Anacronismo em família

Posted: 25th outubro 2019 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Itaú Cultural
Brechas Urbanas, out. 2019

por Vanessa Barbara

Em meados da década de 1950, meu avô foi contratado como auxiliar de serviços gerais no recém-inaugurado Parque Ibirapuera. Na função de vigia noturno, uma de suas principais atribuições era percorrer o parque de bicicleta acendendo todas as luzes ­– uma a uma, como eu gosto de imaginar, porém mais provavelmente em blocos. Pela manhã ele refazia o caminho apagando tudo. É curioso pensar que, no passado, já foi necessário que uma alma abnegada saísse por aí acendendo e apagando as luzes de um parque de 1,5 milhão de metros quadrados, coisa que hoje em dia ocorre automaticamente ou, sei lá, apertando um só botão.

Na falta de um diploma pomposo na parede e mesmo sem o ensino fundamental completo – ele parou na quarta série –, meu avô Paulo de Moraes sabia se virar. Começou a trabalhar aos 14 anos em uma oficina de consertos gerais, onde aprendia sobre o funcionamento das máquinas enquanto tirava o pó. (Por isso ganhou o apelido de Vassourinha.) Mais tarde trabalhou com o pai, meu bisavô Marcílio, que não tinha sobrenome e era carpinteiro.

Ao longo da vida, ele fez vários cursos por correspondência e aprendeu a consertar todo tipo de traquitanas, de máquinas de lavar a rádios de pilha, passando por televisões e fones de ouvido. Foi encanador, contínuo e auxiliar administrativo. Também tinha conhecimentos de elétrica, assentava tijolos e remendava telhados. Eu me lembro de ir visitá-lo depois que ele passou por uma cirurgia cardíaca. Ele devia estar em repouso, mas saiu de um enorme buraco no quintal, onde remendava o encanamento. No fim das contas, vô Paulo acabou se tornando técnico de raios X e passou a trabalhar em hospitais. Conta-se que ele ensinava os próprios médicos a examinar chapas de pulmão.

Não é que eu queira me gabar, mas minha família tem vasta experiência em ofícios hoje anacrônicos. Meu bisavô materno, Francisco Maria Lopes, trabalhou na Estrada de Ferro Sorocabana como foguista, ou seja, o encarregado de alimentar a caldeira do trem de ferro a vapor. Ele se acidentou quando duas locomotivas se chocaram e sofreu queimaduras severas em uma das pernas, ficando inválido. Consta que era um exímio tocador de bandolim.

Já minha tia-bisavó, América d’Assumpção Pinto, trabalhou a vida inteira como telefonista na Companhia Telephonica Brasileira. Na época, grande parte das ligações não era automática, o que significa que precisavam da intermediação de uma telefonista. “Número, faz favor?” deve ter sido a frase que ela mais disse na vida, incumbindo-se logo em seguida de estabelecer a ligação com o telefone solicitado.

Tia América foi a primeira mulher da família a estudar e trabalhar fora. Era combativa e participou dos protestos contra a execução dos imigrantes anarquistas Sacco e Vanzetti, em 1927, nos Estados Unidos. Começou como telefonista em 1934 com um ordenado de 120 mil réis; logo se efetivou no cargo e foi alocada para a Estação Sete, que cobria a região da Bela Vista. Depois se estabeleceu no departamento de interurbanos: às vezes, dava plantão na estação da Luz ou na estação Sorocabana, hoje Júlio Prestes.

Naquela época, os números de telefone tinham apenas seis algarismos. O da casa da minha tia era 37-3648, e ela foi uma das primeiras na vizinhança a ter um aparelho. Chegou ao cargo de telefonista-chefe e recebeu o emblema do sino de ouro por 30 anos de serviço. Quando se aposentou, ganhou um aspirador de pó.

Era membro atuante do sindicato da categoria. Uma das únicas recordações em papel que tenho dela é um cartão-postal do St. John’s College, em Annapolis, nos Estados Unidos, enviado por um colega de profissão em 1959. Ele escreve:

“À estimada companheira de lutas sindicais, envio [este cartão-postal] como recordação de meu curso no colégio St. John’s, esperando que a continuidade de seu trabalho arregimente o maior número de companheiras telefonistas em torno do nosso sindicato, para melhoria e defesa das leis de proteção da mulher que trabalha.”

O cartão-postal do St. John’s College

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Hoje sei que não é mais necessário contratar um funcionário para acender postes de luz, que a carreira de foguista ferroviário está em absoluta extinção e que ninguém mais precisa saber “inserir a pega do tronco no jack” para que duas pessoas possam conversar em tempo real a distância.

Mas gosto de pensar que, se estivessem vivos, meus habilidosos antepassados se adaptariam a novos ofícios: imagino meu bisavô Francisco pilotando um Airbus A380 até Dubai, meu avô Paulo desenvolvendo o protótipo de uma bicicleta movida a hidrogênio e minha tia América liderando o Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing rumo à tão esperada revolução.


Vanessa Barbara é escritora, jornalista e tradutora. Autora de O Livro Amarelo do Terminal (2008; reportagem), Operação Impensável (2014; romance) e O Louco de Palestra (2014: crônicas), entre outros, já colaborou com os jornais Folha de S.Paulo O Estado de S. Paulo e com a revista piauí. Compõe o time internacional do New York Times. Mantém o site Hortifruti.

Smoke billows during a fire in an area of the Amazon rainforest near Porto Velho, Rôndonia State, Brazil. Credit: Ueslei Marcelino/Reuters

A global treasure lies at the mercy of the smallest, dullest, pettiest of men.

The New York Times
Aug. 24, 2019

By Vanessa Barbara
Contributing Opinion Op-ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — When I first set foot in the Amazon rain forest, in the Anavilhanas Archipelago, northwest of the city of Manaus, I experienced something that can only be described as awe: an overwhelming sense of connection with the universe. Cheesy, I know. But this is something that we rarely feel — only upon seeing a clear tropical night sky, or the ghostly flickering of the northern lights or even the vastness of a French Gothic cathedral.

From the outside, the Amazon is a massive, undistinguished canopy of trees, but once you’re inside it, it is indeed a “monumental universe,” in the words of the anthropologist Claude Lévi-Strauss. It has a strikingly layered structure: The soil lies beneath an entanglement of roots, mosses and decomposing leaves; pale trunks appear and disappear as they climb up into the lush foliage. The tallest trees can reach up to 200 feet, almost the height of the towers of Notre-Dame. And now it is their turn to burn.

The first sign that the Amazon would not have a good year came this month, when the government sacked the head of the National Institute for Space Research, the physicist Ricardo Galvão, who was unpatriotic enough to release data showing a 278 percent jump in deforestation in July compared with the same month the previous year. President Jair Bolsonaro said that he should have been warned about such evidence, which could cause the country great harm internationally. “This is not a posture from a Brazilian, someone who wants to serve his country and is concerned about Brazil’s businesses,” Mr. Bolsonaro said. He suggested that the agency could be lying to make the government look bad.

By then, however, a number of satellite images had emerged showing truly alarming numbers of fires across the Amazon: dozens of smoldering patches of scorched earth, clouding the dark green landscape. Soon they were followed by a more concrete image of a local firefighter offering water to a thirsty armadillo, prompting outrage across the globe. (Later, in an interview, the firefighter explained that the photo had not been taken in the Amazon, but rather in a nearby grassland region.)

According to the institute, the number of fires detected in Brazil so far this year is 84 percent higher than in the comparable period last year; more than half of those are in the Amazon region. More than 1,300 new fires were added over the course of just two days this week. Satellites have captured images of the smoke from the flames sweeping across several Brazilian states. In São Paulo, where I live, dark clouds blackened the sun on Monday, turning day into night. The city is thousands of miles away from the Amazon. Meteorologists scrambled to explain what had happened, but many suspect that the culprit was low-lying clouds from a cold front combining with smoke.

On Twitter, the environment minister, Ricardo Salles, attributed the surge in fires to dry weather, wind and heat. But scientists and environmental organizations disagree. According to a recent statement by researchers from the Federal University of Acre and the Amazon Environmental Research Institute, the fires are directly related to deforestation. They were probably set by cattle ranchers, farmers and loggers to clear the land: First they cut the trees; then they wait for the dry season; then they wait until it’s clear they have a president who will do nothing to stop them; then they set it all ablaze.

On Aug. 10, farmers from the northern state of Pará organized a coordinated “fire day” to burn land for agriculture, emboldened by Mr. Bolsonaro’s anti-environmental rhetoric and encouraged by the government’s commitment to weakening the agencies that enforce environmental regulations.

Mr. Bolsonaro, who once threatened to leave the Paris climate accord, is famously dismissive of any environmental concerns — he claims Brazil suffers from an “environmental psychosis” — which, in his opinion, only hinder economic development. In July, he said that environmental issues mattered only to “vegans, who eat only vegetables.” He also declared Brazil and its resources a“virgin” that “every pervert outsider wants.” When asked about the fires, the president suggested, with no evidence, that nongovernmental organizations could have started them to generate negative attention toward his government.

It’s been heartbreaking to watch the country burn, both literally and figuratively, under Mr. Bolsonaro. Right now, Brazilians feel a collective, perplexed grief for everything we stand to lose — not only as Brazilian citizens, but as humans. The Amazon is often described as the Earth’s “lungs,” producing 20 percent of our atmosphere’s oxygen. It also stores carbon dioxide, a major cause of global warming.

And yet, what hurts me most is the bare idea of the millions of Notre-Dames, high cathedrals of terrestrial biodiversity, burning to the ground; all those layers of 100-year-old chestnut trees, vines, rubber trees, palm trees, banana plants, orchids, bromeliads, passion fruit flowers; the macaws, toucans, capybaras, sloths, jaguars, anacondas and ants that called them home. A monumental universe, turning, as I write this, into pasture and soy.


Vanessa Barbara is the editor of the literary website A Hortaliça, the author of two novels and two nonfiction books in Portuguese, and a contributing opinion writer. A version of this article appears in print on Aug. 25, 2019, Section SR, Page 2 of the New York edition with the headline: As the Amazon Burns. 

Sergio Moro, juez principal anticorrupción, parece haber coludido con fiscales para condenar a acusados. (Mateus Bonomi/AGIF, via Associated Press)

El operativo anticorrupción de Brasil está lejos de ser un modelo ejemplar. 

The New York Times / Clarín
12.07.2019

Por VANESSA BARBARA

SAN PABLO, Brasil – En apariencia, la “operación Lava Jato” fue una cruzada virtuosa contra la corrupción política en Brasil.

Durante los últimos cinco años, esta investigación federal expuso inmensos esquemas de sobornos que involucran a los ejecutivos y políticos más importantes de Brasil, lo que resultó en 429 individuos procesados legalmente y 159 condenados. Los medios realizaron una cobertura entusiasta a cada paso de la investigación, ofreciendo apoyo y elogios al derrocamiento de una cultura de corrupción en la política brasileña. En teoría, la investigación debería ser una fuente de orgullo para nuestra joven democracia —sólo que esta no es toda la historia.

Desde el principio, recurrió a procedimientos cuestionables, como usar detenciones previas a los juicios para extraer confesiones a la fuerza y depender demasiado de tratos con la fiscalía. Pero estas no parecieron ser suficientes para desestimar sus esfuerzos contra la corrupción a amplia escala, al menos en opinión del público.

