É cinquenta o tijolão da bananada
#090 – São Paulo, 23 de fev. de 2024
Uma alcachofra de terno coração
Curam habe de facto tuo*
www.hortifruti.org
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“Tenho a convicção de que seres humanos e peixes podem coexistir pacificamente”
(George W. Bush)
“Ó, meu Deus! Vou ficar completa e descaradamente louco!”
(pequeno King-Post, em Moby Dick)
:: EDITORIAL ::
Esta edição começou a ser escrita há mais de dez anos, em 7 de agosto de 2013. Acontece que, àqueles tempos, fomos acometidos de uma fadiga muito grande, a mãe de todas as preguiças, que nos levou a procrastinar alegremente por mais de uma década, enquanto balançávamos os pés em um banquinho realmente alto.
É algo que às vezes acontece. E sabem? O conselho editorial não deu bola. Os acionistas estavam jogando pingue-pongue. Os assinantes, esses sim, ficaram injuriados e prometeram empastelar nossas rotatórias – houve uma ameaça de greve de fome e uma anunciada intervenção com sangue de porco durante a entrega dos prêmios Jabuti –, mas consta que, no final, os nossos 703 leitores foram igualmente acometidos de uma leseira tropical e decidiram ir cortar as unhas dos pés.
Depois foram tomar banho, dormir, se casaram, tiveram filhos, concluíram o doutorado, foram morar no estrangeiro, compraram uma AirFryer, aprenderam a fazer cirurgia vascular ou andar com pernas de pau, alguns ainda não me devolveram os livros que emprestei, outros mudaram de ideia sobre a necessidade de emagrecer e alisar os cabelos (eu amo vocês), houve outros que ficaram ricos ou carecas, viraram influencers ou psicanalistas, porém, enquanto tudo isso acontecia, A Hortaliça jamais saiu de seus pensamentos.
Adicionando insulto à injúria, nossos servidores sofreram um ataque de piratas cibernéticos que resultou na perda de todo o nosso repositório de idiotices – ainda que, sejamos sinceros, aquilo tudo não valesse mais do que uma Sete Belo.
Os hackers nos pediram uma quantia exorbitante para devolver o material; o Instituto Serrapilheira ameaçou entrar na negociação; alguém chegou a citar os papiros perdidos do segundo livro da Poética de Aristóteles; mas, no fim, nada foi acordado. Meses se passaram. O preço final para o resgate do lote – uma unidade de Sete Belo, semimascada – foi rejeitado.
Sejamos sinceros mais uma vez: talvez caiba dizer que não aconteceu exatamente dessa forma. Fato é que houve um drama com backups perdidos que se estendeu por anos, transmutou-se em negação, revolta, barganha e aceitação, até que, numa tarde de domingo, nos deparamos com o conteúdo extraviado de A Hortaliça em um HD externo no fundo de uma gaveta em nossa sede de campo, no bairro do Mandaqui, onde não havíamos procurado antes porque deu preguiça.
De modo que: hoje, em 23 de fevereiro de 2024, os arquivos de A Hortaliça foram restituídos à Unesco como patrimônio da humanidade, graças aos esforços de nossos repórteres investigativos – que são ótimos, ainda que introvertidos. Disso se depreende que nossa numerosa newsroom tem agora condições adequadas para parar de se dedicar às palavras cruzadas e voltar ao trabalho. Sua primeira missão foi restaurar e complementar a mítica edição 90, que trazemos aos queridos leitores e leitoras a partir de agora.
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:: TODOS RIRAM, MENOS A BALEIA ::
Moby Dick, Herman Melville
Disso decorria, por inferência, a crença de alguns baleeiros em que a passagem noroeste, há tanto tempo um problema para o homem, nunca tivesse sido um problema para a baleia.
:: VINTE CENTAVOS POR CUSPARADA ::
Técnicas corporais, Marcel Mauss
Uma menina não sabia cuspir e cada catarro que tinha era agravado por isso. Fui informado do fato. Na aldeia de seu pai e na família de seu pai em particular, em Berry, não sabem cuspir. Ensinei-lhe a cuspir. Dava-lhe vinte centavos por cusparada. Como ela tinha vontade de ter uma bicicleta, aprendeu a cuspir. Foi a primeira da família a saber fazê-lo.
:: FLAGRANTES DA VIDA REAL ::
Novembro de 2018
Minha mãe estava voltando de táxi para o Mandaqui. Numa subida, o trânsito parou e ela viu um caminhão manobrando. Aí o taxista falou: “O que está fazendo esse porco na rua?”
Ela ficou calada porque achou ofensivo. Mas aí reparou que tinha mesmo um porco correndo na rua.
:: UMA LONGA LISTA DE AUTORIDADES ::
O Brasil dos correspondentes, de Jan Rocha, Thomaz Milz e Verónica Goyzueta
Tudo correu bem até a última etapa da sua visita [do papa João Paulo II, em 1980], no Rio. A secretaria de imprensa da CNBB distribuiu o release com a programação. Infelizmente, quem o traduziu para o inglês confundiu a palavra Mrs. (senhora) com a palavra Mistress (amante). Resultado: o release informava que, no Rio, o papa seria recebido por uma longa lista de autoridades, cada um acompanhado de sua amante.
