A Hortaliça – #098

Postado em: 6th setembro 2024 por Vanessa Barbara em Hortaliças
Capa: “Desenho de observação”, Batata, 2023

Poodles agressivos e pombos tocando piano

#098 – São Paulo, 6 de setembro de 2024
O que uma pessoa normal faria?
Discite, o miseri, et causas cognoscite rerum*
www.hortifruti.org

Não estou outra vez muito mal. É a mesma vez.”
(autor desconhecido)

:: EDITORIAL ::

Passamos os últimos dias tentando identificar o autor dessa pérola acima, sem sucesso. Primeiro pensamos em Flaubert, mas relemos todo o conteúdo de Cartas exemplares e nada. Parecia mesmo algo dito em carta. Depois pensamos em Kafka. Mas de tanto pensar em Kafka ficamos imensamente deprimidos e desistimos de procurar.

Se algum leitor tiver uma pista de quem emitiu essa frase, com a qual nos identificamos muitíssimo, faça o favor de escrever: vmbarbara@yahoo.com.

Ah, esta edição contém os originais dos trechos citados, a pedidos dos leitores anglófonos. Ficou feio? Ficou. Mas é o que tem pra hoje.


:: MENOS ADIANTADO ::
Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Louise Colet
2h, 20 abril 1853

Quanto a mim, acabo ficando tão aborrecido comigo quanto com os outros. Há três semanas que estou a escrever dez páginas! Passo dias inteiros a mudar palavras repetidas, a evitar assonâncias! E quando trabalho bem, estou menos adiantado no fim do dia do que no começo. 


:: ANEDOTA SOBRE JAMES JOYCE ::
Stephen King, On Writing

De acordo com a história, um amigo veio visitá-lo um dia e encontrou o grande homem esparramado em sua escrivaninha em uma postura de desespero total. “James, o que há de errado?”, perguntou o amigo. “É o trabalho?” Joyce indicou assentimento sem nem levantar a cabeça para olhar o amigo. Claro que era o trabalho; não é sempre? “Quantas palavras você conseguiu hoje?”, o amigo continuou. Joyce (ainda em desespero, ainda esparramado de bruços em sua mesa): “Sete.” “Sete? Mas James… isso é bom, pelo menos para você!” “Sim”, disse Joyce, finalmente erguendo o olhar. “Suponho que sim… mas não sei em que ordem elas vão!”

[According to the story, a friend came to visit him one day and found the great man sprawled across his writing desk in a posture of utter despair. ‘James, what’s wrong?’ the friend asked. ‘Is it the work?’ Joyce indicated assent without even raising his head to look at the friend. Of course it was the work; isn’t it always? ‘How many words did you get today?’ the friend pursued. Joyce (still in despair, still sprawled facedown on his desk): ‘Seven.’ ‘Seven? But James . . . that’s good, at least for you!’ ‘Yes,’ Joyce said, finally looking up. ‘I suppose it is . . . but I don’t know what order they go in!’]


:: SER TORRADEIRA ::
Mihaly Csikszentmihalyi, Flow

É como se, quando a torradeira da minha mãe pifou, eu me perguntasse: “Se eu fosse essa torradeira e não funcionasse, o que poderia estar errado comigo?”

[“Like when my mother’s toaster went on the fritz, I asked myself: ‘If I were that toaster and I didn’t work, what would be wrong with me?’”]


:: SER SALMÃO ::

David Adam, The Man Who Couldn’t Stop

Em 2005, neurocientistas na Califórnia colocaram um salmão do Atlântico comprado de um peixeiro local em uma máquina de ressonância magnética. Eles mostraram ao peixe morto uma série de fotografias enquanto escaneavam sua reação. “Ao salmão”, os cientistas relataram mais tarde, “foi pedido que identificasse qual emoção o indivíduo na foto estava sentindo”. Parece tolo, mas é um passo comum e necessário para calibrar máquinas de ressonância magnética e ver se está tudo bem antes que voluntários humanos sejam introduzidos.

Os cientistas da Califórnia também tentaram com uma abóbora, que tem aproximadamente o mesmo tamanho e peso de uma cabeça humana. As amostras de controle — animal ou vegetal — obviamente não devem produzir resultados.

No entanto, quando os neurocientistas analisaram a respostas dos exames do salmão, encontraram uma coisa curiosa. Os resultados pareciam mostrar o salmão pensando. Diante das fotografias, partes de seu cérebro de peixe se iluminaram. O sinal anômalo deveu-se a uma falha técnica e estatística, um ruído aleatório na forma com que o software da máquina processava os sinais.

[In 2005, neuroscientists in California put an Atlantic salmon bought from a local fishmonger into their MRI machine. They showed the dead fish a series of photographs and scanned for its response. ‘The salmon’, the scientists later reported, ‘was asked to determine what emotion the individual in the photo must have been experiencing.’ It sounds silly, but it’s a common and necessary step to calibrate MRI machines and check all is good before human volunteers are introduced. The California scientists tried it with a pumpkin too, because one is about the same size and weight as a human head. The test samples – animal or vegetable – of course are not supposed to yield results. Yet, when the neuroscientists looked at the output of the scans of the salmon, they found a curious thing. The results appeared to show the salmon thinking. Shown the photographs, parts of its fishy brain had lit up. The rogue signal was down to a technical and statistical glitch, random noise in the way the scanner’s computer software processed the signals.]


:: DIFÍCIL PLANEJAR O DIA ::
E. B. White, em perfil no New York Times

Eu acordo de manhã dividido entre o desejo de melhorar (ou salvar) o mundo e o desejo de aproveitar (ou saborear) o mundo. Isso torna difícil planejar o dia.