Entonces, el 9 de junio, el sitio de noticias The Intercept Brasil publicó el primero de una serie de reportajes que arrojaban dudas sobre la integridad de los actores principales dentro de la investigación. Los periodistas obtuvieron, de una fuente anónima, un enorme acervo de textos privados, intercambiados vía Telegram, entre fiscales federales y Sergio Moro, el juez principal del “Lava Jato”.

Los mensajes muestran que Moro se extralimitó con frecuencia en su papel como juez —alguien que se supone que es imparcial— para hacer las veces de “consigliere” para la fiscalía. Les ofrecía consejos: deberían, por ejemplo, invertir el orden de diferentes fases de la investigación; reconsiderar una moción específica que planeaban presentar; acelerar ciertos procesos; desacelerar otros. Le pasó a la fiscalía información sobre una potencial fuente nueva; amonestó a los fiscales cuando tardaron demasiado en realizar redadas nuevas; apoyaba o desaprobaba sus tácticas y les dio a conocer por adelantado sus fallos.

Las revelaciones arrojaron nueva luz sobre la condena que dictó Moro al ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva en 2017 (en Brasil, los juicios por jurado están limitados a delitos contra la vida, como homicidio e infanticidio. En otros casos penales, el mismo juez que supervisa la investigación es también el que juzga y sentencia al acusado). El político de izquierda, quien gobernó el país de 2003 a 2010, está actualmente en la cárcel, tras haber sido hallado culpable de cargos de corrupción y lavado de dinero. Se le impidió postularse a la presidencia en un momento en que las encuestas mostraban que era el favorito en la contienda de 2018. El conveniente arresto de Da Silva allanó el camino para la elección de Jair Bolsonaro, de extrema derecha, quien entonces —¡sorpresa!— nombró a Moro como ministro de Justicia de Brasil.

De acuerdo con material publicado por The Intercept, durante el curso de la investigación, Moro se inmiscuyó en cuestiones de la cobertura de la prensa y le preocupaba cómo obtener el apoyo del público para la fiscalía. “¿Qué piensas de estas declaraciones desquiciadas del consejo nacional del PT? ¿Deberíamos refutar oficialmente?”, le preguntó una vez al fiscal federal Deltan Dallagnol, en referencia a un comunicado del Partido de los Trabajadores, al que pertenece Da Silva, en el que la imputación de cargos era considerada una persecución política. Noten el uso de “deberíamos” —como si Moro y Dallagnol estuvieran en el mismo equipo.

Todo esto es sumamente inmoral —si no es que declaradamente ilegal. Viola la Declaración Universal de Derechos Humanos, que dice: “Toda persona tiene derecho, en condiciones de plena igualdad, a ser oída públicamente y con justicia por un tribunal independiente e imparcial, para la determinación de sus derechos y obligaciones o para el examen de cualquier acusación contra ella en materia penal”.

Bajo el Código de Proceso Penal de Brasil, se supone que los jueces son árbitros neutrales y no pueden dar consejos a ninguna de las partes en un caso. Moro también violó muchas cláusulas del Código de Ética Judicial brasileño, sobre todo una que dice que el juez deberá mantener “una distancia equivalente de las partes” y evitar cualquier conducta que pudiera reflejar “favoritismo, predisposición o prejuicio”.

Cuando se reportaron por primera vez las filtraciones, la fuerza de trabajo del “Lava Jato” y Moro no disputaron la autenticidad del material, al argumentar en lugar de eso, como dijo Moro, que los mensajes no mostraban “ningún indicio de alguna anormalidad o de dar indicaciones como magistrado”. Después de algunos días, sin embargo, cambió de estrategia. Comenzó a cuestionar la autenticidad de los mensajes, que en su opinión, podrían haber sido alterados.

Durante una audiencia ante el Senado el 19 de junio, probó ambas explicaciones al mismo tiempo: si cierto mensaje “es auténtico”, dijo, “incluso si es auténtico el contenido es absolutamente legal. No hay problema con ese tipo de declaración. Si ese mensaje es totalmente auténtico. Como dije: no puedo recordar si hace tres años mandé un mensaje de esa naturaleza”.

Los textos también revelan otras infracciones, como el hecho de que los fiscales debatieran estrategias para evitar que Da Silva diera entrevistas desde la cárcel antes de las elecciones, puesto que eso podría ayudar a Fernando Haddad, el candidato del Partido de los Trabajadores. En resumen, las filtraciones ponen al descubierto a un juez inmoral, que colaboró con fiscales por motivos electorales, para detener y condenar individuos que ya consideraban culpables. Su única duda era la mejor forma de hacerlo.

El año pasado, los abogados de Da Silva apelaron a la Suprema Corte de Brasil y exigieron un nuevo juicio, argumentando que Moro no había sido imparcial; los mensajes filtrados fueron añadidos ahora a la petición.

El Colegio de Abogados de Brasil hizo un llamado a que los involucrados en el escándalo sean suspendidos, al decir en un comunicado escrito, “La gravedad de los hechos no puede ser ignorada, y exige una investigación plena, ecuánime e imparcial”.

Pero ha pasado un mes desde los primeros reportes de The Intercept. En realidad, no pasó nada. Y Sergio Moro sigue siendo nuestro ministro de Justicia.

Sergio Moro during testimony Tuesday about the “Operation Car Wash” investigation. Credit: Mateus Bonomi/AGIF, via Associated Press

Brazil’s Operation Car Wash was supposed to overthrow the country’s culture of graft. Instead, it’s brought corruption into the heart of the state.

The New York Times
Jul. 5, 2019

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Op-ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — On the surface, “Operation Car Wash” has been a virtuous crusade against political corruption in this country.

Over the last five years, this federal investigation has uncovered vast kickback schemes involving Brazil’s most important executives and politicians. The operation has led to the criminal prosecution of 429 individuals and the conviction of 159 of them. News outlets have eagerly covered each step of the investigation, pushing for and praising the overthrow of a culture of graft in Brazilian politics. The investigation should, in theory, be a source of pride for our young democracy — only this is not the whole story.

From the beginning, Operation Car Wash resorted to questionable procedures, such as using pretrial detentions to force confessions and relying too heavily on generous plea-bargain deals. But these didn’t seem enough to dismiss its efforts against wide-scale corruption, at least in the public’s eye.

Then, on June 9, the news site The Intercept Brasil published the first in a series of reports casting doubts on the integrity of the main actors within the investigation. The journalists obtained, from an anonymous source, a massive archive of private texts, exchanged over the message service Telegram, between federal prosecutors and the main judge in Operation Car Wash, Sergio Moro. (We’ll come back to him later.)

The leaked messages show that Mr. Moro often overstepped his role as a judge — someone who is supposed to be impartial and free from bias — to act as a consigliere for the prosecution. He offered strategic advice to prosecutors: they should, for example, reverse the order of various phases of the investigation; think again about a particular motion they were planning to file; speed up certain processes; slow down many others. Mr. Moro passed on information about a potential new source to the prosecution; scolded prosecutors when they took too long to stage new raids; endorsed or disapproved of their tactics; and provided them with advance knowledge of his decisions.

The revelations have shed new light on Mr. Moro’s conviction of former President Luiz Inácio Lula da Silva, in 2017. (In Brazil, jury trials are restricted for offenses against life, such as homicide and infanticide. In other criminal cases, the same judge who oversees the investigation is also the one who judges and sentences the accused.) The left-wing politician, who ruled the country from 2003 to 2010, is currently in jail, having been convicted on charges of corruption and money laundering. He was deemed ineligible to run for president precisely at a time when polls showed him to be the front-runner in the 2018 race. Mr. da Silva’s convenient detention cleared the way for the election of the far-right Jair Bolsonaro, who then — wait for it — gracefully appointed Mr. Moro as Brazil’s justice minister.

According to material published by the news site The Intercept Brasil, over the course of the investigation, Mr. Moro meddled in matters of press coverage and worried about how to get the public’s support for the prosecution. “What do you think of these crazy statements from the PT national board? Should we officially rebut?” he once asked federal prosecutor Deltan Dallagnol, referring to a statement by Mr. da Silva’s Workers’ Party in which the indictment was deemed a political persecution. Notice the use of the word “we” — as if Mr. Moro and Mr. Dallagnol are on the same team.

This is all, of course, highly immoral — if not downright illegal. It violates nothing less than the Universal Declaration of Human Rights, which says: “Everyone is entitled in full equality to a fair and public hearing by an independent and impartial tribunal, in the determination of his rights and obligations and of any criminal charge against him.” Under Brazil’s Criminal Procedure Code, judges are supposed to be neutral arbiters and cannot give advice to any of the parties in a case. Mr. Moro also violated many provisions of the Brazilian Code of Judicial Ethics, particularly one that says the judge should maintain “an equivalent distance from the parties,” avoiding any kind of behavior that may reflect “favoritism, predisposition or preconception.”

When the leaks were first reported, the Car Wash task force and Mr. Moro did not dispute the authenticity of the material, arguing instead, per Mr. Moro, that the messages showed “no sign of any abnormality or providing directions as a magistrate.” He also expressed dismay at the “lack of indication of the source of the person responsible for the criminal invasion of the prosecutors’ cellphones” — even though The Intercept’s reasons for not disclosing its source are obvious.

After a few days, though, Mr. Moro changed strategies. He started to question the authenticity of the messages, which, in his opinion, could have been tampered with. During a Senate hearing on June 19, in an apparent attempt to confuse either us or himself, he tried out both explanations at the same time: If a certain message “is authentic,” he said, “even if it is authentic, the content is absolutely legal. There is no problem with that kind of statement. If that message is totally authentic. Like I said: I cannot remember three years ago if I sent a message of that nature.”

(By the way, my favorite excerpt from the leaked material is an exchange between Mr. Moro and Mr. Dallagnol. In the message, Mr. Dallagnol informs Mr. Moro that he has submitted a petition as a strategic move but that it is “not essential.” Mr. Moro, Mr. Dallagnol says, should “feel free, needless to say, to deny” the request. I admire the politeness of the prosecutor here, who doesn’t want to seem too pushy and even offers the judge the choice of ruling freely, this time.)

In addition to the legal collaboration of Mr. Moro, the texts also reveal other offenses, such as the fact that the prosecutors discussed strategies to prevent Mr. da Silva from giving interviews from jail before the elections, since this could help the Worker’s Party candidate, Fernando Haddad.

All in all, the leaks reveal an immoral judge, who teamed up with electorally-motivated prosecutors, in order to arrest and convict individuals that they already considered guilty. Their only question was how best to do it.

The shocking content of these exchanges could give defense lawyers new grounds on which to appeal convictions. Last year, Mr. da Silva’s lawyers appealed to the Supreme Court and demanded a retrial, making the argument that Mr. Moro had failed to be impartial; the leaked messages have now been added to the petition, strengthening their case.

The Brazilian Bar Association has called for the suspension of those involved in the scandal, saying, in a written statement, that “The gravity of the facts cannot be disregarded, requiring a full, unbiased and impartial investigation.”

But almost a month has passed since The Intercept’s first reports. Effectively nothing has been done.

And incredible as it may seem, Sergio Moro is still our justice minister.


Vanessa Barbara is the editor of the literary website A Hortaliça, the author of two novels and two nonfiction books in Portuguese, and a contributing opinion writer. 

