A Hortaliça – #093

Postado em: 14th abril 2024 por Vanessa Barbara em Hortaliças
Quando enfim encontramos a cabeça da Benê

Era Vera quem lambia os selos para Nabokov
#093 – São Paulo, 10 abr. 2024
Nesta edição, 100% de cotas para mulheres
E se reclamar vai ter duas
Vlw Flws
https://hortifruti.substack.com


“Morremos de sono, eu, então que já nasci morrendo de sono”
(Clarice Lispector)

“Meus primeiros rascunhos sempre soavam como se tivessem sido escritos por um frango”
(Elizabeth Hardwick)

:: EDITORIAL ::

Esta é uma edição feita só com mulheres sobre mulheres, para comemorar a pré-venda de um certo romance. (É ficção ou não ficção? Flor ou legume? Henry ou Alice James?)

O livro será lançado oficialmente no dia 6 de maio, mas já entrou em pré-venda no site da editora Fósforo. Também publicamos um trecho inédito na edição de abril da revista piauí.

Pedimos desculpas pela autopromoção desavergonhada e pelo excesso de aspas inglesas nesta edição. O fato é que amamos as serifas e ninguém irá nos impedir de utilizá-las. [Evocar mentalmente a foto do Suplicy sendo levado pela polícia militar e da Greta Thunberg dentro do camburão.]

Homens descontentes com esta inequívoca manifestação de misandria devem enviar suas moções de protesto para o endereço: Praça Tito, S/N – Mandaqui – São Paulo – SP. Cep: 02419-070. É aconselhável encaminhar o documento via notificação extrajudicial ou, opcionalmente, contratar uma advogada que interponha uma medida preventiva para aceitação da queixa. A resposta chegará em dezessete dias úteis via tegrama fonado.

https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/tres-camadas-de-noite/


:: VERA LAMBIA OS SELOS ::

Jenny Offill, Departamento de especulação

As mulheres quase nunca se tornam “monstros da arte” porque monstros da arte só se preocupam com arte, nunca com coisas mundanas. Nabokov nem chegava a fechar o próprio guarda-chuva. Vera lambia os selos para ele.


:: DEFINIÇÃO ::

Rebecca SolnitOs homens explicam tudo para mim

O feminismo, como a escritora Marie Sheer observou em 1986, “é a ideia radical de que as mulheres são pessoas”, uma ideia que não é universalmente aceita mas que, ainda assim, está se espalhando.


:: TODAS AS MANHÃS ::

Sylvia PlathThe Letters of Sylvia Plath Vol 2

Devo apenas escrever decididamente todas as manhãs pelos próximos anos, em meio a ciclones, encanamento congelado, doenças pediátricas e solidão.


:: BRUXAS PRATICANTES::

Ruth FranklinShirley Jackson: A Rather Haunted Life

Mais tarde, Shirley faria afirmações ousadas, ainda que muitas vezes jocosas, sobre seus próprios poderes ocultos, desde os dizeres na orelha de seu primeiro romance — “talvez a única escritora contemporânea que é uma bruxa amadora praticante” — até o boato de que ela havia feito o editor Alfred A. Knopf quebrar a perna em um acidente de esqui.


:: BOLAS DE FLUNFA ::

A única participação masculina da edição

“Todas as mulheres são pequenas bolas de flunfa aos olhos do Criador”
(Donald Pomerlau, comissário da polícia de Baltimore, testemunhando num caso de discriminação de gênero)


:: TEXTÃO CARAMELOSO ::

Paola Klug, traduzido por Rui Sá

Minha avó me dizia que, quando uma mulher se sentisse triste, o melhor que podia fazer era trançar o seu cabelo, de modo que a dor ficasse presa nele e não pudesse atingir o resto do corpo. Havia que ter cuidado para que a tristeza não entrasse nos olhos, porque iria fazer com que chorassem. Também não era bom deixar entrar a tristeza nos lábios, porque iria forçá-los a dizer coisas que não eram verdadeiras; e que também não se metesse nas mãos porque se pode deixar tostar demais o café ou queimar a massa. […] Trança a tua tristeza, dizia. Trança sempre a tua tristeza.

Fotografia tirada na Nicarágua por Candelaria Rivera


:: QUE TRANÇA QUE NADA ::
Melhor seria ter cobras nos cabelos

Fique feliz que nós só queremos igualdade. E não retaliação.


:: LIMITE ::
Sylvia Plath, “Edge”, tradução de Marília Garcia

A mulher está completa.
Morto,

Seu corpo traz um sorriso de êxito,
O ideal de uma exigência grega

Transborda das dobras de sua toga.
Os pés

Descalços parecem dizer:
Viemos até aqui, chegou o fim.

As crianças mortas enroladas, serpentes brancas,
Uma em cada

Vasilha de leite, agora vazia.
Ela recolhe em seu

Corpo as crianças como se fossem pétalas
De uma rosa que se fecha quando o jardim

Enrijece e os cheiros sangram
Da garganta funda e doce de uma flor noturna.

A lua não tem motivos para ficar triste
Espiando do alto de seu capuz de osso.

Está acostumada a essas coisas.
Seu lado escuro se parte e se arrasta.


:: SOBRE LAVAR OS CABELOS ::

Sylvia PlathA redoma de vidro

Parecia idiota lavá-los um dia quando eu teria de lavá-los de novo no outro dia. Eu ficava cansada só de pensar. Queria fazer tudo de uma vez e acabar logo com isso.


