Como organizar uma biblioteca pública

Postado em: 13th agosto 2013 por Vanessa Barbara em Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
12 de agosto de 2013

Por Vanessa Barbara

 funny library sign furia bibliotecario
Perigo: é proibido ingerir comida ou bebida nas proximidades deste computador, sob pena de incitar a fúria do diretor da biblioteca.

 

O texto a seguir é a tradução de um artigo de Umberto Eco publicado no livro How to Travel with a Salmon & Other Essays. Foi escrito em 1981 e sugerido por uma leitora deste blog.

Lembramos aos presentes que se trata de um artigo bem-humorado e crítico sobre os vícios na administração das bibliotecas públicas escrito por um usuário frequente destas, não um libelo antibiblioteca ou uma tentativa de exterminar todos os profissionais da área e trocá-los por vendedores de livrarias, favorecendo assim a sanha capitalista em detrimento do processo de equalização social das bibliotecas públicas e renegando os valores elementares de acesso à leitura e melhoramento da humanidade, a fim de perpetrar a estratificação social e impedir a ilustração de todos os setores da sociedade etc. etc.

(Por favor, não me excomunguem do cadastro unificado do Sistema Municipal de Bibliotecas.)

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Como organizar uma biblioteca pública
por Umberto Eco (tradução de Vanessa Barbara)

 

1. Os diversos catálogos devem ser alocados com o máximo possível de separação entre si. É preciso apartar adequadamente o catálogo de livros do catálogo de periódicos, e ambos do catálogo por assunto; da mesma forma, as aquisições recentes devem ser mantidas bem distantes do acervo antigo. Se possível, a grafia adotada nos dois catálogos (aquisições e acervo) deve ser diferente. No caso das aquisições, por exemplo, assovio deve ser grafado com v, e no acervo deve constar assobio com b. Um Chaikovskii da área de lançamentos irá seguir a classificação da Biblioteca do Congresso; no acervo o nome será grafado à moda antiga, com Tch.

2. A classificação por assunto deve ser determinada pelo bibliotecário. Na folha de rosto com os dados para catalogação não deve haver nenhuma indicação do assunto sob o qual o livro poderá ser listado.

3. Os códigos de catalogação devem ser incompreensíveis e, se possível, extremamente complexos, a fim de que não haja espaço na papeleta de solicitação de livros para incluir os últimos numerais, que portanto seriam descartados como irrelevantes. Então o atendente pode devolver o papel com uma advertência para o usuário preenchê-lo de forma adequada.

4. O tempo decorrido entre o pedido e a entrega do livro deve ser o mais longo possível.

5. Deve-se liberar apenas um volume por vez.

6. Assim que o pedido de consulta for corretamente preenchido, os livros cedidos pelo atendente não podem ser transportados à seção de obras de referência, forçando assim os pesquisadores a cindirem sua vida profissional em dois aspectos fundamentais: de um lado, ler, e do outro, consultar referências. A biblioteca deve desencorajar, mencionando os perigos do estrabismo, quaisquer tendências multidisciplinares ou tentativas de leitura de vários livros ao mesmo tempo.

7. Na medida do possível, não deve haver máquinas de xerox disponíveis; se tal máquina existir, o acesso a ela precisa ser necessariamente demorado e cansativo, as taxas devem ser bem mais altas do que as praticadas nas copiadoras da região e o número máximo de páginas reproduzidas não pode exceder dois ou três.

8. O bibliotecário deve tratar o leitor como um inimigo, um perfeito desocupado (caso contrário estaria trabalhando) e um ladrão em potencial.

9. A sala do bibliotecário-chefe deve ser inexpugnável.

10. Empréstimos devem ser desencorajados.

11. Empréstimos entre bibliotecas devem ser inexequíveis ou, no mínimo, demandar vários meses para se concretizarem. Em todo caso, o ideal é garantir a impossibilidade de consultar o acervo das outras bibliotecas.