A version of this article appears in print on July 8, 2019, on Page A23 of the New York edition with the headline: When the Anti-Graft Crusaders Are Dirty.

A certa altura, no hospital, dancei com Gigio ao som de uma canção interpretada por Frank Sinatra; fomos muito aplaudidos pela obstetra e a enfermeira, que já começavam a se entediar. Ilustração: CAIO BORGES_2019

Como é difícil ter um parto normal no Brasil

Revista piauí – ed. 152
Maio de 2019

por Vanessa Barbara

Nos tempos em que a anestesia não era uma opção, a litotomia era uma das intervenções cirúrgicas mais brutais: consistia na extração de cálculos (pedras) do trato urinário através de uma incisão na bexiga. O paciente – nu da cintura para baixo – era deitado de costas com as pernas flexionadas e afastadas em perneiras, de forma a permitir ao médico uma visão desobstruída da região do períneo (a área que vai do ânus até o órgão sexual). O cirurgião então procedia a seus afazeres, dos quais pouparemos uma descrição pormenorizada em respeito aos leitores mais sensíveis.

Basta dizer que o procedimento precisava durar poucos minutos e que as chances de sobrevivência não eram grandes. Em 1828, a litotomia de um agricultor chamado Stephen Pollard levou quase uma hora e contou com duzentos espectadores. Após efetuar o corte, o cirurgião utilizou inúmeros instrumentos para localizar o cálculo. Então tentou com o próprio dedo. A certa altura, chegou a culpar a profundidade excessiva do períneo do paciente, e se pôs a procurar um assistente com dedos mais longos. A pedra foi finalmente extraída com um fórceps, sob aplausos moderados da plateia – mas o paciente morreu no dia seguinte.

O termo “litotomia” permaneceu na história da medicina para designar a posição até hoje mais utilizada para extrair outro tipo de concreção do interior das gestantes. É também conhecida como posição ginecológica ou posição do frango assado: a paciente fica em decúbito dorsal, com as pernas afastadas e erguidas em estribos, enquanto o médico examina a área, sentado em um banquinho.

Em 2012, segundo a pesquisa Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, 91,7% dos partos vaginais no país foram realizados com as mulheres em posição litotômica. Hoje se sabe que essa não é a melhor posição para dar à luz – pelo contrário. Um documento da organização Cochrane, que faz revisões sistemáticas de estudos, concluiu que as posições mais verticais (nas quais a mulher fica ajoelhada, sentada ou de cócoras) apresentam uma menor duração do período expulsivo do trabalho de parto, além de uma redução nas taxas de episiotomia (incisão cirúrgica no períneo) e da utilização de instrumentos como o fórceps.

A posição litotômica dificulta a ação da gravidade, prejudica o descenso e o encaixamento do bebê, e reduz tanto a amplitude da bacia quanto o diâmetro pélvico. Além disso, aumenta o risco de compressão sobre a aorta e a veia cava, reduz o fluxo de sangue ao útero e pode afetar a oxigenação fetal. Em posições verticais, o sacro pode mover-se para trás, aumentando o diâmetro de saída da pélvis, mas na litotomia todas as estruturas posteriores ficam comprimidas. A mobilidade da pelve é prejudicada.

Em referência às posições horizontais, Roberto Caldeyro-Barcia, médico pioneiro na medicina materno-fetal, já afirmara em 1975: “Excetuando-se ficar dependurada pelos pés, a posição supino [deitada de costas] é a pior posição concebível para o trabalho de parto e a expulsão.”

É, também, uma postura humilhante. A mulher se sente impotente, passiva e exposta. Não há motivos para ser tão utilizada, senão por tradição e conveniência da equipe médica. Não há motivos para ser considerada a única opção disponível.

Na falta de uma indicação categórica a esse respeito, tanto a revisão Cochrane quanto a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendam que a mulher seja encorajada a ficar na posição que julgar mais confortável. O ideal é que ela se mantenha ativa, caminhando e movimentando o corpo como desejar.

Mas é como se essas orientações não pertencessem ao reino do possível. Ouvir e acolher as preferências das mulheres não é uma prática suficientemente corriqueira no contexto obstétrico. Há profissionais que nem tratam suas pacientes com respeito, agindo como se devessem julgá-las e puni-las por disporem de sexualidade. Que elas possam ter alguma voz ou protagonismo ao parir não passa pela cabeça de muitos.

Hoje, cada vez mais, são os obstetras que “fazem” o parto, sob aplausos moderados da plateia – e suas práticas ocasionalmente causam complicações que só eles são capazes de resolver. Isso, por sua vez, aumenta ainda mais a vulnerabilidade da mulher, a quem só resta permanecer deitada com as pernas presas em estribos, expressando-se o mínimo possível para não aborrecer o cirurgião.

O parto, que era para ser um evento fisiológico iniciado e executado pelo corpo da mulher, se tornou uma cirurgia com hora marcada e uma dúzia de espectadores.

Nesse cenário, parir de cócoras é uma resistência.

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Quando fiquei grávida, meu único desejo com relação ao parto era que fosse realizado da forma mais tranquila possível, sem grandes expectativas. Não sonhava em ter uma experiência mística de contato com o sagrado feminino – digamos, um parto orgástico dentro de uma piscina de plástico –, nem entrar em comunhão com a Mãe Terra abraçando um pé de jaca e mentalizando galinhas poedeiras. Tampouco desejava marcar uma cesárea eletiva em uma data e horário bom para as visitas, antecipando conjunções favoráveis no mapa astral do bebê e um signo compatível com suas futuras pretensões de príncipe ou princesa.

Achei que esse desejo de não planejar o implanejável fosse sensato. Na minha cabeça, eu entraria em trabalho de parto e iria até a maternidade indicada pelo meu convênio, onde seria atendida por um plantonista e teria minha filha como tivesse de ser. Antes, leria um pouco sobre fisiologia do parto, faria uns exercícios de preparação e deixaria pronto um setlist no celular com músicas para animar o evento.[1]

A única concessão que faria em termos de planejamento seria a contratação de uma doula – profissional que dá assistência física e emocional às mulheres no parto. Ela me acompanharia em casa desde o início dos trabalhos, aplicando massagens na coluna lombar para aliviar a dor das contrações e me tranquilizando sobre o andamento do processo. Quando a dilatação estivesse mais avançada, iríamos para o hospital.

O plano fracassou logo nas primeiras conversas que tive com outras gestantes. Fiquei sabendo que, hoje em dia, ter um parto normal com um plantonista na maioria das maternidades privadas de São Paulo era tão improvável que a notícia certamente sairia nos jornais. Aparentemente, até se eu estivesse com dilatação total e o bebê já metade para fora, com as mãos estendidas para cumprimentar a equipe médica, era possível que dessem um jeito de enfiar de volta para fazer a cirurgia. Os números confirmam esse prognóstico: dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde apontam que a taxa de cesarianas nas maternidades privadas de São Paulo chegou a 81,4% em 2017. (Nos hospitais públicos, o número é bem menor: 33,9%.)

Sendo assim, pensei que talvez as minhas chances fossem maiores se eu conversasse com a ginecologista/obstetra que me atendia pelo convênio. Logo nas primeiras consultas, ela disse que, claro, acompanhava partos normais. Com o passar dos meses, porém, o discurso foi sutilmente se transformando. Primeiro, ela afirmou que faria um parto normal se tudo estivesse perfeito no fim da gestação. Depois, diante de algumas perguntas mais específicas, insistiu que ainda era muito cedo para saber. Quando avisei que contrataria uma doula, a Obstetra do Convênio – vamos chamá-la dessa forma – comentou que doulas só eram úteis em partos mais “radicais”. Então ela disse que o meu parto poderia ser normal, claro, mas só se as coisas corressem muito bem, “porque doze horas de parto ninguém merece, né, Vanessa”.

Sempre que a médica queria me convencer de algo e fazer parecer que era a melhor opção para mim, ela baixava os olhos para a minha ficha e repetia o meu nome: “Né… Vanessa?” Porém, eu sabia que doze horas era um tempo normal para um primeiro parto. Por mim, sem problemas; era ela quem não “merecia” aquelas doze horas.

Eu sabia também que obstetras que se incomodam em responder perguntas detalhadas sobre o parto, descartando-as como preocupações excessivas, eram aqueles que esperavam tomar o protagonismo para si. “Deixa que eu me preocupo com isso”, ela disse mais de uma vez, orientando-me a comprar uma cinta pós-parto e calcinhas sem costura “para não pegar no local da cicatriz”. (Mesmo sem perceber, tratava a cesárea como o padrão.) Recriminou meu desejo de não saber o sexo do bebê, pois seria difícil encontrar roupinhas de cor neutra. Mas ficou animada quando eu disse que provavelmente iria pedir anestesia, e repetiu o discurso de que “não tem por que ficar querendo umas coisas muito radicais, né, Vanessa?”.

Felizmente, desde o início de 2015 está em vigor uma resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que obriga os convênios a fornecer o percentual de cesáreas e de partos normais dos obstetras e hospitais cobertos pela operadora. Pesquisei os números da Obstetra do Convênio e descobri que, dos dez partos que ela acompanhara no ano anterior, oito haviam sido cesarianas. Péssimo sinal. Na consulta seguinte, perguntei por que ela não havia assistido mais partos normais. Apontando para uma pilha de prontuários, ela respondeu que hoje em dia a maioria das pacientes acaba tendo alguma complicação no decorrer da gravidez.

(Aparentemente seu consultório era o epicentro de um poderoso vórtice de anomalias estatísticas. Fiquei de pesquisar o fenômeno em um momento mais oportuno.)

Tudo apontava para um caso clássico de obstetra cesarista, só que devidamente camuflada. Há várias dicas para identificar um desses profissionais. Por exemplo: se o médico nunca desmarca consultas nem se atrasa, provavelmente não acompanha muitos partos normais, que são imprevisíveis; se pede uma quantidade excessiva de ultrassons, talvez esteja procurando problemas; se deixa consultas pré-marcadas só até as 37 semanas de gestação, é porque já está prevendo que a cesárea acontecerá nessa época. Outra dica para detectar um cesarista é olhar o mural de fotos do consultório: se, na maioria dos retratos, o rosto do bebê está invertido em referência ao da mãe, é uma indicação de que o médico faz cesáreas demais. (Mulheres que têm partos normais pegam os filhos logo após o nascimento e os acolhem junto ao rosto ou ao peito, enquanto as que se submetem à cesárea recebem o bebê de ponta-cabeça, geralmente das mãos do médico.)

É verdade que a Obstetra do Convênio parecia racional em muitas coisas e cuidou bem do meu pré-natal. Mas é verdade também que minha gravidez era de baixíssimo risco e seria preciso uma dose extra de criatividade para apontar problemas que me levassem à cirurgia.

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Sabe-se que o brasileiro é um povo criativo. Nosso país tem a terceira maior taxa de cesáreas do mundo: em 2015, 55,5% de todos os nascimentos foram cirúrgicos. Nesse mesmo ano, os Estados Unidos registraram uma taxa de 32%, ao passo que a Suécia teve 17,4% e a Holanda, 16,6%. Os campeões do mundo são República Dominicana (com 58,1% de cesáreas em 2012) e Chipre (com 56,9% em 2015).

