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Postado em: 21st março 2011 por Vanessa Barbara em Clipping, Crônicas
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Blog da Cosac Naify
21 de março, 2011, às 16:50

por Cosac Naify

A comida e a bebida foram elo e ponto de partida de muitas sociedades secretas.

No livro de Vila-Matas, História abreviada da literatura portátil, é um drinque (refrescante), o shandy, que dá nome à seita dos portáteis. Shandy, além de remeter ao Tristram Shandy, vem de uma expressão dialetal de Yorkshire que significa “indistintamente alegre, volúvel e louco”, e é também, e sobretudo, a tradicional mistura de cerveja com limonada – o que na França dá-se o nome depanaché.

Nos textos abaixo, Vanessa Barbara, Sérgio Rodrigues e Júlio Pimentel Pinto relatam histórias de sociedades secretas unidas justamente pela comida. São seitas de conspiradores guiados por quindins, legumes, goiabada e toda sorte de alimentos.

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Povo do carvão
Vanessa Barbara

“Além do mais somos cinco e não queremos ser seis” é o mote desta sociedade literária secreta, que é tão secreta que nem os seus membros desconfiam da existência. Nossa principal diretriz temática é o uso da piada interna como figura de linguagem, nave-tia da nossa literatura. Formada por mim, Emilio Fraia, Antonio Prata, Paulo Werneck, Chico Mattoso, Fabrício Corsaletti e a minha mãe, tem como principal característica o hábito de responder entrevistas só falando em comida, não importa o que perguntem.

— Como você vê a ficção moderna?
— Veja bem, eu costumo compará-la a um grande pudim de queijo.

— Senhor Emilio, senhor Emilio, qual o sentido da literatura em sua vida?
— Nunca dei muita atenção aos legumes, embora sempre os tenha consumido. E nunca entendi o porquê dessa convenção estúpida de só servir peixe às sextas-feiras.

— Qual a essência do ser humano neste tempo de mudanças? Me parece que seus livros captam isso muito bem.
— Se é preciso definir em uma palavra: “quindim”. Não que siga critérios lógicos, o que nos levaria provavelmente às batatas ou ao ovo em estado bruto, mas trata-se da multiformidade que se pode tirar de uma iguaria bem feita.

*Vanessa Barbara é jornalista e escritora, autora de O livro amarelo do terminal

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Os desafiadores da goiabada
Sérgio Rodrigues

Formulado em 1978 pelo crítico Adolfo Pinho Rosa, o chamado “desafio da goiabada” é um enigma que estudantes de Letras ainda hoje gostam de sondar quando se veem ameaçados pelo tédio da teoria: como distinguir os membros de certa sociedade literária secreta fundada no Rio de Janeiro em meados do século XX? Seus sócios se identificariam por um sutil aceno maçônico: o emprego de determinada palavra no último parágrafo de uma obra de qualquer gênero, precedida de um verbo no pretérito imperfeito e seguida de advérbio. Pinho Rosa afirmou ter encontrado a pista do conluio numa carta de Lucio Cardoso a um amigo identificado como W., comprada de um alfarrabista de Caratinga. Infelizmente, o escritor mineiro não mencionava a tal palavra, que o crítico supôs ser “goiabada” (“Comia goiabada voluptuosamente”), embora nunca tenha citado um único caso concreto que sustentasse tal conjectura. “Camafeu”, “chupão”, “pandemônio”, “teteia”, “aldraba” e “bicho-de-pé” são outros palpites que até hoje se furtaram a dar resultados conclusivos. Na verdade, não é exagero afirmar que a dificuldade do desafio tem o tamanho do vocabulário da língua portuguesa.

*Sérgio Rodrigues é jornalista e escritor, autor de Elza, a garota, entre outros

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Os glutões
Júlio Pimentel Pinto

Ora, direi ouvir estrelas… Não, nada de ouvir. Comer. Não estrelas, naturalmente, que certo perderias os dentes. Nem comer livros, pois não somos cabras. Comer, simplesmente. Comer e ler, comer e escrever. Certos escritores jamais resistiram à oportunidade de trocar o livro por uma refeição; outros preferiram levar a comida para dentro do livro. Alguns foram glutões no dia a dia — casos de Balzac ou Lezama. Outros podiam até ser contidos à mesa, mas promoveram furiosos bacanais gastronômicos livrescos: sobretudo a brigada francesa — Rabelais, Voltaire, Proust, Dumas. Ah, estamos falando de comida. Então não poderiam faltar, óbvio, os espanhois. Do Sancho comilão de Cervantes ao gourmet-gourmand Pepe Carvalho, de Vázquez Montalbán. Nem italianos, ou melhor, os sicilianos: Vittorini ou Camilleri, entre peixes e doces. Também o clima frio ajuda a harmonizar pratos e leituras. Que o digam Mann, Pasternak ou Blixen, criadora do impagável (em todos os sentidos) jantar de Babette. Ou o glutoníssimo Nero Wolfe, personagem de Stout. E já que nossa pátria é nossa língua e nossa língua é nossa refeição, Eça, Vinícius e Jorge Amado. Todos reunidos numa confraria que sabe que quem devora livros devora algo mais.

*Júlio Pimentel é doutor em História pela FFLCH-USP e tradutor de História abreviada da literatura portátil e Modernidade periférica