A Hortaliça – #101

Postado em: 9th janeiro 2025 por Vanessa Barbara em Hortaliças

Uma das coisas mais sérias e importantes que você poderá ter lido

#101 – São Paulo, 10 de dezembro de 2024
A alpaca natalina astronauta deseja a todos boas festas
Nas intermitências de nossa idiotice
www.hortifruti.org

“Ah! Onde vais, pequeno rastejante?
Tua imprudência te protege muito pouco”
(Robert Burns, “A um piolho”)


Hoje, um terço das mortes do mundo tem alguma relação com moscas.”
(Richard Gordon, A assustadora história da medicina)

:: EDITORIAL :

Temos a alegria de informar que nossa obsessão pela Barbara Ehrenreich está chegando ao fim (não restam mais livros na bibliografia), porém, para azar geral dos leitores, saíram em novembro dois relatórios da PF — de 218 e 884 páginas — que nos divertiram muito. De modo que os senhores e as senhoras terão de se conformar com uma exposição tóxica aos trechos mais aleatórios desses documentos.

No mais, a alpaca natalina astronauta gostaria de desejar boas festas a quem é de festas e boas férias a quem tem férias. Não se esqueçam de depositar polpudas contribuições natalinas para custear nosso décimo-terceiro, vale-alimentação, abono salarial, PIS/Cofins, convênio odontológico e auxílio-insalubridade. Lembrem-se pecuniariamente daqueles que lhes trouxeram entretenimento da mais alta qualidade durante todo o ano de 2024. (Sim, estou falando da polícia federal.)

Um aviso final: esta Hortaliça será um pouco longa, mas, além de ilustrativa, é uma das coisas mais sérias e importantes que você poderá ter lido.


:: UM CARA QUE PUBLICOU UM TWEET ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 33

Dois caras da Abin conversando:


:: AINDA ELES ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 33


:: FALTA DE CONTROLE ::

Barbara Ehrenreich, Natural Causes

Quando a noção de “estresse” foi criada em meados do século XX, a ênfase estava na saúde dos executivos, cujas ansiedades supostamente superavam as de um trabalhador braçal sem grandes decisões a tomar. Acontece, porém, que a quantidade de estresse que alguém experimenta — medida pelos níveis sanguíneos do hormônio do estresse cortisol — aumenta conforme você desce na escala socioeconômica, com o maior estresse sendo infligido àqueles que têm menos controle sobre seu trabalho.

[When the notion of “stress” was crafted in the mid-twentieth century, the emphasis was on the health of executives, whose anxieties presumably outweighed those of a manual laborer who had no major decisions to make. It turns out, however, that the amount of stress one experiences—measured by blood levels of the stress hormone cortisol—increases as you move down the socioeconomic scale, with the most stress being inflicted on those who have the least control over their work.]


:: FAIT-DIVERS ::
Ben Taub, “Murder in Malta

Um idoso na cidade de Gozo (Malta) bateu na esposa com um peixe; ela caiu da escada e morreu, e ele cozinhou e comeu a arma do crime.

[An old man in Gozo smacked his wife with a fish; she fell down the stairs and died, and he cooked and ate the murder weapon.]


:: MERITOCRACIA ::
Pedro Fernando Nery, Extremos

No Brasil, para o filho de uma família de baixa renda chegar à renda média do país são necessárias nove gerações.


:: GOLZINHO NO BANHO DE SOL ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 247

Dois militares conversam sobre quem assinou a Carta dos Oficiais da Ativa ao Comandante do Exército, um documento que pedia a intervenção militar.

O povo brasileiro clama pela concretização desse golzinho.


:: DOCUMENTO ::

Rosa Freire d’Aguiar, Sempre Paris

Na Alemanha, o jornalista Arthur José Poerner, privado de passaporte, usava como documento a velha carteirinha do Clube de Regatas Flamengo, cuja capa de couro preto parecia respeitável.


:: GRITO DE GUERRA ::
Jake Offenhartz, New York’s Clock Master to City Hall

Recentemente, um grupo de idosos se reuniu em frente ao hotel Trump, no oeste do Central Park, para pedir mais banheiros públicos. (Entre seus gritos: “Two, four, six, eight, we just want to urinate!”)

