Dora e Moranguinho no salão de beleza discutindo quem exatamente pretendem enforcar nas tripas do último banqueiro

#105 – São Paulo, 12 de abril de 2025
Gente honesta comendo doce
Edição especial misândrica, com cotas para homens brancos
www.hortifruti.org

“Infligir abuso não é a parte difícil. Controlar a narrativa é o verdadeiro trabalho.”
(Sarah Manguso)

“Detesto acordar e já cair de volta naquelas mesmas abas abertas de ontem.”
(William Haefeli)

:: EDITORIAL :

Cuidar de um bebê é exaustivo. Uma das minhas pequenas rebeliões era arrumar os brinquedos da Batata durante a madrugada e montar cenários para o dia seguinte. Eu elegia alguns bichos de pelúcia, ordenava umas coisas jogadas pelo sofá e em menos de cinco minutos tínhamos um psicodrama completo.

A única regra era pegar o que estivesse à mão, sem pensar muito.

Naturalmente, a criança não dava muita bola para essas representações, que tentavam captar toda a gama de emoções da experiência humana na Terra. Foi o fim precoce de uma carreira promissora no campo da dramaturgia de pelúcias. Mas aqui vão as principais obras dessa fase, para apreciação crítica e estética dos leitores desta publicação.

Por exemplo, esta:

9 de julho de 2019. Dia em que a Dora e a Moranguinho pegaram em armas e se aliaram aos animais oprimidos para combater o Coelhinho da Páscoa.


:: É VERDADE. É VERDADE ::
Patrick Hamilton, Gas Light (1938)

Sra. Manningham: Ah, Jack querido. Você está tão gentil ultimamente. Será possível que esteja começando a ver o meu ponto de vista?
Sr. Manningham: Não sei se algum dia discordei dele, não é, Bella?
Sra. Manningham: Ah, Jack querido. É verdade. É verdade.

[Mrs. Manningham: Oh , Jack dear. You have been so much kinder lately. Is it possible you’re beginning to see my point of view?
Mr. Manningham: I don’t know that I ever differed from it, did I, Bella?
Mrs. Manningham: Oh, Jack dear. It’s true. It’s true.
]


:: SER CONTESTADO ::
Kate Manne, Entitled

Como argumenta a filósofa Kate Abramson em seu trabalho inovador sobre o gaslighting: “O que diferencia o sujeito que ignora ou descarta evidências […] daquele que pratica o gaslighting é a incapacidade de tolerar até mesmo a possibilidade de ser contestado.”

[As the philosopher Kate Abramson argues in her groundbreaking work on gaslighting, “What makes the difference between the fellow who ignores or dismisses evidence…and the one who gaslights is the inability to tolerate even the possibility of challenge.”]


:: HEMORRAGIAS HISTÉRICAS ::
Janet Malcolm, “Trouble in the Archives

Com o passar do tempo (e com a pobre Emma finalmente fora de perigo), Freud foi progressivamente minimizando a culpa de Fliess, até conseguir convencer a si mesmo de que foi a própria Emma, e não Fliess, quem teve culpa no ocorrido. Em uma carta de 16 de abril de 1896, Freud promete a Fliess que em breve lhe contará “uma explicação bastante surpreendente para as hemorragias de Emma, que lhe dará grande satisfação”, e no dia 26 de abril escreve: “Você tinha razão; as hemorragias dela eram histéricas, provocadas pela saudade.”

[As time went on (and poor Emma was finally out of danger), Freud progressively downgraded Fliess’s culpability, and finally was able to persuade himself that it was Emma herself, and not Fliess, who had been at fault. In a letter of April 16, 1896, Freud promises Fliess that he will soon tell him of “a quite surprising explanation of Emma’s hemorrhages, which will give you great satisfaction,” and on April 26th he writes, “You were right; her hemorrhages were hysterical, brought on by longing.”]