É claro que cesarianas são úteis e salvam vidas em inúmeras situações, como nos prolapsos de cordão e descolamentos prematuros da placenta. Em muitos paí-ses da África, há uma necessidade real de facilitar o acesso a esse tipo de cirurgia, bem como aos cuidados básicos pré-natais. Países com taxas muito baixas de cesárea (República do Níger, com 1,4%, ou Serra Leoa, com 2,9%) possuem taxas maiores de mortalidade materna e perinatal.

Dito isso, segundo a Organização Mundial da Saúde, não há evidências de que taxas de cesárea maiores de 10% em uma dada população contribuam para reduzir os índices de mortalidade da mãe e do bebê. Pelo contrário: a cirurgia pode levar a complicações significativas como infecções, hemorragias, embolia pulmonar, trombose e laceração acidental de algum órgão, como bexiga, uretra e artérias. Não há como prever a reação da paciente à anestesia. Também pode haver problemas de cicatrização que afetarão as próximas gestações: aumentam as chances de ruptura uterina, placenta prévia e descolamento prematuro da placenta. A recuperação é mais longa e muitas vezes dolorosa. Segundo um estudo de 2006 publicado no periódico Obstetrics & Gynecology, o risco de morte materna é 3,6 vezes maior na cesariana em comparação ao parto normal.

Para o bebê, a cesariana implica em um maior risco de distúrbios respiratórios e de retenção de fluido nos pulmões. Uma cesárea eletiva (programada antes que a mulher entre em trabalho de parto) realizada nas semanas 37 e 38 aumenta em 120 vezes o risco de síndrome do desconforto respiratório, em comparação a quando ela acontece nas semanas subsequentes. Pode haver demora para adaptar-se à vida extrauterina, bem como para estabelecer a respiração e manter a temperatura do corpo e as taxas de glicemia. Inúmeros estudos apontam também que a falta de contato com a flora vaginal tem um impacto negativo no sistema imunológico do bebê, favorecendo o surgimento de alergias alimentares precoces, alergias de pele e doenças autoimunes. A longo prazo, ele tem mais chances de desenvolver asma, rinite alérgica, diabete tipo 1 e obesidade.

Por fim, a cesariana também tem apresentado correlações com as altas taxas de prematuros no país (11,5%), pois muitas vezes o procedimento é agendado antes de se atingir a maturidade fetal. As principais sequelas são no neurodesenvolvimento e nas funções pulmonares do bebê. Um estudo de 2010 publicado na Revista de Saúde Pública mostrou que, no Brasil, as taxas de baixo peso ao nascer sobem quando o índice de cesáreas passa de 30%.

É por isso que a OMS recomenda que a cesariana seja feita apenas quando há necessidade médica. Mas, como eu disse, o brasileiro é um povo criativo. Na falta de indicações verdadeiras para a cirurgia, nós inventamos: há mais de dez anos circula pela internet uma compilação (real) de 227 indicações estapafúrdias para a cirurgia. A lista foi organizada pela obstetra Melania Amorim e pela parteira Ana Cristina Duarte, notórias ativistas do parto humanizado, e contou com a colaboração de inúmeros profissionais e das próprias gestantes.

As razões mais comuns para preconizar uma cesariana são: cordão umbilical enrolado no pescoço (a famosa “circular de cordão”), bebê grande demais e cesárea anterior. Nada disso é motivo para agendar a cirurgia.

Mas nossos obstetras vão além das desculpas clássicas e apelam para a absoluta falta de sentido, amparando-se na confiança das gestantes: a lista conta com “alergia a placenta”, “asma”, “assalto”, “prisão de ventre”, “escoliose”, “feto com unhas compridas”, “gengivite” e “zika vírus”. No campo da sinceridade, temos: “Jogo do Atlético vs. Cruzeiro”, “trânsito muito intenso” e “feriado prolongado”. Já no âmbito da redundância, registra-se: “Falta de dilatação antes do trabalho de parto.”

Mas o troféu de inventividade vai para o obstetra que lamentou que a gestante fosse tão alta. Segundo ele, isso significava que possuía o canal de parto muito grande – e o percurso deixaria o bebê exausto. Também cabe aqui congratular o doutor particularmente engenhoso que indicou uma cesariana porque, nas palavras dele, “a evolução tornou o corpo feminino incompatível com o parto”.

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Ao repetir que o parto poderá ser normal “se tudo estiver perfeito lá no fim da gestação”, médicos como a Obstetra do Convênio invertem a lógica natural das coisas: o parto deveria ser normal a menos que algo dê errado.[2]

Segundo a pesquisa Nascer no Brasil, 66% das brasileiras iniciam a gravidez desejando um parto normal. Ao longo da gestação, porém, ocorre uma mudança de perspectiva que não pode ser explicada apenas por intercorrências clínicas ou obstétricas. No setor privado, a proporção de mulheres que passou a preferir uma cesariana após as consultas do pré-natal alcançou valores superiores a 70%. Como a maioria é acompanhada pelo mesmo médico durante o pré-natal e o parto, há suspeitas de que exista uma orientação clínica para optar pela cirurgia.

Em alguns casos, a ânsia por agendar uma cesariana reflete o desejo dos próprios médicos de facilitar seu trabalho, tornando mais previsível e rentável um processo que parece mesmo antiquado. No parto normal, a paciente sofre, sangra ou grita por horas a fio só para obter um resultado que poderia ser alcançado em menos de uma hora, de forma mais limpa, educada e a tempo de o médico ir jantar em casa. Considerando a remuneração paga pelos convênios para o parto vaginal, não compensa passar tanto tempo com uma única paciente quando se poderia estar atendendo várias mulheres no consultório ou efetuando múltiplas cirurgias. Em comparação ao parto vaginal, a cesariana é um procedimento muito mais “seguro” para os obstetras.

Para os hospitais privados, a cesárea também é mais lucrativa, já que eles recebem um repasse maior dos planos de saúde, o centro cirúrgico ganha em rotatividade e é possível maximizar o uso dos leitos com o planejamento antecipado das cirurgias eletivas. Há mais gastos (reembolsáveis) com material hospitalar, anestesia, equipamentos e remédios, além de haver um aumento no tempo de internação e nas admissões na UTI neonatal.

Para completar esse quadro, vivemos em uma sociedade que procura desencorajar as mulheres e fazê-las duvidar de que são capazes de parir. Enquanto, nos consultórios, mês após mês, a paciente se depara com um possível problema a mais, nos filmes e séries de tevê, o parto normal é caricatural, selvagem e melodramático. Não raro se traduz em cenas impactantes que ocorrem em quartos sujos de cenários pós-apocalípticos, ou em situações extremas nas quais a grávida precisa roer o cordão com os dentes. É comum, aliás, que o bebê seja um alienígena ou o demônio.[3]

Também nas novelas, segundo um estudo de Claire Stanton, da Universidade Princeton, o parto vaginal é retratado “como um evento doloroso, traumático e primitivo, enquanto a imagem do parto cesariana é calma, controlada e moderna”.

Essa ideia já está tão consolidada no imaginário que, sempre que uma gestante diz que deseja ter o filho de forma natural, as pessoas comentam: “Que coragem!”, e se põem a narrar a história de uma concunhada que estava assistindo à tevê quando começaram as contrações, o cordão umbilical entrou em prolapso e todos morreram. Algo que no passado era comum se tornou um evento temerário, restrito às mulheres mais fortes ou mesmo inconsequentes. Um dos últimos causos que a Obstetra do Convênio me contou foi de uma paciente que chorou de dor e acabou implorando pela cesárea. “É comum que, chegando a hora, elas não aguentem”, comentou.

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A gota d’água foi quando a Obstetra do Convênio disse que sempre fazia episiotomias. “Faço mesmo”, ela repetiu, parecendo se gabar do fato. O termo se refere ao corte realizado na região do períneo com o objetivo de ampliar o canal de parto e supostamente facilitar a passagem do bebê, minimizando o risco de lacerações.

O procedimento foi bastante utilizado no passado, mas entrou em declínio nas últimas quatro décadas, quando estudos mostraram que não havia evidências científicas de seus benefícios. Não só isso: constatou-se que a episiotomia de rotina pode levar a lacerações mais graves e até à disfunção do assoalho pélvico. Uma revisão sistemática Cochrane de 2017 concluiu que a prática indiscriminada da episiotomia resultou em um número maior de mulheres com traumas graves na região da vagina e do períneo. O estudo comparou a episiotomia de rotina à episiotomia seletiva – ou seja, realizada apenas quando há necessidade, como em partos com fórceps.

No início de 2018, a OMS lançou um excelente manual chamado Intrapartum Care for a Positive Childbirth Experience [Cuidados Intraparto para uma Experiência Positiva de Parto], no qual é categórica em não recomendar o uso liberal desse procedimento, acrescentando que, nos dias de hoje, “não há nenhuma evidência para corroborar a necessidade da episiotomia nos cuidados de rotina”.

A despeito de tudo isso, no Brasil, as episiotomias ainda são executadas em 53,5% dos partos vaginais, segundo a pesquisa Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz. O manual da OMS chega inclusive a citar as altas taxas no país, e alega que “o uso rotineiro ou liberal da episiotomia pode estar ligado à excessiva medicalização [do parto], com o fundamento de garantir lucros financeiros para os profissionais”. Muitos obstetras se referem a essa intervenção cirúrgica como “um piquezinho” ou “um cortezinho”, na tentativa de torná-la tão inocente quanto uma picada de injeção.

Diante da minha cara de paisagem, a Obstetra do Convênio me explicou que a “episio” era indispensável em um parto vaginal, do contrário meu períneo jamais seria o mesmo. “Tem gente que diz que os músculos voltam ao lugar, mas não voltam!”, ela garantiu.

Como eu não estava disposta a ter minhas partes íntimas cirurgicamente retalhadas só por uma questão de hábito, resolvi que era hora de buscar uma alternativa à Obstetra do Convênio. Mas entre os médicos que se dedicavam ao parto humanizado, poucos topavam atuar no hospital que o meu plano de saúde cobria, o Hospital e Maternidade Santa Joana, em São Paulo. O estabelecimento tem uma das taxas de cesárea mais altas da cidade: em 2017, 87,8% dos nascimentos por lá foram cirúrgicos, segundo a Secretaria Municipal de Saúde.

(Por e-mail, a assessoria de imprensa do Grupo Santa Joana declarou que o hospital é um centro de alta complexidade focado em gestação de alto risco, prematuridade e bebês de alto risco. “Por isso, gestantes com complicações materno-fetais são avaliadas com máximo rigor para que o desfecho de uma gravidez com intercorrências seja de sucesso. Em decorrência dessas complicações, a indicação médica é uma cesariana, buscando preservar a saúde e a segurança do binômio.”)

Depois de muito procurar, acabei encontrando uma médica – vamos chamá-la aqui de Obstetra Humanizada – que estava credenciada nesse hospital. Ela atendia em um bairro nobre e cobrava 500 reais pela consulta. Àquela altura, eu já estava com 25 semanas de gestação – das quarenta geralmente previstas.

