Rafael Silveira

Virei um elefante, um polvo, um balão. Ganhei mãos gigantes. Mas não consegui me livrar da tristeza.

The New York Times
26 de dezembro de 2021

por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

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JUIZ DE FORA, Brasil — Meu primeiro encontro com a cetamina não correu muito bem.

Após uma vida inteira de depressão — adquiri o hábito da tristeza desesperançada no início da vida adulta, e ela permaneceu fielmente comigo desde então — voltei-me para um tratamento mais experimental: infusões de cetamina, que é quando um amável anestesista injeta a droga nas veias de uma pessoa triste por cerca de 50 minutos, na esperança de animá-la um pouco.

Quarenta e cinco minutos após o início da primeira sessão, e de forma um tanto quanto ansiosa, perguntei para o meu parceiro, que estava na sala comigo, se nossa filha de 3 anos estava bem. Ele decidiu que era o momento perfeito para uma piada. Nossa filha estava segura em casa, ele respondeu — a bem da verdade, ela já era uma jovem de 15 anos bastante independente.

Entrei em pânico. Sob o efeito forte e dissociativo da droga, às vezes os pacientes entram no que é chamado de k-hole, uma espécie de buraco negro onde o senso de tempo e espaço é distorcido ou eliminado. Nesse estado de esquecimento, achei inteiramente plausível que minha filha não fosse mais uma criança pequena, mas uma adolescente decidida. Fiquei muito angustiada. Meu coração acelerou. O anestesista encerrou a sessão às pressas, enquanto meu parceiro dizia: “Desculpa, é brincadeira! Ela ainda tem 3 anos!”

Não foi um começo muito auspicioso, mas eu estava determinada a aproveitar a experiência ao máximo. A cetamina, há muito utilizada como anestésico, porém mais conhecida como droga recreativa ilegal e, é claro, tranquilizante para cavalos, tem ganhado espaço nos últimos anos como um medicamento antidepressivo.

Muita gente escreveu relatos entusiasmados sobre suas experiências com a substância — e pesquisadores e psiquiatras, em uma torrente de estudos, apontaram para seus possíveis benefícios, particularmente para a rapidez com que seria capaz de aliviar os sintomas. Hoje, centenas de clínicas pelo mundo oferecem infusões a pessoas que registraram pouca (ou nenhuma) melhora com outros tratamentos.

É aí que eu entro na história. Ao longo dos anos, para além dos bons e velhos medicamentos psicotrópicos, tentei vários tipos de terapia de fala, meditação, acupuntura, aulas de canto, bungee jumping e estimulação magnética transcraniana. (Ainda guardo doces memórias dos sons de pica-pau que batucaram em meu cérebro.) Nada funcionou. De forma que eu estava pronta para mergulhar no tranquilizante para cavalos. Como especialista em sofrimento psicológico, e no espírito da investigação científica, venho aqui compartilhar minhas descobertas.

Em agosto, eu estava numa fase ruim: a pandemia continuava seu curso mortal, o Brasil era governado por alguém que afirmava que as vacinas podiam transformar as pessoas em jacarés, e eu estava confinada em casa com uma criança pequena constantemente resfriada. Então marquei uma série de infusões. Cada sessão — seriam seis no total — custava 1,700 reais, aproximadamente 300 dólares. Era muito caro, mas me pareceu uma aposta digna de se considerar. E além do mais, para alguém obsessivo, seria vergonhoso se eu não completasse a série.

A cetamina não é um psicodélico clássico, mas pode ter um forte efeito dissociativo — as pessoas podem se sentir desconectadas com a realidade e com o próprio corpo. Sob sua influência, os pacientes em geral experimentam sensações leves e agradáveis. Eu decerto tive algumas delas. Às vezes sentia que era um elefante nadando sob o sol, um polvo extrovertido ou um balão inflando bem devagar. Eu repetidamente requisitei a presença de um cachorro. Também ganhei mãos gigantes. Isso tudo foi muito agradável.

Em outros momentos, nem tanto. No início da minha segunda sessão, deixei escapar um pensamento tolo: “Uma infusão de cetamina é como uma viagem de Uber de duas horas com um palhaço.” (Por sorte, o anestesista não pareceu ofendido.) Mas alguns instantes depois, minha mente escorregou, de forma inevitável, para palhaços malignos — e foi assim que nosso presidente Jair Bolsonaro apareceu em uma das minhas viagens ruins. Seus olhos estavam vidrados, os cabelos partidos para o lado, enquanto ele pairava alegremente sobre os mortos da pandemia. Foi aterrorizante.

Nesses momentos apavorantes, eu costumava pedir que me trouxessem “de volta,” dizendo que a experiência era “difícil demais.” Eu implorava por ajuda. Nos piores instantes, sentia que precisava resolver paradoxos temporais impossíveis para continuar viva. (E se essa sessão tivesse começado antes de eu nascer? E se eu estiver presa para sempre em um loop de cetamina?) Meu cérebro era preenchido por atordoantes ruídos de construção e eu sentia que estava prestes a morrer.

Pouco a pouco, meu corpo se habituou à droga, e as sessões ficaram mais suaves. Era importante trazer minhas próprias músicas — canções relaxantes e felizes. Nada distorcido ou que gerasse ansiedade (qualquer coisa do Radiohead estava fora de questão, acreditem). O cérebro facilmente se conectava a uma boa canção, que podia guiar a jornada. Quando as coisas estavam indo para um lugar ruim, aprendi a dizer: “Pode mudar a música, por favor?” E de volta eu ia para um jardim cheio de cães felizes.

Mas no final, depois de seis infusões em três semanas, não notei nenhum alívio da minha depressão. Ainda me sentia triste, desanimada e ansiosa; nada havia mudado. Então suspendi tudo. Chega de mãos gigantes e k-holes para mim.

Contudo, eu não consideraria a tentativa um fracasso — nem mesmo um tremendo desperdício de dinheiro. Algo importante restou da minha experiência com cetamina: pela primeira vez eu percebi o quão poderosamente a depressão está arraigada no meu cérebro. Eu a senti fisicamente — o cão negro — agindo dentro de minhas velhas conexões neurais.

Era algo concreto, físico, como sulcos onde os traumas se enfileiram para me trazer maus pensamentos. É por isso que é tão fácil ficar lá, aprisionada pela dor, e por que é preciso tanto esforço para escapar. Entendi que a depressão crônica pode não responder à linguagem e aos pensamentos, e que só uma reprogramação das vias neurais pode ser capaz de expulsá-la.

Infelizmente a cetamina não deu conta do recado. Mas estou pronta e ansiosa para testar qualquer outra coisa que os cientistas tenham na manga (psilocibina, alguém?). No mínimo, aprendi uma lição importante: nada de piadas durante viagens alucinógenas. E nada de palhaços também.


Uma versão deste artigo apareceu na versão impressa do The New York Times de 28/12/2021, Section A, Page 19, com a manchete: “I Took Ketamine for My Depression. Things Got Pretty Weird”. Tradução para o português da autora.