A Hortaliça – #102

Postado em: 13th janeiro 2025 por Vanessa Barbara em Hortaliças
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Pode escrever no meu caderninho, Maura

#102 – São Paulo, 13 de janeiro de 2025
Ursos se mudaram para cá
www.hortifruti.org

“Vocês terão mais propriedades de frente para o mar. […] Isso não é bom?”
(Donald Trump, sobre o aquecimento global)

“Se não há nada, então há tanto de mau quanto de bom”
(Friedrich Vischer, Auch Einer)

:: EDITORIAL :

Em 6 de janeiro de 2025, a redação de A Hortaliça foi invadida por ursos, que prontamente inundaram os banheiros, esmigalharam as cadeiras e comeram os nossos panetones. Um deles ateou fogo à sala de vassouras. Outros tentaram usar a cafeteira. Foram ursos que selecionaram os trechos, redigiram e diagramaram esta edição, o que explica muita coisa, pelo menos desta vez.

No mês que vem completaremos um ano de hortifrutigranjeiros nesta plataforma — quem diria. Agora dividimos a redação com cinco ou seis ursos, que espalham lixo pelo chão e sugerem passagens absurdas de obras em alemão. Ainda não fomos devorados porque vivemos de braços para cima, a fim de parecermos mais altos.

E aqui vai um Feliz Ano Novo a todos os seres plantígrados.


:: COM UM URSO DENTRO ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Os ursos aprenderam a desatarraxar tampas. Eles sabem como abrir portas de vidro deslizantes. Eles vão vagar de carro em carro, testando maçanetas. Ryan Welch, o fundador da mais antiga empresa de dissuasão de ursos de Tahoe, a Bear Busters, me contou sobre uma mulher que relatou o desaparecimento de seu Prius; a polícia encontrou o carro no sopé da colina onde ela o havia estacionado, com um urso dentro.

[Bears have learned how to unscrew lids. They know how to open sliding glass doors. They’ll prowl from car to car, trying handles. Ryan Welch, the founder of Tahoe’s oldest bear-deterrent company, Bear Busters, told me about a woman who reported her Prius missing; the police found the car at the bottom of the hill that she’d parked it on, with a bear inside.]


:: MAIS BURRICE ::
Bill McKibben, “Could Talking About Climate Change…?”

A indústria de combustíveis fósseis aparentemente presume a mesma coisa: ela tem arrecadado dinheiro aos barris para Trump, que prometeu “perfurar, perfurar, perfurar” e observou: “Eu odeio o vento”.

[The fossil-fuel industry apparently assumes the same thing: it has been raising money at Spindletop rates for Trump, who has promised to “drill, drill, drill” and has noted, “I hate wind.”]


:: TODOS OS ANOS ::
Barbara Ehrenreich, Bright-Sided

A parcela da renda antes dos impostos que vai para o 1% mais rico das famílias americanas aumentou em 7 pontos percentuais de 1979 a 2007, para 16%, enquanto a parcela da renda que vai para os 80% mais pobres caiu em 7 pontos percentuais. Como David Leonhardt observou no New York Times: “É como se cada família naqueles 80% mais pobres estivesse preenchendo um cheque de US$ 7.000 todo ano e o enviando para o 1% mais rico.”

[The share of pretax income going to the top 1 percent of American house holds rose by 7 percentage points from 1979 to 2007, to 16 percent, while the share of income going to the bottom 80 percent fell by 7 percentage points. As David Leonhardt put it in the New York Times: “It’s as if every house hold in that bottom 80 percent is writing a check for $ 7,000 every year and sending it to the top 1 percent.”]


:: COISAS QUE RESTAM ::
Sylvia Plath, The Letters of Sylvia Plath Volume 1

Mas existe aquele princípio humano de que não importa o quanto seja tirado, sempre sobra algo com que construir novamente.

[But there is that human principle that no matter how much is taken away there is always something left with which to build again.]


:: HOMENS EXPLICAM ::

Cat Bohannon, Eve

No século XV, Bartholomäus Metlinger escreveu o primeiro manual europeu de pediatria. Apesar da falta de seios do alemão, ele não hesitou em explicar o leite das mulheres e o que fazer com ele: “Nos primeiros 14 dias, é melhor que outra mulher amamente a criança, pois o leite da mãe não é tão saudável, e durante esse tempo a mãe deve ter seu seio sugado por um jovem lobo”.

[In the fifteenth century, Bartholomäus Metlinger wrote the first European textbook for pediatrics. Despite the German’s own lack of breasts, he didn’t hesitate to mansplain women’s milk and what to do with it: “The first 14 days it is better that another woman suckle the child as the milk of the mother of the child is not as healthy, and during this time the mother should have her breast sucked by a young wolf.”]


:: REDES SOCIAIS ::
Max Fisher, The Chaos Machine

Era como entrar em uma fábrica de cigarros e ouvir os executivos dizendo que não conseguiam entender por que as pessoas continuavam reclamando dos impactos à saúde das pequenas caixas de papelão que vendiam.

[It was like walking into a cigarette factory and having executives tell you they couldn’t understand why people kept complaining about the health impacts of the little cardboard boxes that they sold.]


:: DIETA DE MORANGOS ::

Adam Gopnik, “Does the Enlightment’s Great Female Intelect…?”

Bernard de Fontenelle, o grande acadêmico e autor de um dos primeiros livros de ciência popular, Conversas sobre a Pluralidade dos Mundos, era um frequentador assíduo da mesa de seu pai, e dizia-se que se deliciava em conversar com Émilie. (Já velho quando a conheceu, Fontenelle viveu com boa saúde até o final dos seus noventa anos, e era famoso por ter dito, aos noventa e dois, ao conhecer uma bela mulher: “Ah, ter oitenta anos novamente.” Ele creditou sua longa vida a uma dieta de morangos.)