Logo na entrada, expliquei que não queria contratar uma equipe multidisciplinar para o parto. Não só por ser muito caro, mas porque não queria ter tanta gente estranha ao meu redor. Se pudesse escolher, gostaria de ter um parto calmo, reservado, sem precisar mobilizar meia dúzia de profissionais em um grande espetáculo de parturição. Falei que gostaria de ter anestesia à disposição, que estava desempregada e não tinha condições de bancar um parto gourmet, que não queria que tudo isso fosse um fator de ansiedade e que, apesar da minha depressão de tantos anos, estava me sentindo ótima e animada com a gravidez.

Voltei para casa arrasada. Contrariando as expectativas, a Obstetra Humanizada mal pareceu ter me escutado. Disse que fazia questão de trabalhar com uma enfermeira e pediu para a secretária me passar um orçamento com muitos zeros à direita. Só ela cobrava quase 10 mil reais, ou 250 laudas,[4] para acompanhar o parto. A enfermeira, mais 87 laudas. A lista completa contava com um anestesista, uma pediatra da sala de parto, uma pediatra de visitas e um médico auxiliar. A despesa total com a equipe chegava quase aos 25 mil reais, e sem a doula. Também me informou que eu deveria marcar consultas quinzenais em alternância entre ela e a enfermeira, o que acrescentaria ainda mais zeros a essa conta.

Indiferente à minha disposição de seguir inflando sem grandes preocupações, me recomendou fazer exercícios aeróbicos e sessões de fisioterapia para o assoalho pélvico. Além disso, mandou que eu cortasse todo o açúcar da dieta. Disse que comer doces afetaria o sistema nervoso do bebê, e deu a entender que eu seria responsável pelo distúrbio de ansiedade que minha filha carregaria pelo resto da vida, caso eu insistisse em tomar sorvete.

Como se não bastasse, pediu um teste de curva glicêmica, que é feito pelos laboratórios apenas na parte da manhã. Respondi que tenho um caso severo de atraso de fase do sono (distúrbio do ritmo circadiano que afeta todo o metabolismo, sobretudo o ciclo vigília-sono), o que significa que só consigo dormir naturalmente por volta das seis da manhã. Fui recebida com o costumeiro “arrã”. Tentei ser positiva e comentei que devia haver algum laboratório que fizesse esse exame à tarde. Ela disse que não, e acrescentou que era um exame imprescindível. Numa última tentativa de entabular um diálogo, perguntei se fazia sentido submeter um organismo de metabolismo vespertino extremo, que acorda lá pelas três da tarde, a um exame de tolerância a glicose que ocorre só até as onze da manhã. Provavelmente teríamos um resultado inválido. Ela deu de ombros mentalmente e me entregou o pedido de exame.

Nunca mais voltei ao consultório. Saí de lá destroçada, com a sensação de que estava fazendo tudo errado e que jamais seria capaz de parir – não sem contratar um séquito de médicos, obstetrizes, enfermeiras, doulas, pediatras, anestesistas, tocadores de bongô, massoterapeutas, astrólogos, contadores de história, mágicos, equilibristas e uma calopsita adestrada chamada Odete que seria responsável por manter a moral da equipe. Assim como a Obstetra do Convênio, a Obstetra Humanizada também tinha problemas de audição e sabia exatamente o que era melhor para mim – a diferença é que ela cobrava muito mais caro para revelar.

Feito uma amante arrependida, decidi retornar aos braços da Obstetra do Convênio, e quem sabe até deixar marcada uma cesárea.

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Nos hospitais públicos de São Paulo, as taxas de cesárea são bem menores que na rede privada: em 2017, um em cada três nascimentos foi cirúrgico. Ainda assim, os números enganam, já que um parto normal não é necessariamente um parto humanizado. E pode ser ainda pior do que uma cesariana eletiva realizada antes do tempo e sem justificativa plausível.

Segundo um estudo de 2010 divulgado pela Fundação Perseu Abramo, 27% das gestantes atendidas na rede pública relataram ter sofrido violência obstétrica, sendo que na rede privada essa taxa foi de 17%. Também em 2010, uma pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Janaína Marques de Aguiar, constatou a banalização dos abusos nesses locais. Em sua tese de doutorado, intitulada “Violência institucional em maternidades públicas”, ela conta que a maioria das entrevistadas relatou experiências de maus-tratos ocorridos com elas ou com pessoas próximas a elas, revelando um consenso em seu meio social de que isso é comum. Elas foram unânimes em dizer que, nas maternidades públicas, se a mulher fizer “escândalo”, ela será maltratada – isso lhes chega a ser dito pelos próprios profissionais de saúde. A ideia da obediência e da resignação como uma característica esperada das pacientes é apontada por vários estudos. No caso das mulheres que frequentam o SUS, é como se elas não tivessem escolha.

O termo “violência obstétrica” se refere a qualquer ação ou intervenção praticada sem o consentimento informado da mulher, em desrespeito à sua autonomia e integridade física e mental. Pode ocorrer no pré-natal, no parto, no pós-parto, na cesárea e no abortamento.[5] Inclui toda sorte de procedimentos executados à revelia da paciente e contra as mais recentes evidências científicas, como a episiotomia de rotina, o descolamento artificial de membranas, a administração indiscriminada de ocitocina, a obrigatoriedade da posição litotômica, entre outros. Também engloba a negligência no atendimento, a discriminação racial e social, os abusos sexuais e a violência verbal (gritos, zombarias, constrangimentos, insultos, infantilização, maus-tratos, humilhação, coação, ameaças).

A despeito da concretude dos casos, sua terminologia ainda é polêmica. Em um parecer de outubro de 2018, o Conselho Federal de Medicina (CFM) repudiou o termo “violência obstétrica”, que considera uma agressão contra a medicina e à especialidade de ginecologia e obstetrícia. Diz que o uso dessa expressão contém uma “agressividade que beira a histeria”.

Em 2012, a rede de mulheres Parto do Princípio entregou um dossiê para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência Contra as Mulheres. Sob o título “Parirás com dor”, o documento reúne relatos de violência obstétrica em estabelecimentos públicos e privados no Brasil. São histórias de mulheres tratadas como se fossem coisas por profissionais que mal olham para elas, limitando-se a abrir suas pernas e fazer exames “assim, como quem enfia o dedo num pote ou abre uma torneira” – nas palavras de uma gestante atendida num hospital público de Belo Horizonte.

Uma das violências mais comuns é a realização da episiotomia sem o consentimento da paciente. Alguns médicos vão além e incluem no pacote básico do parto normal o chamado “ponto do marido”, um ponto extra realizado ao término da sutura para deixar a vagina mais apertada e supostamente aumentar a satisfação sexual masculina. Isso ocorre em detrimento da saúde da paciente, pois pode haver lesão de nervos da área, perda de elasticidade, estreitamento excessivo e infecção. Não são poucas as mulheres que alegam ter passado a sentir dor nas relações sexuais, algo que pode durar o resto da vida. Por vezes, tais procedimentos são realizados sem analgesia e mesmo quando a paciente informa sua recusa. “Quem manda aqui sou eu”, declararam alguns dos médicos citados no dossiê.

“No caso brasileiro, a questão da episiotomia é marcadamente um problema de classe social e de raça”, escreveu Simone Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, com pós-doutorado em saúde da mulher. “Enquanto as mulheres brancas e de classe média, que contam com o setor privado da saúde, em sua maioria serão ‘cortadas por cima’ na epidemia de cesárea, as mulheres que dependem do SUS (mais de dois terços delas) serão ‘cortadas por baixo’, passarão pelo parto vaginal com episiotomia.” Em certos casos, a incisão é tão grosseira que é chamada jocosamente de “cesárea de vagina”, “hemibundectomia lateral direita” ou “AVC vulvar” (nos casos em que faz a vulva e a vagina ficarem tortas).

Uma ex-funcionária de uma maternidade em Vitória (ES) conta, no dossiê da rede Parto do Princípio, que uma vez assumiu o plantão e encontrou três puérperas chorando de dor. Ao consultar seus prontuários, descobriu que todas tiveram parto normal com episiotomia, mas que não foi prescrita nenhuma medicação para dor, pois o médico dizia que “normal não dói, é coisa da cabeça delas”.

Também é considerada violência obstétrica a violação de direitos garantidos por lei à gestante, como a presença de um acompanhante no pré-parto, parto e pós-parto imediato (tanto em hospitais públicos quanto privados). Muitos estabelecimentos impedem sua entrada sob as mais variadas justificativas, como falta de estrutura, regras internas e “o médico não deixou”. Outros consideram a presença do acompanhante um privilégio, ou passam a restringi-la cobrando taxas, barrando acompanhantes do sexo masculino ou estipulando um tempo máximo de permanência.

Alguns profissionais usam falsos argumentos fisiológicos para justificar violências. Uma enfermeira mencionada na tese de Janaína Aguiar declarou que a ocitocina – hormônio produzido durante o trabalho de parto – “meio que enlouquece”. Uma colega concordou: “A gente sabe que gestante, parturiente, puérpera, não têm a compreensão tanto quanto a nossa. É normal, é fisiológico. Então, assim, você vai repetir dez vezes e vai ter que repetir, e ela pode não compreender aquilo da forma que você acha que uma pessoa vai estar compreendendo. Ela tem uma diminuição no raciocínio e no entendimento.”

Na pesquisa de 2010 Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, da Fundação Perseu Abramo, 10% das entrevistadas afirmam que a equipe médica negou ou deixou de oferecer algum tipo de alívio para a dor durante o trabalho de parto, e 9% dizem que não foram informadas sobre algum procedimento que estava sendo realizado. Ao todo, 23% ouviram algum despropósito, como: “Se gritar eu paro agora o que estou fazendo e não vou te atender” ou o já clássico: “Na hora de fazer não gritou.”[6]

Não raro, vítimas de violência obstétrica descrevem algum tipo de abuso sofrido durante o parto e, ao fim do relato, contemporizam com a frase: “É assim mesmo.” Ou seja: a violência é encarada como algo natural e até esperado.

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Uma das implicações mais insólitas de estar grávida é a necessidade de redigir um documento – o plano de parto – enumerando todas as intervenções que você não quer que sejam realizadas sem o seu consentimento. O plano de parto é previsto pela OMS e está na lista de práticas comprovadamente úteis e que devem ser encorajadas, conforme o guia Care in Normal Birth [Cuidados no Parto Normal], de 1996. Segundo diretrizes publicadas pelo Ministério da Saúde em 2017, cabe aos profissionais de saúde ler e discutir o plano da gestante, levando em consideração as condições para a sua implementação. Não é um documento obrigatório, mas cada vez mais recomendável.

Redigi o meu plano ao completar trinta semanas de gestação, munida do manual da OMS (Intrapartum Care for a Positive Childbirth Experience) e de alguns modelos disponíveis na internet. Os itens foram divididos em: “Trabalho de parto”, “Parto”, “Pós-parto”, “Cuidados com a criança” e “Caso a cesárea seja necessária”.

