqui vejo de tudo: briga de bêbado, procissão, filmagem de comercial, ladrão no telhado, carro na contramão, bloquinho de Carnaval. Quando venta muito, a gente vê baldes voando. Quando chove, é a inundação descendo a ladeira. De vez em quando falta luz no bairro e é bonito divisar uma fronteira entre ruas iluminadas e ruas escuras, enquanto o farol dos carros abre um clarão no asfalto adiante.
Outro dia caiu um balão enorme numa casa da rua de cima; vieram uns malucos gritando numas motos, pularam o portão, deram uma apagada parcial no fogo do telhado e fugiram correndo. Depois de um tempo apareceram os bombeiros e duas viaturas de resgate para apagar o resto do fogo. Tudo isso aconteceu em questão de 15 minutos. Pelo que pude apurar, os moradores estavam na sala assistindo à televisão. Um deles continuou sentado no sofá enquanto o outro atendia os bombeiros.
Confesso: tenho um binóculo Celestron 15 x 70, que serve para enxergar as luas de Júpiter, a inclinação dos anéis de Saturno, algumas nebulosas e a Estação Espacial Internacional. Serve também para entender o que aqueles homens estão fazendo no meio da rua às 3 da manhã (recapeamento), de que companhia aérea é este avião enorme no céu (Qatar Airways) e, por fim, se o vizinho da frente está mesmo limpando o sangue de uma faca e de um serrote depois de esquartejar a esposa inválida (não, isso foi com o James Stewart e eu preciso parar de ver esse tipo de filme).
Não que eu passe a madrugada de binóculo em punho vigiando a rua – isso só quando tem chuva de meteoros e fica nublado de repente. Aí não sobra muito o que fazer. Às vezes estou casualmente estendendo roupas no varal e vejo alguma coisa interessante; a questão é que eu costumo estender roupas lá pelas 2 da manhã, quando qualquer coisa que acontece é interessante. E lá vou eu acompanhar a caminhada solitária de um homem que demora dez minutos para percorrer a rua, parando para amarrar os sapatos e soltar um espirro agudo que quebra o silêncio denso do orvalho. Ou um casal que espera o ônibus noturno para a Cachoeirinha. Ou um bêbado que recita a altos brados versículos aleatórios da Bíblia.
Também não precisa de telefone aquele que tem uma boa varanda. Até pouco tempo atrás, da minha sacada era possível enxergar (de binóculo) a feirinha de orgânicos da rua de trás. Assim dava para conferir se haviam chegado meus adorados pimentões, pepinos e morangos. O problema é que às vezes eu espiava com displicência e descia correndo para arrematar meia dúzia de tomates, só para chegar ao local e descobrir que eram maçãs. Para piorar, as verduras ficavam guardadas numa área mais fresca, dentro da loja, o que dificultava enormemente a minha apuração a distância. Sugeri – a sério – que o funcionário afixasse um cartaz na parede com os dizeres: “Vanessa, chegou a alface”, e fui recebida com ceticismo.
Mas nem tudo é contemplação passiva nesse ofício de sentinela de varandas. Já tentei travar contato com os vizinhos do prédio da frente que ostentavam uma portentosa árvore de Natal de 2 metros de altura, mas eles fingiram que não me viram. (Minha filha gritava: “Batussínu!”, o que na língua dela quer dizer “Bate o sino”, e gesticulava com os braços. Ambas fomos ignoradas.)
Há pouco decidi travar uma competição com outro vizinho da frente: estamos vendo quem será o último bastião de resistência dos piscas-piscas de Natal. Nunca tinha parado para pensar que não existe polícia estética que obrigue os cidadãos a observar os feriados corretos em seus adornos domésticos; não há multa para os que deixam abóboras de Halloween como enfeites de porta bem depois de outubro ou para os que usam um capacho temático de Páscoa no ano inteiro. Esse descaso das autoridades tem consequências preocupantes: já estamos em março e nenhuma das duas varandas dá sinal de desistir dos enfeites cintilantes.
Coitados dos vizinhos; não imaginam com quem estão lidando. Mal sabem eles que nossas bandeirinhas de festa junina foram até dezembro, chegando a coexistir com os piscas-piscas.
“Alô, polícia? Temos aqui uma cronista de varandas atuando sem licença e espalhando o anarquismo decorativo pela vizinhança. Tragam reforços. Ela está armada de advérbios e não irá hesitar em usá-los.”