12. Devido a essa política, o roubo se torna bastante fácil.

13. O horário de funcionamento deve coincidir precisamente com o horário comercial, determinado em reuniões prévias com os sindicalistas locais e a Câmara do Comércio; o não funcionamento aos sábados e domingos, à noite e no horário de almoço é uma prerrogativa óbvia. O maior inimigo da biblioteca é o estudante que trabalha; seu melhor amigo é Thomas Jefferson, que possuía uma enorme biblioteca privada e portanto não precisava frequentar bibliotecas públicas (às quais ainda assim legou seus livros como herança).

14. Deve ser proibido consumir qualquer tipo de lanche no interior da biblioteca; tampouco permitido sair desta para alimentar-se em outro lugar sem antes devolver todos os livros em utilização, obrigando assim o estudante a preencher novas solicitações depois de tomar um mísero café.

15. Deve ser impossível encontrar, no dia seguinte, o livro consultado na tarde anterior.

16. Deve ser impossível descobrir quem está na posse de um volume atualmente em empréstimo.

17. Se possível, não manter nenhum banheiro público disponível.

18. Idealmente o leitor deve ser impedido de entrar na biblioteca. Se por acaso conseguir fazê-lo, usufruindo com tediosa insistência de um direito garantido nos princípios de 1789, porém jamais assimilado pela sensibilidade coletiva, ele nunca, mas nunca mesmo — com exceção a rápidas visitas às seções de referência — deve ter acesso ao templo sagrado das estantes.

 

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Meus acréscimos:

19. Quarenta minutos antes do fechamento da biblioteca, é necessário fazer soar um alarme estridente e dúbio, a fim de inquietar os usuários e incutir-lhes a dúvida de incêndio.

20. Meia hora antes do fechamento da biblioteca, deve-se acionar uma buzina e um aviso ao microfone anunciando que o estabelecimento está para encerrar suas atividades. Solicitações de empréstimo não serão mais aceitas, assim como devoluções — sobretudo as de última hora. Recomenda-se que a buzina esteja sempre com defeito e funcione por aproximadamente dez minutos ininterruptos, sem que ninguém faça caso disso.

21. É sempre mais importante terminar a leitura do catálogo de cosméticos antes de atender os usuários. O mesmo vale para sessões vigorosas de lixamento de unhas e telefonemas pessoais.

22. O real fechamento da biblioteca deverá ocorrer quinze minutos antes do fechamento oficial, acelerado por rondas insistentes de funcionários que começarão a varrer o chão e empilhar as cadeiras.

23. O processo de apagar as luzes e trancar as portas deve levar exatos quinze minutos, e não por desejo de cumprir o expediente: é que deve haver funcionários para balançar a cabeça em negativa quando um leitor fatalmente aparecer atrasado para devolver um livro.

24. Convém se queixar o tempo todo do aumento no índice de furtos e da lamentável depredação ao patrimônio emprestado, dando a entender que o povo não merece um serviço gratuito e de qualidade.

25. O estatuto administrativo deve se sobrepor a toda e qualquer noção de bom-senso no atendimento. Donde: é proibido trazer lanche para prevenir as manchas de molho de tomate na página e a proliferação de insetos alados no ambiente da biblioteca; é proibido espiar a lombada de um livro e empurrá-lo de volta porque assim se pode arruinar todo o sistema de catalogação e condenar determinada obra a um vórtice temporal; é proibido entrar com bolsas e mochilas para não incentivar meliantes; é proibido se emocionar com um romance porque as lágrimas podem apodrecer o papel; é proibido, enfim, o que quer que você esteja arquitetando ao olhar para essa estante de forma duvidosa e com as mãos para trás. Movimentos suspeitos serão punidos e a multa para atraso na devolução deverá ser maior do que a de tráfico de drogas. O roubo de livros será julgado por uma corte marcial e até crianças poderão ser condenadas à prisão.

26. Na dúvida, dificulte.

  1. Luiz Roberto Lima disse:

    Fantástico, morri de rir, ” é proibido se emocionar com um romance porque as lágrimas podem apodrecer o papel; “.