O principal objetivo do documento é registrar a recusa a uma série de intervenções de rotina condenadas pela OMS e pelo Ministério da Saúde, mas que ainda são realizadas nos hospitais brasileiros. Uma delas é a manobra de Kristeller, que ocorre quando o médico pressiona o fundo do útero da gestante com as mãos a fim de forçar a saída do bebê. Não há evidências científicas suficientes para apoiar esse procedimento, que pode acarretar lesões graves como ruptura uterina, fratura de costelas, dano ao esfíncter anal e traumatismo craniano no feto.[7] Outra é a administração de soro com ocitocina, uma prática comum para acelerar o trabalho de parto, mas que pode provocar contrações bem mais dolorosas e gerar outras complicações, como alteração dos batimentos cardíacos do bebê, hemorragia e ruptura do útero.[8]

Em geral, as maternidades pedem que a gestante assine um termo de consentimento com dizeres genéricos que por vezes retiram sua autonomia de recusar certos procedimentos. O Hospital e Maternidade Santa Joana tem um Termo de Esclarecimento e Consentimento Livre e Informado para Parto, que as gestantes devem assinar na pré-internação. Dois itens são:

“Também fui informada de que em se tratando de parto normal poderá ser realizado, a critério do médico assistente, um corte na minha vagina e vulva (parte externa da vagina) chamado de episiotomia, para ajudar na saída do bebê. [grifo meu]

[…] Sobre o medicamento ocitocina, em regra geral, é usado para corrigir a dinâmica do trabalho de parto sob a responsabilidade do médico obstetra, ou seja, a administração deste fármaco pode corrigir falhas na contração uterina e consequentemente ajudar na dilatação do colo uterino. Poderá ou não ser utilizado após a avaliação do médico responsável.”

Por isso é necessário que a gestante torne explícitas suas preferências em seu plano de parto, do contrário terá dado carta branca aos profissionais do hospital, que podem ou não ser criteriosos. Também convém deixar por escrito as seguintes recusas: rompimento artificial da bolsa (outra forma de acelerar o trabalho de parto), lavagem intestinal (desnecessária) e raspagem dos pelos pubianos (idem). Entre as recomendações de boa conduta que precisam ser mencionadas estão o clampeamento[9] tardio do cordão umbilical e o contato pele a pele imediato com o bebê.

A parturiente deve imprimir o documento com antecedência e deixar uma das vias com a maternidade. Pode ocorrer, porém, que o estabelecimento se recuse a protocolar a entrega. Foi o caso do Santa Joana. Uma funcionária me orientou, por e-mail, a trazer o papel no dia do parto e entregá-lo à equipe que faria o primeiro atendimento. Mas era impossível prever em que condições eu chegaria ao hospital. Além disso, eu já sabia que seria obrigada a assinar um termo de consentimento genérico, e que dificilmente teria energia para exigir alterações.

Por e-mail, a assessoria de imprensa do hospital explicou: “Entendemos que o plano de parto é uma carta de intenções particular para atendimento durante o trabalho de parto e não é rotina hospitalar o protocolo deste instrumento. Contudo, para as gestantes que desejam sanar dúvidas, discutir e pontuar cada um dos itens do plano de parto, há a possibilidade de agendar uma conversa com os especialistas do Programa Consciência Obstétrica.” No entanto, essa alternativa não me foi oferecida.

Por isso, achei mais seguro encaminhar o plano de parto via notificação extrajudicial. No texto, são citados dois artigos do Código de Ética Médica: o de número 31, segundo o qual é vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. E o artigo 24, que o proíbe de “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”.

Convém ressaltar que, em geral, o problema das intervenções médicas no trabalho de parto não está nas intervenções em si, mas no fato de serem realizadas de forma rotineira, mesmo sem indicação real. Isso pode gerar complicações que, por sua vez, levam à inevitabilidade de outras intervenções, num efeito cascata. Um processo fisiológico se torna rapidamente patológico, exigindo a atuação imperativa dos obstetras. Um exemplo: uma gestante dá entrada no hospital em trabalho de parto. É deitada na maca e recebe o famigerado “sorinho”. A ocitocina sintética intensifica as contrações, aumentando a dor. Ela pede analgesia. Após receber o duplo bloqueio, é proibida de comer e beber água. Começa a se sentir debilitada. O fato de estar deitada prejudica ainda mais a evolução do parto. Ela fica sem forças para o expulsivo, e por isso o médico precisa entrar com fórceps. Isso justifica a realização de uma episiotomia. É assim que um parto de baixo risco se torna um parto instrumentalizado e repleto de urgências. Essa mulher vê multiplicadas as suas chances de intercorrências atuais e futuras. O bebê, idem.

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Algumas amigas haviam tido ótimas experiências em casas de parto vinculadas ao SUS, como a Casa Ângela e a Casa de Parto de Sapopemba, mas nesses locais não há opção de pedir analgesia, então, para mim, estavam fora de questão. Também não me agradava a ideia de parto domiciliar, ainda que eu seja favorável à regulamentação dessa alternativa para as gestantes de baixo risco que assim o desejarem.

De modo que retornei ao consultório da Obstetra do Convênio, que me esclareceu que não seria necessário realizar o exame de curva glicêmica porque meus exames de glicose e hemoglobina glicosada estavam excelentes. Por via das dúvidas, passei em consulta com um endocrinologista, que disse o mesmo. E confirmou as minhas suspeitas: se o exame fosse imprescindível, não faria sentido – no meu caso – realizá-lo de manhã.

Na saída, fiquei pensando sobre a insistência de várias amigas que me diziam ser essencial encontrar um obstetra no qual eu confiasse 100%. Muitas também recomendavam contratar uma equipe multidisciplinar, dessas que cobram o equivalente à tradução de um épico hindu. Achava isso um contrassenso. Afinal, o movimento de humanização busca justamente retomar o protagonismo das mulheres no parto, enxergando-o como um processo fisiológico que respeita o tempo de nossos corpos, em oposição a um evento patológico e medicalizável. Confiar cegamente em um profissional é bem o que ocorre no modelo cesarista.

Hoje entendo que essa demanda por um obstetra confiável e por uma equipe dos sonhos faz sentido em um país onde a violência obstétrica é vista como natural e as taxas de cesárea são estratosféricas. Ainda assim, eu, que não confio 100% nem na minha própria mãe,[10] pretendia fugir ao máximo dessa dependência. Por isso redigir o plano de parto foi um passo tão importante: agora eu sabia exatamente o que queria, o que não queria e por quê.

Em todo caso, resolvi marcar uma consulta com outra obstetra adepta do parto humanizado. E assim conheci a dra. Larissa de Freitas Flosi – uma ilha de sensatez num oceano de mecônio. Ela ouviu as minhas angústias e me tranquilizou. O preço da consulta era acessível e ela cobraria menos de cem laudas para acompanhar o parto. Não me impôs suas opiniões, respeitou as minhas preferências e não me deixou neurótica. Pediu uns poucos exames, disse que estava tudo bem e se comprometeu a me atender em horários alternativos que combinassem com o meu distúrbio do sono.

Àquela altura, eu já estava com 31 semanas. Foi a primeira vez que saí tranquila de uma consulta: eu sabia que agora tinha chances de conseguir um parto respeitoso sem precisar vender uma córnea. Pouco depois, escolhi uma enfermeira obstétrica para ir à minha casa quando as dores começassem. E assim tudo se encaminhou.

As semanas seguintes foram tranquilas, sem grandes preocupações além de adiantar uns trabalhos e assistir a todas as temporadas da série Call the Midwife. Veio o marco das 37 semanas, que é quando a OMS considera que a gestação chegou a termo; o bebê não é mais classificado como prematuro se nascer a partir dessa data.

O tampão mucoso caiu enquanto eu tomava banho, logo após completar 38 semanas. É um dos primeiros sinais de que o trabalho de parto está se aproximando; trata-se de uma substância gelatinosa que é produzida durante a gestação e serve como “rolha” para proteger o útero de bactérias. Ele se desprende quando tem início a abertura do colo uterino, mas isso não significa que o trabalho de parto irá começar de imediato.

Quando eu estava entrando na quadragésima semana, a enfermeira que eu escolhera avisou que não poderia mais me acompanhar. Em cima da hora, com quarenta semanas e um dia de gestação, passei em consulta domiciliar com a enfermeira obstétrica Natália Fachini Meschiatti. Naquele sábado, ela me examinou e disse que estava tudo bem. Antes de ir embora, me passou a receita de um chá mexicano com cacau, canela, pimenta, alecrim, folha de abacateiro e gengibre, que teoricamente ajudava a induzir o trabalho de parto.[11]

Nem tivemos tempo de assinar um contrato.

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Comecei a me sentir esquisita no dia seguinte, 24 de junho de 2018, domingo, às dez e meia da manhã.

Eu havia tomado o chá gosmento na noite anterior e passara a madrugada lendo. Às sete da manhã, terminei uma reportagem da revista The New Yorker sobre um restaurante nas ilhas Faroe e fui deitar. Acordei poucas horas depois me sentindo indisposta. Quando fui ao banheiro, notei um pouco de sangue vermelho-vivo na calcinha. Até então só tivera um incessante escape marrom por causa de um exame de toque que fizera na semana anterior, e por isso fiquei um pouco apreensiva com a mudança de cor. Mas não queria por nada nesse mundo estar nos pródromos (início do trabalho de parto) àquela hora da manhã, não depois de só dormir três horas, de modo que voltei para a cama e me concentrei em não parir.

É claro que não consegui pegar no sono. Pouco depois, abri a porta do quarto feito um espectro e meu marido estranhou – eu só me levantaria àquela hora por um motivo, e tudo indicava que ele já estava a caminho.

Às 11h56 mandei uma mensagem de WhatsApp para a dra. Larissa: “Estou com cólica e começando a sentir umas contrações, acho, um pouco doloridinhas.” Ela sugeriu que eu tomasse um Buscopan e tentasse dormir um pouco – o remédio poderia dar uma amenizada nas contrações de preparo, mas não seria capaz de segurar o trabalho de parto. Sobre o sangue, ela disse que podia ser o colo do útero começando a dilatar.

Pedi para o meu marido comprar o remédio e fiquei assistindo à partida entre Japão vs. Senegal pela Copa do Mundo. Uns dez minutos depois, mandei uma mensagem para a enfermeira Natália dizendo que a dor havia aumentado “um pouco”. Às 12h28, anotei no celular: “Já estamos com 1 a 0 para o Senegal. Vi um urubu pousar no prédio da frente.” Às 12h34, nova observação: “Gol do Japão. A princesa aplaude.”

Enquanto esperava no sofá, debaixo do cobertor, fiquei reparando nos torcedores nas arquibancadas e pensei que devia ser ótimo não sentir nenhuma dor. Foi um dos meus primeiros sintomas de trabalho de parto: invejar quem levava uma vida normal e não estava sentindo o próprio corpo se alargar brutalmente para a passagem de uma pasta de dente muito maior do que a abertura do tubo.

Meu marido voltou com o remédio e eu comentei que o lateral Yuto Nagatomo tinha nome de monstro de filme de terror. Ele não prestou muita atenção. “Godzilla vs. Nagatomo”, repeti, ainda bastante afeita à prática de gracejos. Tomei o comprimido de Buscopan com uma xícara de chocolate quente, um copo de suco de laranja e meio pão com manteiga.

Às 13h10, tive diarreia e informei à enfermeira Natália que as dores estavam aumentando. “Mas ainda está esquisito, pois dura muito pouco e vem de forma bem aleatória”, completei. Ela perguntou se eu estava sentindo a barriga contrair e se o bebê estava se mexendo normalmente. Eu não sabia responder direito a nenhuma dessas questões. “Acho que podem ser os pródromos”, ela comentou. Tentei não entrar em pânico. Se aquilo era só o início, então talvez a cesariana não fosse má ideia.

