Blog da Companhia das Letras
10 de julho de 2012
por Vanessa Barbara
Na coluna anterior, abordamos a dolorida questão da cervicalgia literária e o fato de nunca encontrarmos uma boa posição para ler na cama. Agora daremos prosseguimento ao tema com uma questão bastante controversa: o deselegante hábito de “pescoçar” o livro dos outros, favorecendo o torcicolo.
Vejam: não estamos falando aqui de acompanhar ostensivamente a leitura alheia, informando ao vizinho que ele já pode virar a página quando lhe for conveniente (e faça o favor de acelerar esse ritmo), mas de uma prática teoricamente mais discreta e inofensiva, que é descobrir o título do livro que alguém está lendo. É o meu esporte favorito no metrô, no ônibus, na rodoviária, no aeroporto e nas praças.
Sou uma ávida praticante da pescoçagem literária, mesmo quando estou num país de alfabeto cirílico ou idioma que desconheço. Recentemente, na Croácia, levei cerca de quatro minutos para desvendar o título de um romance, o sisudo “Naš čovjek na terenu”. Fiquei mais feliz ou mais sábia com essa informação? Não. Me serviu de algo? Não. Mas valeu a pena.
(Agradecemos ao locutor esportivo Cléber Machado pelo autossofismo acima.)
Inegavelmente habilidosa no ofício, não hesito em lançar mão de expedientes inescrupulosos, se preciso for. Posso derrubar objetos de propósito só para ter de me abaixar e espiar a capa; também recorro a discretos esbarrões e um suposto tique nervoso de natureza variável – pode envolver uma virada de cabeça para o sul, seguida de um piparote para a esquerda, piscando um olho de cada vez, dependendo da localização do alvo.
Quando a encadernação é padronizada e não há como distinguir o livro pela capa, não me deixo abalar. Tento a lombada. Em caso de fracasso, sento-me pimponamente ao lado da vítima e procuro distinguir um cabeçalho qualquer no topo da página, sempre fingindo uma insanidade inofensiva, porém temerária. Na ausência de autor e título, vou pescoçando os nomes dos personagens e dos lugares, com vistas a distinguir um Oliver Twist, um Kurt Wallander, uma Eccles Street ou um bom protagonista do Ítalo Calvino, com aquelas numerosas consoantes e acentos diferenciais.
Já identifiquei muitos livros pela edição, sobretudo os Tolkiens da Martins Fontes, os Milleniums da Companhia das Letras e aquela coleção Debates, da Perspectiva. A biografia do Steve Jobs não tem como errar, embora eu seja da opinião de que, se a capa traz Jobs de frente, a contracapa devia trazê-lo de costas. Fico a imaginar como seria a nuca do polêmico gênio da informática.
Se é falta de educação reparar no livro dos outros, não sei, mas, na dúvida, meto a cara nas capas sem pudor, e os descontentes que me acertem no nariz com sua estimada tradução de Moby Dick. Ainda sou capaz de, surpreendida no ato, elogiar o gosto literário do próximo ou render-me a um silêncio reprobatório, sugerindo bibliografia complementar ou indicando o tambor de reciclagem mais próximo.
Quando estou longe do alvo e não há rotas fáceis de aproximação, procuro me achegar discretamente e proceder ao reconhecimento de forma tímida, casual até. No entanto, essa polida abordagem não costuma gerar resultados tão certeiros quanto a cara de pau pura e simples.
A popularização dos e-books é uma triste realidade para os praticantes do esporte, e um alívio para quem deseja ler as memórias do George W. Bush sem sofrer bullying silencioso dos companheiros de trem. (Uma vez estava no metrô lendo “Umidade”, do Reinaldo Moraes, e acho que angariei um escandalizado sinal da cruz de uma velhinha à minha frente.) Ainda assim, é possível utilizar a tática da adivinhação via personagem, mas a superfície total de pescoçagem é menor e a coisa toda passa a depender mais da sorte e da acuidade visual. Eu pessoalmente não me deixo desanimar por um e-book diminuto, uma fonte tamanho 9, uma cópia encadernada, uma coleção com capa de couro e um leitor superprotetor de suas preferências. Quanto mais difícil, melhor.
Há uma página no Facebook totalmente dedicada a fotos de leitores no metrô, a Biblioteca Subterrânea de Nova York [https://www.facebook.com/UndergroundNYPL]. Cada instantâneo traz uma legenda com o título do livro e o autor. Num deles, um sujeito de gravata lê o início do romance histórico “New York”, de Edward Rutherfurd, de 880 páginas. Dois meses depois, é fotografado já no fim do livro. São rostos compenetrados e sérios, e é divertido relacionar a obra ao leitor, a passagem lida ao ar ausente da pessoa. Daí a necessidade de saber o que os outros leem de tão interessante, e o contorcionismo que advém dessa curiosidade maníaca.
Minhas táticas de guerrilha incluem espreguiçar-se em direção à vítima, fingir que se está distraído e perguntar as horas. É perfeitamente lícito puxar assunto sobre o tempo só pra ver se ela baixa a guarda, mas terminantemente proibido perguntar de chofre o que a pessoa está lendo. Isso implicaria ter que dar a sua opinião sobre o título e efetuar uma desagradável interação humana, o que quase nunca é positivo, já que você pretende apenas sanar a curiosidade e retornar ao seu próprio romance.
Ironicamente – ou mesmo por conta disso –, sou tímida ao expor minhas leituras ao público, fazendo de tudo para dificultar a identificação imediata. É algo cruel, admito. E não acontece só quando estou lendo porcarias, mas também por modéstia. Não fica bem ostentar um Dostoiévski na praia e um Flaubert no original num 118-C. Se é inegável a existência de leitores exibicionistas que carregam por aí suas edições comentadas de Joyce ou Pynchon debaixo do braço, com o título voltado para os transeuntes, há os que, como eu, encapam o livro ou o escondem virado pra baixo, com uma incômoda sensação de que há alguém, em algum lugar, ocupado em roubar seu valoroso segredo.
(Como esse senhor da foto.)