:: SEJA RUDE COM OS RODODENDROS ::
Do filme Expresso de Chicago (1976, Arthur Hiller)
George: Bem, em jardinagem uma regra para recordar é – seja rude com os rododendros.
Hilly: Ótimo. O que mais eu devo saber?
George: Há um segredo para tratar azaleias.
Hilly: Me diz. Sou toda ouvidos.
George: Trate-as do mesmo jeito que às begônias.
Hilly: Sem brincadeira?
George: É místico.
Hilly: Então você está dizendo: “O que é bom para as azaleias é bom para as begônias”.
George: Eu não poderia ter expressado melhor.
[…] Hilly: Bom, então, o que aconteceria se você tratasse uma azaleia como um rododendro?
:: GANGUE DE TEXUGOS ::
Stirling Observer, maio de 1986
William Golpo, morador do condado de Raploch, sobreviveu a um ataque de texugos nesse domingo. Segundo o dr. Kenneth Frew, especialista local, tudo leva a crer que eram seis texugos, talvez sete.
:: INFORME ::
Revista Sino Azul, jan. 1928
:: A FLUNFA ::
Da Redação
A flunfa. Verdade seja dita, não é apenas um acúmulo de detritos na cavidade umbilical, mas o amálgama de nosso ser. Fiapos laníferos de uma blusa especialmente querida, nacos de sabonete Phebo, materiais orgânicos de toda sorte, restos de comida e todos os subprodutos de nossos hábitos quotidianos se reúnem no umbigo para celebrar a essência do que somos. Juntos, reagem e oxidam a fim de formar um único elemento primordial, a flunfa, descrita por Demócrito como “a substância-Mãe”.
[trecho omitido do original] pois algumas questões de cunho metafísico devem ser confrontadas pelo cientista que queira melhor compreender o mecanismo de funcionamento desta inhaca corpórea. Trata-se do caráter sazonal e pouco previsível do fenômeno. Ora, durante o inverno, a acumulação flunfeana é intensa devido ao uso de roupas vastamente felpudas e pouco banho; já no verão, o suor e a água do mar dissolvem grande parte do conteúdo flúnfeo, embora no outono ele já comece a se acumular novamente, e assim por diante. [trecho ilegível, que não faz a menor falta para a compreensão do todo]
Recusando-se a estudar temas menores como os mecanismos neurológicos do pensamento e a cura do câncer, o cientista australiano Karl Kruszelnicki resolveu concentrar seus esforços nos fiapos de tecido que se acumulam no umbigo. Sua pesquisa contou com um universo de 4,8 mil pessoas. Aqui vão os resultados:
– 2/3 das pessoas têm fiapos no umbigo (flunfa têxtil)
– pessoas mais velhas acumulam mais flunfa
– há maior incidência em homens do que em mulheres
– pessoas de pele clara têm fiapos mais claros
– a abundância de fiapos está inexplicavelmente ligada à quantidade de pelos na pessoa. Muitos ou poucos pelos diminuem a quantidade de flunfa
– não existe relação com os atributos físicos do portador
– o azul é a cor predominante dos fiapos
:: MAIS SOBRE A FLUNFA ::
662 tipos desconhecidos de bactérias vivem no umbigo humano, segundo um estudo da Universidade da Carolina do Norte. Essas espécies, que nunca tinham sido encontradas e não possuem nem nome científico, dividem o umbigo com mais de 700 outros micro-organismos. (Superinteressante, setembro de 2011)
Em julho de 2011, na Universidade do Estado da Carolina do Norte, o estudo Belly Button Biodiversity encontrou cerca de 1400 grupos diferentes de bactérias vivendo no umbigo de 95 participantes, Desses, 662 eram desconhecidos até então. (Popular Science Brasil, n. 3, 2011)
:: ABAFADO ::
Da série Homicide: Life on the Street (1993, Paul Attanasio)
O ar não circula… Você fala comigo e as tuas palavras ficam coladas na minha cara.
:: OLHARES ÁVIDOS ::
“Berthe”, Guy de Maupassant
Comecei a visitá-los com frequência e rapidamente percebi que a jovem reconhecia o marido e lançava para ele uns olhares ávidos que até aquele momento dirigia somente para os pratos açucarados.
:: BIOGRAFIA ::
Assustadora história da medicina, Richard Gordon
Rudolf Virchow (1821-1902). Esse pequeno professor, fanfarrão e vigoroso, tornou-se um proeminente médico europeu, o que primeiro descreveu a leucemia e era especialista em embolia pulmonar, lúpus da face, gota, tatuagem e arqueologia de Tróia.
