Um país polarizado

Postado em: 27th novembro 2022 por Vanessa Barbara em Crônicas, Uol Esporte
Tags: , , , ,
Rua com bandeiras em Daca, capital de Bangladesh. Imagem: REUTERS/Mohammad Ponir Hossain

Uol Esporte
23 de novembro de 2022

por Vanessa Barbara

Famílias estão divididas. As autoridades buscam controlar a situação. Discussões por vezes terminam em batalhas campais, com pedradas e pauladas distribuídas a esmo. A polícia é frequentemente acionada para acalmar os ânimos. Ao que tudo indica, é possível dividir a população do país ao meio: 80 milhões do lado de cá e 80 milhões do lado de lá.

Estamos falando, é claro, da polarização futebolística em Bangladesh, que já adquiriu contornos míticos na imprensa internacional. Há décadas, o país se divide entre apoiar a seleção do Brasil e a seleção da Argentina. A radicalização só fez aumentar nos últimos anos, chegando a ganhar o apelido de “guerra fria” do jornal Dhaka Tribune.

Na cidadezinha de Rangamati, no sudeste de Bangladesh, o placar atual é de duas pontes a um. As pontes Brahmantila e Puranabasti-Jhulikya foram pintadas de branco e azul celeste. A ponte Asambasti é verde-e-amarela. Um engenheiro da agência estatal responsável pelas duas primeiras negou ao jornal que elas tenham sido pintadas com essa cor em homenagem à seleção argentina. Ele disse que a nova decoração buscou apenas “realçar a beleza das construções”.

Ninguém acredita nele, é claro. Na municipalidade de Betagi, torcedores locais confeccionaram uma bandeira argentina com 92 metros de comprimento; seus rivais responderam com uma bandeira brasileira de 152 metros. Autoridades locais prometeram retirar ambas caso ocorra algum tumulto: “Não há lugar para o caos ao redor da Copa do Mundo”. Lembremos também do intrépido Joynal Abedin Tutul, que em 2014 pintou um prédio de seis andares em Daca com as cores do Brasil.

Já na cidade de Nandail, o alfaiate Abdul Matin e sua esposa passaram seis dias costurando uma bandeira argentina de mais de 900 metros de comprimento, que agora margeia a estrada que leva à estação de trem. Outras bandeiras gigantes dos dois times estão sendo estendidas em várias localidades do país.

E há quem seja ainda mais ousado. Um cidadão bengali chamado Masudur Rahman, que morou no Qatar por dez anos e é fanático pelo futebol portenho, construiu oito miniaturas dos estádios da Copa em Faridpur, para que os habitantes de seu vilarejo possam aproveitar o torneio como se estivessem no país-sede. Ele teve a ajuda de seu sobrinho e cerca de 25 adolescentes da região.

Infelizmente essa guerra insólita, travada a 16 mil quilômetros daqui, não é tão fria quanto deveria. Em junho, mais de trezentas pessoas se envolveram em um tumulto com pedras e tijolos em um campo de críquete no subúrbio da capital Daca, e sete acabaram feridas. (Sim, um campo de críquete.) Eles discordavam sobre quem é melhor no futebol: Argentina ou Brasil. Em 2014, uma luta campal irrompeu em Barisal quando um fã da seleção brasileira mencionou no refeitório da faculdade o gol de mão de Diego Maradona em 1986, que ele chamou de “ilegal”. Onze pessoas ficaram feridas. Semanas depois, um rapaz de 18 anos foi morto durante uma briga a pedradas entre as torcidas rivais.

Hoje cedo, logo após a surpreendente vitória da Arábia Saudita sobre a equipe argentina, dois jovens foram esfaqueados em Savar por causa da rivalidade. Em sua casa, em Cumilla, um torcedor fã do Messi morreu de ataque cardíaco logo após o segundo gol da Arábia Saudita. Imagens da universidade de Daca compartilhadas pelo estudante Mehedi Marof no Twitter mostram uma multidão assistindo muito séria ao jogo, sob um “silêncio de ouvir um alfinete cair”. Foi grande a tristeza dos habitantes.

Na próxima quinta-feira, enquanto os colegas transmitem do Qatar, trarei mais notícias de Bangladesh.


Vanessa Barbara é jornalista e escritora, colaboradora do The New York Times e da revista piauí. É autora da coletânea de crônicas O Louco de Palestra (Companhia das Letras) e do romance Noites de Alface (Alfaguara), que foi adaptado para o cinema em 2021. Como cronista, cobriu os Jogos Olímpicos de 2012 (Londres) e 2016 (Rio), além da Copa do Mundo de 2014, para a Folha de S. Paulo.