[I arise in the morning torn between a desire to improve (or save) the world and a desire to enjoy (or savor) the world. This makes it hard to plan the day.]


:: VEM, PRIMAVERA ::

Charles Darwin, The Voyage of the Beagle

Que diferença faz o clima no aproveitamento da vida!

[What a difference does climate make in the enjoyment of life!]


:: LEVANTA-TE E ANDA ::
Michael Lewis, The Undoing Project

A regra de Amos [Tversky], sempre que ele queria sair de qualquer reunião, era simplesmente se levantar e ir embora. Basta começar a andar e você ficará surpreso com o quão criativo você se tornará e quão rapidamente encontrará as palavras para sua desculpa, ele dizia. A atitude de Amos em relação à desordem da vida diária era uma parte de sua estratégia para lidar com as demandas sociais.

[Amos’s rule, whenever he wanted to leave any gathering, was to just get up and leave. Just start walking and you’ll be surprised how creative you will become and how fast you’ll find the words for your excuse, he said. His attitude to the clutter of daily life was of a piece with his strategy for dealing with social demands.]


:: BOLETOS MENSAIS ::
Alba de Céspedes, Caderno proibido

Giacinta garantia persuadir o marido a pagar todo mês o boleto da luz, cujo vencimento é bimestral; Luisa sustentava que é preferível aumentar a conta das despesas com as crianças: “É o único método seguro”, afirmava, rindo, e nesse riso fazia estremecer o ramalhetezinho de violetas pregado no cetim branco do chapéu. “Nas férias, sempre que perco no jogo, as crianças têm uma amigdalite ou um resfriado.”


:: NO HARM DONE ::
Mary Norris, Between You & Me

“Primeiro nós tiramos as pedras, Alice. Depois tiramos os seixos. Depois tiramos a areia, e a voz do escritor vem à tona. Nenhum dano causado.”

[“First we get the rocks out, Alice. Then we get the pebbles out. Then we get the sand out, and the writer’s voice rises. No harm done.”]


:: FANTASIAS MATERNAS ::

Lucy Jones, Matrescence

Brincávamos indiretamente sobre o estresse que estávamos sofrendo, sobre a “fantasia materna do hospital” — a ideia de que quebrar um membro menor seria uma boa maneira de descansar e de ser cuidado por uma noite.

[We joked obliquely about the stress we were under, about the ‘maternal hospital fantasy’ – the idea that breaking a minor limb would be a good way to get a rest and be looked after for a night.]


:: POODLES AGRESSIVOS ::
Tara Haelle e Emily Willingham, The Informed Parent

Também não há como rastrear com precisão vários incidentes de um único cão, a fim de que um poodle particularmente agressivo não seja contabilizado como cinco cães diferentes.

[There is also no way to accurately track multiple incidents from a single dog so that one particularly aggressive poodle isn’t counted as five different dogs.]


:: OFENSAS LITERÁRIAS ::
Kathryn Schulz, “The Secrets of Suspense”

Não posso, em sã consciência, recomendar Um par de olhos azuis, que traz à mente a observação de T. S. Eliot sobre [Thomas] Hardy — que “às vezes seu estilo toca o sublime sem nunca ter passado pelo estágio de ser bom”.

[I cannot in good conscience recommend “A Pair of Blue Eyes,” which brings to mind T. S. Eliot’s observation about Hardy—that “at times his style touches sublimity without ever having passed through the stage of being good.”]


:: SEMPRE UM HOMEM ::
Rebecca Solnit, Os homens explicam tudo para mim

Alguns homens explicaram por que explicar coisas para mulheres não era realmente um fenômeno de gênero.

[Some men explained why men explaining things to women wasn’t really a gendered phenomenon.] 


:: PENSANDO BEM ::
Oliver Sacks, On the move

Jerry tem sido um bom amigo e, de uma forma ou de outra, uma espécie de guia e mentor implícito. Parece não haver limites para sua curiosidade e conhecimento. Ele tem uma das mentes mais amplas e racionais que já conheci, com uma vasta base de conhecimento de todos os tipos, mas é uma base que se encontra continuamente sob questionamento e escrutínio. (Já o vi parar de repente no meio de uma frase e dizer: “Não acredito mais no que eu estava prestes a dizer.”)

[Jerry has been a good friend and, at one level and another, a sort of guide and implicit mentor. There seem no limits to his curiosity and knowledge. He has one of the most spacious, thoughtful minds I have ever encountered, with a vast base of knowledge of every sort, but it is a base under continual questioning and scrutiny. (I have seen him suddenly stop in mid-sentence and say, “I no longer believe what I was about to say.”)]


:: O MÁXIMO QUE PODEMOS FAZER ::
Bill Hayes, Insomniac City

22 de abril de 2015. O[liver Sacks]: “O máximo que podemos fazer é escrever — de forma inteligente, criativa, crítica e evocativa — sobre como é viver no mundo neste momento.”

[4-22-15: O: “The most we can do is to write—intelligently, creatively, critically, evocatively—about what it is like living in the world at this time.”]


:: POMBOS TOCANDO PIANO ::

Michael Lewis, The Undoing Project

[Skinner] ensinou pombos a dançar, a jogar pingue-pongue e a martelar “Take Me Out to the Ball Game” no piano.

[He taught pigeons to dance and play Ping-Pong and bang out “Take Me Out to the Ball Game” on a piano]. 


:: ESCRITORES FALANDO ::

Escrevemos e narramos a segunda história neste episódio recente do podcast Rádio Novelo Apresenta. É como um pombo tocando piano.

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*Do latim: “Aprendei, ó infelizes, e conhecei as causas das coisas”, Pérsio, Satirae, 3.66. Em Das terras bárbaras, de Ricardo da Costa Aguiar.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

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