The New York Times
2 de maio de 2023
por Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer
SÃO PAULO, Brasil — Na gestão de Jair Bolsonaro, o Brasil era um pária internacional. Não são minhas as palavras, mas do ex-ministro de Relações Exteriores: aparentemente era “bom ser pária.” Eu não sinto falta dessa gente.
Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o cargo em janeiro, depois de derrotar Bolsonaro, esperava-se que ele levasse o Brasil de volta ao mainstream internacional. Os primeiros sinais foram bons: em novembro, antes mesmo de ocupar a Presidência, Lula viajou para a COP27 no Egito, e em fevereiro fez uma visita amigável aos Estados Unidos. Então Lula começou a sair do roteiro. Em umas poucas e frenéticas semanas, ele fez esforços para iniciar negociações de paz na Ucrânia, criticou a supremacia do dólar americano, viajou à China e recebeu o ministro das Relações Exteriores da Rússia.
Muitos no Ocidente se sentiram ultrajados, como um crítico que acusou o presidente de oferecer “apoio político a déspotas antiamericanos.” É uma perspectiva tentadora, sobretudo quando Lula — como ele fez na China — descreve a Rússia e a Ucrânia como igualmente responsáveis pela guerra. Mas ainda assim, é uma visão equivocada. Tomados em seu conjunto, os lances de Lula correspondem menos a uma tentativa de frustrar o Ocidente do que a fazer avançar os interesses nacionais do Brasil — e são também um compromisso de aliviar a pobreza e a fome no Sul global. Em linha com o histórico brasileiro de multilateralismo, e sensível às demandas locais, Lula está traçando seu próprio itinerário.
A China é um ponto-chave. A ida de Lula a Pequim em abril, onde ele encontrou o presidente Xi Jinping com grande alarde, incomodou muita gente. Mas a viagem, que ocorreu após visitas oficiais à Argentina e ao Uruguai, foi mais do que esperada. Afinal, a China é a principal parceira comercial do Brasil, importando do nosso país gigantescas quantidades de minério de ferro, soja, e, cada vez mais, carne. De sua parte, o Brasil importa do país asiático, bem, praticamente tudo — de pesticidas a semicondutores, passando por todas as bugigangas e engenhocas reluzentes que enchem as nossas lojas de 1,99.
Por si sós, os interesses econômicos seriam capazes de justificar a viagem. Mas o próprio Lula fez questão de dizer que a visita teve outros motivos. “Temos interesses políticos,” ele disse, “e nós temos interesses em construir uma nova geopolítica para que a gente possa mudar a governança mundial.” O comentário é coerente com uma obsessão antiga de Lula, de quando ele foi presidente de 2003 a 2010, de abalar a percebida dominação ocidental em instituições internacionais como a Organização Mundial do Comércio e de garantir maior representação dos países em desenvolvimento nas Nações Unidas. Nesse projeto, a China é um aliado óbvio.
O itinerário de Lula evidenciou a centralidade dessa preocupação. Antes de tudo, seu primeiro compromisso foi assistir à sua sucessora na presidência do país em 2011, Dilma Rousseff, assumir a chefia do Novo Banco de Desenvolvimento em Xangai. Popularmente conhecido como “banco dos BRICS” — abreviatura para as economias emergentes do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — a instituição tem o objetivo de atuar como contrapeso às nações ricas do Norte global. Em seu discurso no evento, Lula alegou que o banco seria capaz de “libertar os países emergentes da submissão às instituições financeiras tradicionais, que pretendem nos governar,” criticando explicitamente o Fundo Monetário Internacional.
Esse é o núcleo da questão. Para muitos líderes de países em desenvolvimento, o sistema financeiro global — administrado pelo FMI e pelo Banco Mundial, e gerido em dólares norte-americanos — serve para oprimir as nações mais pobres, aprisionando-as em programas de pagamento de dívidas e impedindo maiores investimentos em infraestrutura e assistência social. Na cerimônia do Novo Banco de Desenvolvimento, Lula disse que “toda noite” se pergunta por que todos os países são obrigados a fazer transações lastreadas em dólar. Ainda que isso pareça uma receita para dormir mal, a preocupação não é em si irracional.
Muito mais preocupante foi o passe livre que Lula parece ter dado à China. Uma coisa é proclamar, como ele fez após uma visita ao centro de pesquisa da Huawei em Xangai, que “não temos preconceito na nossa relação como os chineses.” Outra é declarar que Taiwan não é um estado independente e não dizer nada sobre as violações dos direitos humanos ou a vigilância estatal. Tal silêncio mostra que a postura de Lula, geralmente descrita como um retorno ao “pragmatismo,” tem seus custos morais.
E ainda assim, Lula também está se valendo de uma tradição brasileira em política externa, baseada nos princípios do multilateralismo, não intervenção e resolução pacífica de conflitos. É isso que está por trás de sua recusa em vender armas para a Ucrânia e de seus esforços para reunir um “clube da paz” formado por países neutros para mediar conversas entre a Ucrânia e a Rússia.
Um fim justo para a guerra brutal na Ucrânia é desejável, claro, mas Lula se lançou a esse propósito de forma esquisita. Ele acusou os Estados Unidos de “incentivar a guerra” e a União Europeia de não falar em paz — e disse até que “a decisão da guerra foi tomada por dois países,” dando a entender que a Ucrânia também era culpada pelo conflito. Antes disso, em abril, ele sugeriu que a Ucrânia podia entregar a Crimeia para pôr fim à guerra.
Tais comentários não passaram despercebidos. O ministro das Relações Exteriores russo, em um tour pela América Latina que controversamente incluiu o Brasil, exprimiu sua gratidão. Outros ficaram menos satisfeitos. Uma autoridade norte-americana acusou Lula de “papaguear a propaganda russa e chinesa,” enquanto um porta-voz da UE reiterou que a Rússia era a única culpada. O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, ainda que de forma diplomática, tornou clara sua insatisfação.
Repreendido, Lula logo recuou, salientando que seu governo “condena a violação da integridade territorial da Ucrânia.” Ainda assim, continuou a defender uma “solução política negociada” para a guerra e reiterou sua preocupação com “as consequências globais desse conflito.” Não há motivos para pensar que ele está sendo hipócrita. Em nome da segurança alimentar, da paz e do desenvolvimento sustentável — no Brasil e no resto do mundo — Lula parece disposto a abrir mão da boa vontade de seus amigos democráticos no Ocidente.
O Brasil não é mais um pária. Em vez disso, é pragmático.