[Bernard de Fontenelle, the great Academician and the author of one of the first books of popular science, the “Conversations on the Plurality of Worlds,” was a regular at her father’s table, and was said to delight in conversing with Émilie. (Already old when he knew her, Fontenelle lived in good health into his late nineties, and was famous for having said, at ninety-two, on meeting a beautiful woman, “Ah, to be eighty again.” He credited his long life to a diet of strawberries.)]


:: UM BOM ESPIRRO ::
D. H. Lawrence, em carta a Cynthia Asquith, novembro de 1913
Scorn, de Matthew Parris

Gosto de escrever quando estou irritado: é como soltar um bom espirro.


:: MAIS URSOS VANDALIZANDO ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

As garras curtas e curvas de um urso preto funcionam como pés-de-cabra em miniatura, capazes de alavancar a menor fenda para abrir uma janela ou rasgar uma porta de garagem. Um espaço de acesso desprotegido é um convite. Um urso transformará um batente de porta em confete. Em casas vazias — que são abundantes nas comunidades de resort como Tahoe —, os ursos abrem torneiras e queimadores, geralmente tropeçando neles. No ano passado, um funcionário de uma empresa de serviços públicos notou um pico no uso de água em uma casa; ursos tinham se mudado para lá.

[A black bear’s short, curved claws function as miniature crowbars, capable of leveraging the slightest crevice to pry open a window or shred a garage door. An unsecured crawl space is an invitation. A bear will make confetti of a doorjamb. In vacant houses—which are plentiful in resort communities like Tahoe—bears turn on faucets and burners, usually by bumbling into them. Last year, a utility-company employee noticed a spike in water use at one home; bears had moved in.]


:: UMA BATATA INGLESA ::
Clarice Lispector, Todas as cartas

Quando eu disse a Pedrinho: você vai ter uma babá inglesa, ele respondeu todo interessado: uma batata inglesa?


:: MAIS METÁFORAS ALEATÓRIAS ::
Max Fisher, The Chaos Machine

Era como se a Coca-Cola abastecesse um bilhão de máquinas de refrigerantes com alguma bebida projetada por IA, sem que um único humano verificasse o conteúdo das garrafas — e se a IA que enche as bebidas fosse programada apenas para aumentar as vendas, sem levar em conta a saúde ou a segurança.

[It was as if Coca-Cola stocked a billion soda machines with some A.I.-designed beverage without a single human checking the bottles’ contents—and if the drink-filling A.I. was programmed only to boost sales, without regard for health or safety.]


:: DIÁRIO ::
Leo Tolstoy

25 de janeiro
1851
Me apaixonei ou imagino que me apaixonei; fui a uma festa e perdi a cabeça. Comprei um cavalo do qual eu não tenho a menor necessidade.


:: URSOS – PARTE III ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Recentemente, uma seguradora recebeu a reclamação de que um urso havia vandalizado um Rolls-Royce; investigadores mostraram imagens de segurança do incidente a um biólogo de vida selvagem, que determinou que o autor do crime era um humano fantasiado de urso.

[Recently, an insurer received a claim that a bear had vandalized a Rolls-Royce; investigators showed security footage of the incident to a wildlife biologist, who determined that the perpetrator was a human in a bear costume.]


:: TIA FÁTIMA ::

Bruna Mitrano, Ninguém quis ver

ontem soube que a tia fátima morreu
imaginei suas últimas palavras
acho que ela não teria perguntado por mim
nem por minha mãe ou pelos patrões
acho que ela teria perguntado as horas.


:: SOBRE JIM MUNRO ::
Rachel Aviv, “Alice Munro’s Passive Voice

Jim era severo e pouco inclinado a demonstrações físicas de afeição; um de seus ditados favoritos era “Todo mundo tem direito à minha opinião”.

[Jim was stern and not inclined toward physical affection; one of his favorite sayings was “Everyone’s entitled to my opinion.”]


:: QUAL DOS DOIS TINHA MORRIDO ::

Rosa Montero, O perigo de estar lúcida

[…] Depois tem a história genial de Mark Twain, que um dia contou numa entrevista que havia tido um irmão gêmeo, Bill, cuja semelhança com ele era tão grande que ninguém podia distingui-los, por isso amarravam cordões coloridos nos seus punhos para saber quem era quem. Mas um dia deixaram os dois sozinhos na banheira e o irmão se afogou. E como os cordões haviam se soltado, “nunca se soube qual dos dois tinha morrido, se Bill ou eu”, explicou Twain placidamente ao repórter. A história foi publicada e reproduzida diversas vezes, mas obviamente era inventada: aquele gêmeo nunca existiu — embora seja uma maravilhosa metáfora da dissociação do escritor, e acho que dizia muito sobre o próprio Mark Twain, autor cujo nome, aliás, é um pseudônimo (o que já evidencia certa predisposição à dualidade).


:: A ÚLTIMA DOS URSOS ::
Paige Williams, “Lake Tahoe’s Bear Boom

Em junho, um urso apareceu em um casamento e destruiu um carro, fugiu com a bagagem de alguém e retornou para a recepção.

[In June, a bear turned up at a wedding and destroyed a car, ran off with somebody’s luggage, and came back for the reception.]


:: AGRADECIMENTOS ::

Jenny Offill, Dept. of Speculation

E para a equipe editorial, publicitária e de produção da Knopf que guiou este livro com um formato enlouquecedor até a gráfica, devo a cada um de vocês um pônei.

[And to the crackerjack editorial, publicity, and production staff at Knopf who shepherded this maddeningly formatted book to press, I owe each and every one of you a pony.]

Correspondendo-se com a camareira

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Agradecimentos: Google Translator.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)

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