De volta ao meu posto no sofá, comecei a me virar de um lado para o outro, agoniada. Resolvi pedir para meu marido tomar banho e deixar tudo pronto para sair, caso fosse necessário correr para o hospital. Gigio hesitou por um segundo e comentou, imperturbado: “Estou pensando em dar uma aspirada na casa antes.” Eu respondi, com a delicadeza que o momento exigia: “Eu vou é aspirar a sua fuça.”

Ele foi para o banho.

Às 13h42, eu já estava acocorada na bola de pilates e não encontrava posição que aliviasse. Entrei no chuveiro morno. A bola não cabia dentro do boxe. A sensação era simplesmente esquisita, como de uma cólica menstrual bem intensa. Mas não conseguia distinguir as contrações do trabalho de parto, tal como me haviam descrito: dores no baixo-ventre que irradiam das costas para a frente, bem espaçadas e com duração definida. E uma barriga que se contrai por inteiro.

Ainda assim, às 13h45, abri o aplicativo de smartphone Contraction Timer, que serve para calcular a duração das dores e o intervalo entre elas. Decidi simplesmente segurar o botão start enquanto estivesse com muita dor, e soltar quando já fosse possível respirar um pouco. A primeira contração registrada durou 47 segundos. Após uma pausa de 3 minutos e 45 segundos, veio outra, que durou 55 longos segundos. Depois se seguiram mais 2 minutos e 19 segundos de folga. O padrão continuou mais ou menos assim: contrações de trinta a quarenta segundos, seguidas por intervalos de três a quatro minutos. Repassei as informações para a enfermeira por WhatsApp e acrescentei, às 13h59: “Tá bem ruim. Não sei, viu.” Quatro minutos depois, para a dra. Larissa: “Não tá legal, não… Tô meio desnorteada.” E na sequência: “Tá vindo toda hora, muito forte. Tô quase indo pro hospital pedir todas as intervenções possíveis.”

Meu colo do útero só podia estar se alargando feito uma bexiga – e numa velocidade espantosa – porque às 14h11 eu digitei para a enfermeira Natália: “Vem pra cá, por favor. Tô quase vomitando.” Em seguida: “Tá sangrando mais.”

E para a médica, simplesmente: “Socorro.”

Fiz apenas nove anotações no Contractions e desisti às 14h18, quando se tornou impossível continuar segurando o celular. Voltei para o chuveiro e fiquei por lá, com a água batendo nas costas, apoiada na borda da vidraça que dá para a rua e tentando respirar fundo nos intervalos. O aplicativo tem uma aba para classificar a intensidade da contração, o que é nitidamente inútil: a certa altura, é impossível continuar registrando o que quer que seja. Um aplicativo mais proveitoso traria apenas o aviso: “Se você consegue digitar qualquer coisa no celular é que ainda não dilatou o suficiente. Tente novamente mais tarde.”

Como não temos carro, pensamos em pegar um táxi até o hospital, mas não me agradava a ideia de vomitar na nuca do taxista. Às 14h17, pedi para Gigio ver quanto tempo a enfermeira levaria para chegar. Natália respondeu: 45 minutos. (Acabou demorando uma hora, pois eu moro longe.) A dra. Larissa queria saber como eu estava e meu marido respondeu: “Assustada com a dor. O sangramento não dá para ver direito por causa do chuveiro, mas não deve estar forte.”

Às 14h40, vomitei tanto que entupi a pia. Depois tive mais diarreia. O domingo lá fora estava esplendoroso, mas eu olhava pela janela do banheiro e só pensava em anestesia. A enfermeira ia avisando quanto tempo faltava para chegar, o que na minha cabeça demorou algo entre três meses e quatro anos. Não me surpreenderia se o meu reflexo no espelho já tivesse cabelos brancos.

Natália chegou às 15h20 e foi me examinar. “Quando foi que a bolsa rompeu?”, ela perguntou. “A bolsa rompeu?”, respondi, intrigada. Provavelmente tinha sido durante o banho e eu nem percebi. Ela ficou em silêncio por um tempo e por fim indagou, de forma meio redundante: “Quer saber com quanto de dilatação você está?” Respondi que sim. “Sete para oito”, ela disse, tirando as luvas de látex.

Era hora de correr para o hospital.

Depois disso, as coisas ficaram meio nebulosas. Lembro de dizer que eu iria tomar um banho, no que fui gentilmente dissuadida. Lembro de ver, incrédula, Gigio pegando às pressas um shampoo e um chinelo, e botando outras coisas na mala. Lembro de passar pelo portão do prédio debaixo de um sol forte e ficar aliviada de saber que Natália havia estacionado bem na frente; entrei no banco de trás, estendi um lençol para forrar o assento, abri a janela e saímos.

O percurso durou aproximadamente meia hora. Abracei o banco da frente e tentei respirar como foi possível. No caminho, populares corriam com roupas de ginástica e tomavam sorvete. O domingo de sol parecia injusto aos olhos daquela notívaga morta de sono e em pleno trabalho de parto. Naquele momento, eu daria tudo para ser qualquer outra pessoa do mundo; alguém que pudesse pensar em outra coisa que não fosse naquela dor.

Por fim, chegamos ao hospital, mas ficamos parados atrás de um manobrista que tentava decidir alguma coisa calmamente. Natália meteu a cabeça para fora da janela e gritou: “Emergência! Trabalho de parto!”, o que foi realmente épico. O manobrista hesitou por um instante, como se aquilo fosse surpreendente, e tirou o carro do caminho. Um segurança apareceu correndo com uma cadeira de rodas. (Nome do filme? Um Parto Muito Louco.) Ele disse que me levaria até o Pronto Atendimento, mas que Gigio e a enfermeira teriam de passar antes na recepção. Eles protestaram. O segurança disse que eram normas do hospital e assim nos separamos.

Seguiu-se um preâmbulo desesperador e de puro nonsense: eu e o segurança ficamos parados por cinco minutos à espera do único elevador que estava funcionando. Quando as portas enfim se abriram, uma família alegre saiu de dentro carregando delicadas lembrancinhas de nascimento. Um homem com uma criança também aguardava para subir, mas o elevador era pequeno e ele achou prudente me deixar ir primeiro. Eu chorava de dor, cobrindo o rosto com as mãos.

Entramos direto no pronto-socorro por uma porta dos fundos, e ainda deu tempo de apavorar todas as gestantes que aguardavam no setor dos exames. O elevador havia demorado tanto que, àquela altura, Gigio e Natália já estavam no corredor me procurando freneticamente. (Eles subiram pelas escadas.) Calculo que passei no posto de enfermagem para a triagem, que aconteceu às 15h58, segundo o meu prontuário. Temperatura: 36 graus. Pressão: 13 por 7. Score de dor: 8 de 10. Pulseira: cor de laranja (muito urgente). Histórico: “Paciente refere que hoje pela manhã iniciou quadro de dor e sangramento, aguardou em casa fase ativa do trabalho de parto. Doula [sic] refere que está com 8 centímetros.”

Na sequência, entramos todos em um consultório e fomos atendidos por uma obstetra plantonista às 16h01. Ela me pediu para tirar a roupa a fim de proceder ao exame de toque. Entrei no banheiro, onde tive vontade de me agachar para fazer cocô. Passados uns poucos segundos, ela abriu bruscamente a porta e me mandou sair de lá, pois não me deixaria ter o bebê na privada. Como sou obediente, larguei minhas roupas e os tênis no chão – só fui descobrir o que foi feito deles quase doze horas depois – e subi na maca para o exame. Fui colocada em litotomia. A obstetra relatou um colo fino com 9 centímetros de dilatação.

Haviam se passado apenas quatro horas entre as contrações “um pouco doloridinhas” do meio-dia até o momento em que fui levada ao pronto-socorro numa cadeira de rodas, chorando como se estivesse sendo devorada por um urso. Uma evolução surpreendentemente rápida para um primeiro parto. Depois de carimbar a minha ficha, a médica plantonista informou que eu seria transferida para uma das três suítes LDR (Labor and Delivery Room), com estrutura para partos normais. No Hospital Santa Joana, essas salas são equipadas com uma banheira, uma bola de pilates, uma banqueta especial de parto, uma cadeira de balanço e uma barra fixa (ou escada de Ling).

Mais uma vez me separei de Gigio e Natália, que foram retirar a paramentação cirúrgica e guardar seus pertences nos armários. Antes de sair, Natália me disse que a dra. Larissa já estava no hospital.

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Fui encaminhada (sozinha, e ainda chorando) para a LDR2, onde me depositaram numa cama e puncionaram a minha mão esquerda. Perguntei o que estavam fazendo, e as enfermeiras responderam que estavam instalando um acesso venoso para a colocação de soro. Eu disse que não queria soro – pensei imediatamente em ocitocina sintética –, mas eles já haviam furado e deixaram o acesso pendurado. Me trouxeram o infame Termo de Esclarecimento e Consentimento Livre e Informado para Parto, que eu, naquele estado de dor, obviamente assinei sem questionar. Perguntaram se eu queria anestesia; meio zonza, ia responder que sim, mas uma das enfermeiras plantonistas (ou terá sido a Providência Divina?) me soprou a resposta certa: “Ela quer esperar a médica dela chegar, né?” Repeti a frase com convicção, satisfeita por ter arrumado uma advogada improvisada no meio daquela balbúrdia. Colheram meu sangue sem pedir autorização; depois fiquei sabendo que era para tipagem sanguínea, teste rápido de sífilis e DNA materno.

Eu chorava sem parar, assustada e com dor, sem saber quando chegaria o meu acompanhante e a enfermeira. Foi quando percebi um rosto conhecido no meio da equipe do hospital: era a enfermeira que eu havia contratado de início, mas que precisou me dispensar por imprevistos profissionais. Ela agora trabalhava lá e foi me acalmar, falando comigo bem baixinho. “A Larissa já está vindo”, avisou. Parei de chorar e respondi, em voz alta: “Você estava comendo pipoca? Estou sentindo cheiro de pipoca.”[12]

Depois de um tempo, enfim, todos chegaram: Gigio, Natália e a dra. Larissa. Eles encheram a banheira e eu entrei para ver se aliviava a dor, mas imediatamente comecei a me sentir mal. Pedi anestesia. Às 16h15, a enfermeira do hospital anotou no prontuário: “Gestante apresentou episódio de vômito em grande quantidade.” Lembro apenas de batizar o chão com um líquido esverdeado e repleto de nítidos gomos de laranja, que foi se espalhando lentamente para os cantos da sala. As enfermeiras perguntaram se podiam me colocar no soro. A dra. Larissa pareceu desconfiada, mas, diante da afirmação “É só soro!”, deu a autorização.

O anestesista chegou, pediu que eu assinasse um termo de consentimento e deu início à administração de analgesia combinada (peridural e raquidiana), também chamada de duplo bloqueio. Nesse procedimento, uma agulha é inserida dentro da outra: a mais fina se presta a injetar um anestésico de efeito rápido no espaço subaracnóideo (raquianestesia), enquanto a mais grossa perfura o espaço peridural e dispensa outro tipo de anestésico, que pode ser dosado ao longo do tempo. Uma vez instalado, o cateter peridural permaneceu nas minhas costas feito um apêndice até o fim do parto.