:: ODE À ALCACHOFRA ::
Pablo Neruda
La alcachofa
de tierno corazón
se vistió de guerrero,
erecta, construyó
una pequeña cúpula,
se mantuvo
impermeable
bajo
sus escamas,
a su lado
los vegetales locos
se encresparon,
se hicieron
zarcillos, espadañas,
bulbos conmovedores,
en el subsuelo
durmió la zanahoria
de bigotes rojos,
la viña
resecó los sarmientos
por donde sube el vino,
la col
se dedicó
a probarse faldas,
el orégano
a perfumar el mundo,
y la dulce
alcachofra
allí en el huerto,
vestida de guerrero,
bruñida
como una granada,
orgullosa,
y un día
una con otra
en grandes cestos
de mimbre,
caminó
por el mercado
a realizar su sueño:
la milicia.
:: A EXEMPLO DOS PEPINOS DE ESTUFA ::
Sonata a Kreutzer, Liev Tolstói
Pois bem, fui apanhado por esses tecidos de malha, por esses cachos de cabelo e babados. Aliás, era fácil apanhar-me, porquanto eu fora educado naquelas condições em que, a exemplo dos pepinos de estufa, apressa-se a maturação dos jovens apaixonados.
:: CONFISSÃO ::
Outro dia sonhei que meu parceiro tinha se filiado ao PMDB só para me irritar. “O que precisamos neste país é fortalecer o Centrão”, ele teria declarado. Acordei com taquicardia. Significa?
:: O EUCALIPTO ::
Hora do recreio, Paulo Mendes Campos
Não tenho nada contra o eucalipto, Deus me livre! Ouvi a frase logo ao entrar no escritório dum editor. Este, ao apresentar-me ao velhinho que nada tinha contra o eucalipto, pediu-me com bom humor uma declaração de princípio:
–E você? Tem alguma coisa contra o eucalipto?
Mineiro não se compromete assim assim. Sentei-me, tirei um cigarro, sorri, olhei o velhinho, muito simpático. O sorriso dele me dizia o seguinte: eu, se quisesse, podia ser à vontade contra o eucalipto, ele, em absoluto, ficaria zangado, apenas lamentava que eu não estivesse presente à conversa desde o início, mas de certo modo isso era até bom, pois a minha opinião seria mais livre.
:: CARTAZ EM BARRACA DE PRAIA ::
Já não me lembro onde
Emprestamos
Cadeira
Esteira
Guarda-sol
Dentro do nosso limite
:: ANÚNCIO ::
Propaganda da loja Farol das Tintas
Temos todas as cores do mundo
:: A EXEMPLO DOS PEPINOS-DO-MAR ::
A ilha dos daltônicos, Oliver Sacks
Darwin, que parece amar e admirar todas as formas de vida, menciona em A Viagem do Beagle “as nojentas e viscosas holotúrias […] que os gourmands chineses tanto apreciam”. De fato, os pepinos-do-mar não são estimados. Safford menciona tê-los visto “rastejar como enormes lesmas pardacentas”. Jack London, em The cruise of the Snark, descreve-os como “monstruosas lesmas-do-mar”.
:: HEREDITARIEDADE ::
Do filme La Règle du jeu (1939, Jean Renoir)
– Por sorte, você é um homem muito rico
– Sim, puxei ao meu pai.
:: ÉSQUILO É INFALÍVEL ::
Zelda Fitzgerald, março de 1932, Clínica Phipps
Querido Scott, querida Zelda
Despachei o Zola – Descobri que ele estava me ajudando a alimentar minhas desordens psicológicas um pouco demais para meu próprio bem. Ésquilo é infalível e lê-lo é afundar num rol dourado e opulento de prosa que nos forçaria a escrever mesmo que não soubéssemos nada além do alfabeto sírio.
:: MAIS UMA BIOGRAFIA ::
Assustadora história da medicina, Richard Gordon
John Coakley Lettsom (1744-1815) foi para Edimburgo aprender medicina. Cheio de entusiasmo, fundou a atual Sociedade de Medicina de Londres em 1773 e uma dezena de instituições de caridade, incluindo a Sociedade para a Libertação e Ajuda a Pessoas Presas por Pequenas Dívidas, e – com grande visão – a Sociedade Real Humanitária para Ressuscitação dos Aparentemente Mortos.
:: LEGUMES NÃO BASTAM ::
“A magia negra”, Anne Sexton
A mulher que escreve sente demais
tais transes e presságios!
Como se bicicletas e crianças e ilhas
não bastassem; como se carpideiras e faladeiras
e legumes não bastassem nunca.
Ela julga que pode alertar estrelas.
Uma escritora é essencialmente uma espiã.
:: DESEMPANANDO O ESPÍRITO ::
Revista da Semana, Jornal do Brasil, novembro de 1900
:: COQUETÉIS DE GELO E ÁGUA ::
“Animals”, de Frank O’Hara
I wouldn’t want to be faster
or greener than now if you were with me O you
were the best of all my days
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Jornalista irresponsável: Vanessa Barbara (MTB 45.250/SP)
Agradecimentos: Bruno Brasil, Chico Mattoso, Luciana Araújo, Marcos Barbará.
*Cuida de tua vida, em latim.
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“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.
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