:: A SOLUÇÃO E O PROBLEMA ::

Leslie JamisonSplinters

Nos dias em que me encontrava presa em intermináveis discussões internas — do tipo que você continua litigando, mesmo sabendo que não pode vencer — eu levava minha filha de volta para Winogrand. Suas fotografias faziam o mundo crescer em torno do meu ressentimento. Isso parecia mais possível do que “deixar pra lá” e certamente mais possível do que resolver a questão. Eu poderia simplesmente aparecer no corredor de estranhos e deixá-los circundar os meus problemas. Na reabilitação [dos Alcoólicos Anônimos], as pessoas gostam de dizer: “Às vezes a solução não tem nada a ver com o problema”, e as fotografias de Winogrand não tinham nada a ver com os meus problemas. Eles apenas me lembraram do mundo comum e infinito – como ele ainda estava lá fora esperando. Naquela galeria escura, ajoelhei-me ao lado do carrinho da minha filha, alimentando-a com Cheerios para mantê-la feliz, e parecia tão certo estar ajoelhada naquele quarto escuro, no meio de estranhos.


:: A SOLUÇÃO E O PROBLEMA – PT. 2 ::

Leslie JamisonSplinters

Sentir falta da minha filha não era um problema a ser resolvido. Era algo que podia ser respondido com uma beleza estonteante e ordinária, e depois deixado intacto – a dor vivendo por trás do brilho, tanto sua sombra quanto sua espinha dorsal.

:: DORMINDO COMO UM BEBÊ ::
Jenny Offill, Departamento de especulação

E essa expressão: “Dormindo como um bebê”? Outro dia, uma loira falou isso casualmente no metrô. Eu tive vontade de deitar ao lado dela e gritar por cinco horas em seu ouvido.


:: ESTADO PERPÉTUO DE ALARME ::

Begoña Gómez UrzaizAs abandonadoras

Quem cuida de crianças pequenas, e todos que já o fizeram sabem disso, vive num estado perpétuo de alarme. O que quer que passe por sua cabeça será invadido e saqueado a qualquer momento, e a certeza de que esse assédio está na iminência de acontecer faz com que pensar, abstrair-se, vire uma atividade furtiva.


:: UMA ÁRVORE ::
Clarice LispectorTodas as cartas

Paulinho me perguntou que é que eu faria se Deus tivesse me dado, em vez de boys, uma árvore… Achei que seria provavelmente mais fácil.


:: EXATAMENTE O ESFORÇO QUE MERECE ::

Ayelet WaldmanBad Mother

[…] Mas meu favorito é o sobrinho de Carlie William. Diante da tarefa de construir uma maquete em gesso de um dos cinquenta estados norte-americanos, o garoto escolheu Nebraska. Fez um retângulo plano. Como disse sua tia, “É preciso amar uma criança que investe na lição de casa precisamente o esforço que ela merece”.


:: RECOLHENDO COISAS ::

Shirley JacksonRaising Demons

Dia após dia, eu andava pela casa recolhendo coisas. Pegava livros, sapatos, brinquedos, meias, camisetas, luvas, botas, chapéus, lenços, peças de quebra-cabeças, moedas, lápis, coelhos de pelúcia e ossos que os cachorros tinham deixado embaixo das cadeiras da sala. Também pegava soldadinhos de chumbo, carrinhos de plástico, luvas de beisebol, suéteres e bolsinhas infantis com moedas dentro e pedacinhos de fiapos caídos do chão. Cada vez que eu pegava algo, colocava a coisa de volta em um outro lugar que me parecia melhor do que onde encontrei.


:: BOM CONSELHO ::

Silvia FedericiO ponto zero da revolução

Se o governo está disposto a pagar as mulheres só quando elas cuidam dos filhos dos outros, então as mulheres deviam “trocar de filhos”.


: UM COM O OUTRO ::

Leslie JamisonSplinters

Um aviso [na capela em Las Vegas] mostrava os nomes cursivos de Michael Jordan e Joan Collins com um coração no meio, casados aqui, como se eles tivessem se casado um com o outro. Tudo era possível naquela cidade.

:: SÓ NOS FALTA O BOTÃO ::
Jenny Offill, Departamento de especulação

Há uma história sobre um prisioneiro em Alcatraz que passava as noites na solitária deixando cair um botão no chão e tentando encontrá-lo no escuro. Dessa forma, todas as noites, ele passava as horas até o amanhecer. Eu não tenho um botão. Em todos os outros aspectos, minhas noites são iguais.


:: DIA SIM, DIA NÃO ::
Rebecca SolnitOs homens explicam tudo para mim

Alguns homens explicaram por que homens explicando coisas para as mulheres não era exatamente um fenômeno de gênero.


:: O QUE QUER QUE VOCÊ DESEJAR ::

Megan K. StackWomen’s Work

E ainda assim eu me perguntava: por que será que, o que quer que você desejar, é possível encontrar uma mulher pobre para vendê-lo?


:: A ESCRITORA POSSÍVEL ::

Alice Munro, “The Art of Fiction”, The Paris Review 137

[…] Todo esse processo pode levar até uma semana, o tempo de tentar examinar o conto, tentar recuperá-lo, depois desistir e pensar em outra coisa, e então voltar a ele, em geral de forma bastante inesperada, quando estou no mercado ou dirigindo. Eu penso: ah, sim, tenho que escrever do ponto de vista de fulano de tal, e tenho que cortar esse personagem, e é claro que essas pessoas não são casadas, ou algo assim. A grande mudança, que geralmente é a mudança radical. [E isso faz o conto funcionar?] Eu nem sei se faz a história ficar melhor. Mas faz com que seja possível que eu continue a escrever.


:: FALANDO NISSO ::
“Dona-de-casa encontra tempo para escrever contos”

Alice Munro com as filhas em artigo no Vancouver Sun, 1961

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Agradecimentos: Google Translator. Quando possível, oferecemos o link para as edições traduzidas para o português.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

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