:: ESCAPE ::
Wells Tower, “What Charles Portis Taught Us

“Muita gente sai do Arkansas e a maioria acaba voltando, mais cedo ou mais tarde”, escreveu Portis certa vez. “Eles nunca chegam a alcançar a velocidade de escape.”

[“A lot of people leave Arkansas and most of them come back sooner or later,” Portis once wrote. “They can’t quite achieve escape velocity.”]


:: SOBRE BEBÊS ::
Anne Lammott, Operating Instructions

Agora é meia-noite. Não consigo acreditar que estou tão bem humorada, já que ele está gritando desde as 22h. Não estou falando com ele. Ele está no futon tendo um surto. De tempos em tempos, eu o pego no colo e tento amamentá-lo ou caminhar com ele por um tempo, até minha yoni começar a doer de novo, e então o coloco de volta no futon. Estou irritada com ele. Acho que ele não está lidando com as coisas de forma muito madura.

[Now it’s midnight. I can’t believe I’m in such a good mood, because he has been screaming since 10: 00 tonight. I am not speaking to him. He is on the futon having an episode. Every so often I pick him up and try to nurse him or walk him for a while until my yoni aches again, and then I put him back down on the futon. I’m annoyed with him. I don’t think he’s handling things very maturely.]


:: LENDO COISAS NA INTERNET ::
Sarah Manguso, Ongoingness

Percebo o quanto isso soa pretensioso, mas quando seu trabalho é pensar e escrever sobre si mesma, as apostas começam a parecer artificialmente — e até comicamente — altas. E precisam parecer assim, porque sem isso, eu não escreveria nada. Passaria o dia lendo coisas na internet. Já estaria mais ou menos na metade.

[I realize how grandiose that sounds, but when your job is to think and write about yourself, the stakes start to appear artificially, comically high. And they must, for without them, I wouldn’t write at all. I’d spend the day reading the internet. I’d be about half-done by now.]


:: TERROR ::

26 de julho 2019. Na hora de dormir, Dora lê histórias de terror para Moranguinho, Fofolete e Ursinho, à luz de um abajur.


:: PARABÉNS! ::
Sarah Manguso, Liars

Nada além de maternidade e afazeres domésticos. Eu me sentia como se tivesse deixado meu carro sair lentamente da estrada e atolar em um monte de neve. O airbag se abriu. Em letras grandes e cor-de-rosa, estava escrito: “Parabéns! Você tem quarenta anos e é completamente dependente financeiramente do seu marido!”

[Nothing but mothering and housewifery. I felt as if I’d let my car drift slowly off the road and into a snowbank. The airbag popped out. In big pink letters it said, Congratulations! You’re forty years old and completely financially dependent on your husband!]


:: CONSTATAÇÃO ALEATÓRIA ::
Yiyun Li, “The Deaths—And Lives—Of Two Sons

O telefone dele, eu descobri por acaso uma vez, estava configurado para o lituano.

[His phone, I once found out by accident, was set to Lithuanian.]


:: RECONHECE COMO GENTE ::
Tressie McMillan Cottom, Thick

Na verdade, a maneira mais infalível de conseguir que um acadêmico de verdade, com credenciais, converse com você, quando você ainda é apenas um estudante de pós-graduação, é se apresentar por meio de terceiros: “Oi, eu sou a Tressie, aluna do Richard Rubinson e da Sandy Darity, e conheço outras cinco pessoas que você reconhece como gente.”

[In fact, the most surefire way to get a real, minted academic to speak to you when you are just a graduate student is to introduce yourself by proxy : “Hi I am Tressie, student of Richard Rubinson and Sandy Darity, and I know five other people who you recognize as people.”]


:: SO FUCKED ::

Rufi Thorpe, Margo’s Got Money Problems

Não quero insultar as pessoas que realmente estiveram numa guerra; só quero dizer que esse nível de estresse e dificuldade física estava totalmente fora da experiência prévia de Margo. Enquanto cuidava do bebê, ela não conseguia parar de pensar: “Estou tão fodida, estou tão fodida, estou tão fodida”. Porque ao seu redor ela sentia o vazio ecoante de ninguém se importar com ela, ninguém se preocupar com ela, ninguém ajudá-la. Era como se estivesse cuidando daquele bebê em uma estação espacial abandonada.