[Recently, a group of old men assembled outside the Trump hotel on Central Park West to agitate for more public toilets. (Among their chants: “Two, four, six, eight, we just want to urinate!”)]


:: AS MAIS INTOLERÁVEIS ::
William Styron, Darkness Visible

Pois em praticamente qualquer outra doença séria, um paciente que sentisse uma devastação semelhante estaria deitado na cama, possivelmente sedado e conectado a tubos e fios dos sistemas de suporte de vida, mas, no mínimo, em uma postura de repouso e em um ambiente isolado. Sua invalidez seria necessária, inquestionável e honrosamente obtida. No entanto, quem sofre de depressão não tem essa opção e, portanto, encontra-se como uma vítima ambulante de guerra, empurrado para as mais intoleráveis ​​situações sociais e familiares. Lá, apesar da angústia que devora seu cérebro, ele deve exibir uma expressão que se aproxime daquela que é associada a eventos comuns e amizade.

[For in virtually any other serious sickness, a patient who felt similar devastation would be lying flat in bed, possibly sedated and hooked up to the tubes and wires of life-support systems, but at the very least in a posture of repose and in an isolated setting. His invalidism would be necessary, unquestioned and honorably attained. However, the sufferer from depression has no such option and therefore finds himself, like a walking casualty of war, thrust into the most intolerable social and family situations. There he must, despite the anguish devouring his brain, present a face approximating the one that is associated with ordinary events and companionship.]


:: FILOSOFIA DE VIDA ::
Rivka Galchen, “A New Doctor Faces The Coronavirus in Queens

No caminho, digo a mim mesmo: vou aparecer. Se eu simplesmente continuar aparecendo, algo bom vai sair disso de forma acumulada, ao longo do tempo.

[On my way over, I say to myself, I’m going to show up. If I just keep showing up, something good will come of it compounded over time.”]


:: RATOS VELHOS ::

Joseph Mitchell, “Thirty-Two Rats From Casablanca

Exterminadores se referem a ratos velhos como Moby Dicks. “Ratos que sobrevivem até os quatro anos são os animais mais sábios e cínicos da Terra”, diz um exterminador. “Uma armadilha não significa nada para eles, não importa o quão habilmente preparada. Eles apenas a chutam até que ela arrebente; então eles comem a isca. E eles podem detectar iscas envenenadas a um metro de distância. Acredito que alguns deles sabem ler. Se você tiver alguns Moby Dicks em sua casa, há apenas duas coisas que você pode fazer: esperar que eles morram ou queimar sua casa e começar tudo de novo.”

[Exterminators refer to old rats as Moby Dicks. “Rats that survive to the age of four are the wisest and the most cynical beasts on earth,” one exterminator says. “A trap means nothing to them, no matter how skillfully set. They just kick it around until it snaps; then they eat the bait. And they can detect poisoned bait a yard off. I believe some of them can read. If you get a few Moby Dicks in your house, there are just two things you can do: you can wait for them to die, or you can burn your house down and start all over again.”]


:: COISAS SÉRIAS E IMPORTANTES ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 156


:: A MORTE ::
Barbara Ehrenreich, Natural Causes

Arrependimento, certamente, e um dos meus maiores arrependimentos é o de não estar presente para acompanhar o progresso científico nas áreas que me interessam, que são praticamente todas.

[Regret, certainly, and one of my most acute regrets is that I will not be around to monitor scientific progress in the areas that interest me, which is pretty much everything.]


:: NARIZES ::
George Saunders, A Swim in a Pond in the Rain

Gogol era obcecado por narizes, tinha medo de sanguessugas e vermes; ele conseguia, aparentemente, tocar o topo do seu (longo) nariz com a ponta da língua.

[Gogol was obsessed with noses, afraid of leeches and worms; he could, apparently, touch the top of his (lengthy) nose with the tip of his tongue.]