[I do not mean to insult people who’ve actually been to war; I only mean that this level of stress and physical hardship was entirely outside Margo’s previous experience. She kept thinking, as she nursed him, I am so fucked, I am so fucked, I am so fucked. Because all around her she could feel the echoey space of no one caring about her or worrying about her or helping her. She might as well have been nursing this baby on an abandoned space station.]


:: COMPANHIA EXCELENTE ::
Gideon Lewis-Kraus, “The End of Children

Quando perguntei ao meu filho de oito anos por que alguém deveria ter filhos, ele parou de dar socos no irmãozinho por tempo suficiente para dizer: “Somos uma companhia excelente”.

[When I asked my eight-year-old why someone should have children, he stopped punching his little brother long enough to say, “We’re excellent company.”]

:: GO VEGAN ::

2 de julho de 2019. Tema: Libertação Animal.


:: CAPACHO OU NÃO-CAPACHO ::
Rebecca Solnit, Whose Story is This?

A implicação geral é que qualquer mulher que não seja um capacho é fatalmente uma dominatrix.

[The general implication is that any woman who’s not a doormat is a dominatrix.]


:: LUTO ::
Kate Abramson, “Turning Up the Lights in Gaslighting” (2014)

Uma mulher vítima de gaslighting perdeu a si mesma, ainda que de forma parcial e temporária. E, de várias maneiras, suas reações depressivas fazem sentido — ela está em luto; está em luto pela perda de sua perspectiva independente, de sua capacidade de formar e manter suas próprias reações e percepções, pela perda das amizades que se tornaram — ou sempre foram — relações de manipulação, e por sua própria cumplicidade, em grande parte inocente, em tudo isso. Pode levar tempo, e exigir esforço, para que ela passe a ver suas reações depressivas como manifestações disso; assim como em muitas formas significativas de luto, pode ser necessário um trabalho interior e uma autocompreensão — nem sempre acessíveis de imediato — para que se possa viver isso como um luto. Mas, por mais devastador que seja, é exatamente isso.

[A gaslighted woman has lost, albeit partially and temporarily, herself. And in various ways, her depressive responses are fitting—she is grieving; she’s grieving the loss of her independent perspective, her ability to form and maintain her own reactions and perceptions, the loss of the friendships that became or turned out to be mere gaslighting relations, and her own largely blameless complicity in all of this. It may take her time, and work, to come to see her symptomatically depressive reactions in these terms; like many forms of significant grief, it can take work and self-understanding that’s not easily or immediately accessible to experience its manifestations as grief. But, devastating though it is, it is precisely that.]


:: COMO UM FILHOTINHO ::
Anne Lammott, Operating Instructions

Ah, mas minha barriga agora é como um colchão d’água coberto de flanela. Quando me deito de lado na cama, minha barriga se acomoda educadamente ao meu lado, como um cachorrinho.

[Oh, but my stomach, she is like a waterbed covered with flannel now. When I lie on my side in bed, my stomach lies politely beside me, like a puppy.]


:: PERITO EM CELOFANE ::
Philippe Boxho, Os mortos também falam

O perito judicial não deve ser confundido com o técnico de cena de crime. Ao contrário do que mostram as séries, são dois trabalhos diferentes. Às vezes essas funções podem ser exercidas pela mesma pessoa, mas não é uma regra geral. Existem peritos para tudo: especialistas em fibras sintéticas, em fibras animais, em fibras vegetais, em lâmpadas de farol de carro, em pintura automotiva, em acidentes de trânsito, em incêndios, em informática, em balística, em pegadas, em vestígios de pólvora, em vestígios de terra, em toxicologia, em impressões digitais, em medicina legal etc. Na verdade, qualquer material, mesmo o mais inimaginável, pode ser objeto de uma perícia científica. Já conheci até um perito em guarda-chuvas.