:: ALEGRIA DE GOGOL ::
George Saunders, A Swim in a Pond in the Rain

Mas seríamos negligentes se não reconhecêssemos que a arma principal de Gogol é a alegria. Minha parte favorita da história — uma parte que não me parece nem velha nem nova, mas atemporal — acontece no início da cena no escritório do jornal quando, de alguma forma, magicamente, um grupo de pessoas esperando para colocar anúncios se transforma naquilo para o qual estão anunciando, e de repente o pequeno escritório está cheio de “um cocheiro de conduta sóbria… uma serva de dezenove anos… um droshky sólido com uma mola faltando… um cavalo cinza malhado jovem e selvagem… uma residência de verão com todos os apetrechos”.

[But we’d be remiss if we didn’t acknowledge that Gogol’s main currency is joy. My favorite part of the story—a part that feels neither old or new but timeless—comes toward the beginning of the scene in the newspaper office when somehow, magically, a group of people waiting to place ads get transformed into that for which they are advertising, and suddenly that little office is full of “a coachman of sober conduct…a nineteen-year-old serf girl…a sound droshky with one spring missing…a young and fiery dappled-gray horse…a summer residence with all the appurtenances.”]


:: SE CONTINUARMOS ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 734

Em 27 de dezembro de 2022, um assessor de Bolsonaro pergunta ao general Braga Netto para quem deveria encaminhar o currículo de uma amiga.


:: IMPOTÊNCIA ::

Giles Harvey, “What Alice Munro Knew

Como uma escritora capaz de tanto poder na página poderia se mostrar tão impotente na vida real? […] Enfatizando que não tinha nenhum desejo de fornecer desculpas para sua mãe, Sheila disse que acredita que Fremlin “aliciou” Munro junto com Andrea, citando a maneira como Munro passou a vê-la como uma rival sexual. “Isso vem direto do manual do abusador”, [Judith] Herman disse recentemente quando descrevi a teoria de Sheila para ela. “É instrutivo ver como até mesmo alguém tão talentoso quanto Munro era vulnerável a esse tipo de controle coercitivo.”

[How could a writer who was capable of such power on the page prove so feeble in real life? […] Stressing that she had no desire to make excuses for her mother, Sheila said she believes that Fremlin groomed Munro along with Andrea, citing the way Munro came to see her as a sexual rival. “That’s straight out of the abuser’s playbook,” [Judith] Herman said recently when I described Sheila’s theory to her. “Seeing how even someone as gifted as Munro was vulnerable to this kind of coercive control is instructive.”]


:: ÁLIBIS ::
Relatório da tentativa de golpe, p. 237 e 326


:: NOTA DE RODAPÉ SINCERONA ::
John Earman, World Enough and Space-Time

Qualquer leitor que, após completar este livro, acreditar que qualquer uma das teses de Reichenbach se sustenta sem maiores qualificações é cordialmente convidado a jogar este livro na fogueira.

[Any reader who, after completing this book, believes that any of Reichenbach’s theses stands without major qualifications is cordially invited to commit this book to the flames.]


:: NAS INTERMITÊNCIAS DE NOSSA IDIOTICE ::

Gustave Flaubert, Cartas exemplares

A Louis Bouilhet
7 junho 1856

Agora estou lendo algo que não tem nada de humanoHistória do Maniqueísmo de Beausobre, dois volumes in-quarto de 500 páginas cada um — sempre para Santo Antônio! Nas intermitências de minha idiotice, acho que sou louco. Enfim, é preciso seguir sua inclinação. Por que se incomodar sempre?


:: MATERIAL DE SUAS VIDAS QUÂNTICAS ::
Ian Parker, “Eric Adam’s Administration of Bluster

O prefeito aparentemente se reserva o direito de misturar incidentes de sua vida com material de suas vidas quânticas: coisas que poderiam ter acontecido, ou quase acontecido, ou acontecido a alguém que ele conheceu. Todos os potenciais existem simultaneamente.

[The Mayor apparently reserves the right to mix incidents from his own life with material from his quantum lives: things that could have happened, or almost happened, or happened to someone he once met. All potentials exist simultaneously.]


:: RECADO DE PAUL FEYERABEND ::

Gonzalo Munevar, Beyond Reason

“O que eu realmente sou: um lavador de louças.”

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“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)

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