:: GENTE HONESTA ::
Clarice Lispector, Todas as cartas

A casa de chá é muito bonitinha, com gente honesta comendo doce.


:: LINKS ENGRAÇADOS ::

Sarah Manguso, Liars

Quando li aqueles três meses de mensagens, vi que ele sempre encaminhava para a Victoria os links engraçados que eu mandava pra ele. Fiquei me perguntando se em algum momento ele pensou: “Vou continuar casado por mais um tempo, já que minha esposa me manda links de coisas engraçadas que a minha namorada gosta”.

[When I read those three months of his text messages, I saw that he’d always sent Victoria links to the funny online things I sent him. I wondered if there was a point at which he thought, I’ll stay married for a while longer, since my wife gives me links to funny online things that my girlfriend likes.]


:: DEPRESSÃO COMO RESISTÊNCIA ::
Kate Abramson, “Turning Up the Lights in Gaslighting” (2014)

Há outro ponto moral importante em reformular dessa forma o estágio final do gaslighting. Essa abordagem muda nossa perspectiva: deixamos de ver a mulher vítima de manipulação psicológica como mero objeto de tratamento — como alguém clinicamente deprimida — para reconhecê-la como membro ativo da comunidade moral, em processo de luto por perdas de valor incomensurável. E enquadra a própria depressão dela, ainda que de forma peculiar, como a última forma de resistência ao gaslighting — se ela é capaz de lamentar a perda de si mesma, então, na verdade, não está totalmente perdida. Sua depressão não é, portanto, apenas o resultado dos abusos que sofreu e suportou; é uma resposta avaliativa adequada ao que lhe foi imposto, e o primeiro marco no caminho de volta.

[There is another significant moral point to so reframing the final stage of gaslighting. Doing so shifts our perspective from one in which we see a gaslightedwoman as a mere object of treatment—qua clinically depressed—to one in which we see her as an ongoing member of the moral community, grieving losses of insuperable value. And it frames her depression itself, if in a peculiar way, as the last form of resistance to gaslighting—if she can grieve the loss of herself, then in fact, she is not entirely lost. Her depression is not then merely the outcome of the wrongs she has suffered and endured; it’s a fitting evaluative response to what she has been subjected and the first signpost on the road back.]


:: SOBRE COÇAR COCEIRAS ::
Louisa Thomas, “On John Updike’s […]

Updike nunca coçou uma coceira sem transformá-la em um livro, então não é surpresa que aquela ida a Fenway tenha virado um ensaio.

[Updike never scratched an itch without putting it into a book, so it’s not a surprise that that trip to Fenway turned into an essay.]


:: SEGUNDO TURNO ::
Darcy Lockman, All the Rage

Por recomendação de uma amiga, comecei a ler The Second Shift, o detalhado relato da socióloga Arlie Hochschild — de mais de trinta anos atrás — sobre as formas como casais heterossexuais das décadas de 1970 e 1980 organizavam suas vidas profissionais e domésticas. Me identifiquei tanto com as mães exaustas do estudo que esse se tornou o primeiro livro acadêmico a me fazer chorar.

[At a friend’s recommendation, I picked up The Second Shift, sociologist Arlie Hochschild’s thirty-year-old detailed account of the ways in which heterosexual couples of the 1970s and ’80s organized their work and home lives. I identified so strongly with the thin-stretched mothers in her study that it became the first academic book to ever make me cry.]


:: MATRIARCADO ::

5 de agosto de 2019. Vocês acham que eu exagerei na metáfora?
ps. A Moranguinho tá com uma granada.

>>>>
Agradecimentos: DeepSeek.
Os links dos livros são afiliados da Amazon e me ajudam a recarregar o Bilhete Único.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A.)

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdo fechado para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.