Em poucos minutos, a vida voltou a valer a pena. Pedi para saber o resultado da partida entre Polônia vs. Colômbia, comemorei a vitória dos irmãos latino-americanos e fiquei repetindo “Colônia vs. Polômbia”, como se isso fosse muito engraçado. Descobri que uma das enfermeiras do hospital também dançava rockabilly. Natália ficou sabendo que Gigio é auditor fiscal e aproveitou para tirar umas dúvidas sobre a TFE (Taxa de Fiscalização de Estabelecimentos). Fiquei feliz com a perspectiva de que minha filha nasceria no dia de São João.

Já que o bloqueio motor desse tipo de analgesia é mínimo, não demorei a sair da cama e perambular pelo quarto, fazendo exercícios na bola e deixando um rastro de pingos de sangue. Pedi uma camisola azul para me cobrir, daquelas com amarração nas costas. Uma enfermeira envolveu o meu cabelo em uma touca, precaução um tanto inútil para quem estava sangrando e vomitando pela sala inteira. Diminuímos as luzes do quarto e tapamos com um pano preto um imenso relógio digital que marcava o horário bem na nossa frente, como se dissesse: “Olha só há quanto tempo você já está aqui. Não será hora de desistir?”

A cada contração, eu deixava meu corpo fazer o que dava na telha. Geralmente era pedir “pressão! pressão!”, para que alguém viesse fazer uma contrapressão na região lombar. Então eu segurava na barra fixa e agachava até o chão; sentia que o meu corpo precisava fazer aquele movimento. Ficava de cócoras fazendo força até que a dor diminuía, quando me levantava e saía andando novamente. Gigio e Natália se revezavam no posto do massageador, função que é normalmente desempenhada pela doula.

Por azar, ao dar entrada no hospital, no desespero, Gigio acabou trancando no guarda-volumes a minha bolsa. E eu, que já estava sem roupa, acabei ficando sem os vários apetrechos que havia escolhido para suportar o tranco: garrafas de isotônico, barras de cereal, água, manteiga de cacau, o Kindle, algumas revistas, uma toalha e a cópia do plano de parto para entregar à equipe de enfermagem. Daí a importância de se protocolar o documento com antecedência: você nunca sabe em que estado irá chegar ao hospital.

O celular também ficara na bolsa, e por isso não pude contar com meu ambicioso setlist de parto. Mas Natália escolheu uma rádio de jazz no Spotify e escutamos até encher a paciência. A certa altura, dancei lindy hop com Gigio ao som de Fly Me To The Moon, interpretada por Frank Sinatra. Fomos calorosamente aplaudidos pela obstetra e pela enfermeira, que já começavam a ficar entediadas.

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Essa coisa de parir dá um bocado de sede, de modo que, pouco depois de receber a analgesia, pedi às enfermeiras um copo d’água. Para minha surpresa, elas negaram. O anestesista havia prescrito jejum absoluto de água e alimentos, apesar de isso ser uma prática antiquada e sem embasamento nas mais recentes evidências científicas. Questionado pela dra. Larissa, ele afirmou que o jejum se justificava “pelo risco de virar cesárea”.

Essa restrição se baseia em estudos dos anos 40, segundo os quais um paciente com o estômago cheio teria mais riscos de broncoaspiração no caso de regurgitação após a anestesia geral. Acontece que a anestesia obstétrica já evoluiu muito desde então; a geral só é usada raramente em cesarianas.

Em 2015, um estudo apresentado no congresso anual da Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA) concluiu que as mulheres em gestação de baixo risco se beneficiariam de refeições leves durante o trabalho de parto.[13] A pesquisa ressalta que as necessidades calóricas de uma mulher ao parir são similares às de um maratonista. Sem nutrição adequada, o corpo passa a usar a gordura como fonte de energia, o que eleva a acidez do sangue da mãe e do bebê. Isso pode reduzir as contrações uterinas, aumentar a duração do trabalho de parto e prejudicar a saúde do feto.

Da mesma forma, uma revisão Cochrane de 2013 constatou que não há justificativas para restringir líquidos e alimentos em parturientes de baixo risco. Pouco depois, em 2017, uma meta-análise confirmou que as mulheres que puderam se alimentar mais livremente tiveram partos mais curtos.

Em face dessas novas informações, nos últimos anos, diversas entidades internacionais têm liberado a ingestão de refeições leves durante o trabalho de parto, tais como a Sociedade dos Obstetras e Ginecologistas do Canadá (SOGC), o Colégio Americano de Enfermeiras Obstétricas (ACNM) e o Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (Nice), do Reino Unido. O Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas (ACOG), em um pronunciamento divulgado no ano passado, afirmou que a ingestão de líquidos como água, sucos, chás e isotônicos deve ser encorajada. Em um parecer de 2009, fez uma ressalva: disse que maiores restrições na ingestão de líquidos poderiam ser aplicadas a pacientes com “risco aumentado para cesariana”, o que seguramente não era o meu caso. (A menos que parir no Brasil fosse considerado, por si só, um risco aumentado para a cesárea. Risco estatístico, no caso.)

Assim como a OMS, em seu manual de 2018, recomenda a ingestão de líquidos e alimentos para as gestantes de baixo risco, também o Ministério da Saúde, em suas Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, de 2017, afirma que “mulheres em trabalho de parto podem ingerir líquidos, de preferência soluções isotônicas ao invés de somente água”. E mais: as gestantes “que não estiverem sob efeito de opioides ou não apresentarem fatores de risco iminente para anestesia geral podem ingerir uma dieta leve”.

É importante destacar que nenhuma dessas entidades considerou proibir a ingestão de água durante o trabalho de parto. Foi o que aconteceu no meu caso. Além de ignorar todas as evidências e recomendações dos organismos nacionais e internacionais, a restrição do anestesista desconsiderava uma demanda do meu plano de parto: “Liberdade para tomar água, sucos e alimentos leves, enquanto forem tolerados.”

Por e-mail, a assessoria do hospital alegou que é ofertada uma dieta de acordo com a fase do trabalho de parto, que consiste em soluções isotônicas, gelatina e sorvete de frutas. Ela é concebida para gestantes saudáveis em partos que estão evoluindo dentro dos padrões de normalidade. “Contudo, é de extrema importância que cada mulher seja avaliada individualmente pela equipe médica, atendendo as necessidades específicas e imprevisíveis que naturalmente podem ocorrer ao longo do trabalho de parto e puerpério imediato, modificando a conduta padrão e garantindo a segurança das pacientes.”

Não é preciso citar nenhum estudo científico para entender que privar de água e alimentos uma mulher em trabalho de parto é crueldade. Apesar disso, em 2011, segundo a pesquisa Nascer no Brasil, 75% das brasileiras sofreram essa violência.

No meu caso, pouco importou. Sendo a minha obstetra sabidamente anarquista, instalou-se na LDR2 uma entusiástica desobediência civil. A meu pedido, Larissa, Natália e Gigio entravam e saíam do quarto contrabandeando refrescantes copos de água e luxuriantes potes de gelatina de pêssego. Não acho que teria sido possível suportar nem dez minutos de trabalho de parto sem comer ou beber nada.

Talvez, nesse caso, eu implorasse por uma cesariana.

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Às cinco da tarde eu já havia atingido a dilatação completa (10 centímetros), mas havia um problema: o bebê estava empacado no meio da bacia.

Em linguagem obstétrica, diz-se que o polo cefálico fetal estava no plano das espinhas isquiáticas, ou plano 0, de acordo com a classificação do obstetra americano Joseph DeLee. É o local mais estreito da bacia. Para nascer, a cabeça do bebê precisa passar desse ponto até chegar ao +5, ou seja, 5 centímetros abaixo.

Como as contrações também haviam empacado, às sete da noite a dra. Larissa decidiu administrar uma dose baixa de ocitocina (12 mililitro/hora), e foi aumentando aos poucos. Ela anunciou que, se o bebê não descesse até as nove, nos prepararíamos para uma cesárea.

Eu acompanhava o relógio por trás do pano preto – incapaz de tapar por completo aqueles números gigantes – e achava que não conseguiríamos.

No total, o bebê demorou cerca de seis horas para desentalar. E boa parte do sucesso se deveu à enfermeira Natália, que me orientou a fazer infinitas sessões de agachamento, exercícios com a bola e manobras com um rebozo (xale comprido de algodão muito usado por parteiras e doulas).

Às oito da noite, para delírio dos presentes, o neném desceu para o plano +1. Pedi mais um pouco de analgesia, que aplicaram pelo cateter. De vez em quando, a dra. Larissa ligava a lanterna do celular, agachava até o chão e se punha a inspecionar o andamento dos trabalhos. (É uma sensação estranha: parece que estão fotografando as suas partes.) Outras vezes, Natália ouvia os batimentos fetais com um sonar para ver se estava tudo em ordem. Às dez horas da noite, a cabeça do bebê atingiu o +2. Continuei fazendo força, e a certa altura saiu um simpático cocô.[14] Às onze, chegamos ao +3.

Às 23h20, fui para o leito e testei várias posições para o expulsivo final. A mais confortável foi a “quatro apoios”, popularmente conhecida como “de quatro”. (Na verdade, os apoios eram seis, pois a cabeceira da cama estava elevada e eu me debrucei sobre ela, usando também os cotovelos.) Essa posição deixa a pelve, o sacro e os ossos ilíacos mais livres, facilita o desprendimento dos ombros do bebê e previne lacerações.

E então veio o mais difícil.

“Já estamos vendo a cabeça”, elas me disseram um monte de vezes, acrescentando a informação de que se tratava de um bebê bastante cabeludo. Eu fazia força e mais força, e elas continuavam na mesma: “Estamos vendo a cabeça! Olha!” Aquilo começou a me irritar. Eu estava exausta, com sono e sabia que não estava progredindo. Sentia todo o diâmetro da cabeça do bebê entalado no meio do caminho, como um cocô de 3 quilos e meio que tomou um atalho errado e não conseguia sair; nem toda a força de vontade do mundo seria capaz de expelir um cocuruto daquele tamanho. Na minha mente, era tudo ou nada: ou eu expulsava o bebê de uma vez, num impulso só, ou ele não sairia nunca de lá. A dor era muito grande. Naquele ponto, não havia mais analgesia que desse conta.

Ao nosso redor, pouco a pouco, começaram a chegar alguns profissionais do hospital – como a pediatra neonatal e a enfermeira do plantão – para presenciar o nascimento. Só reparei que a sala estava cheia quando perguntei: “Mas não dá para ajudar a puxar?” e ouvi muitas risadas ao fundo, feito uma claque de série de tevê. Olhei para o lado e havia meia dúzia de espectadores de braços cruzados. “É sério”, eu completei, magoada. Quase mandei todo mundo embora. Não sei para que tanta gente se ninguém estava disposto a puxar.

De vez em quando, em pleno expulsivo final, entrava alguém e fazia uma pergunta descabida para a obstetra, como: “Vai demorar?”, “Quer que chame o pediatra?”, “Quanto tempo de dilatação total?”, e a última do dia: “Vai virar cesárea?”

A equipe da maternidade parecia um pouco perdida nos protocolos. Lembro de ter que responder, em pleno trabalho de parto, a uma infinidade de perguntas de cadastro, como “escolaridade”, “profissão” e “religião”. Lembro também de me irritar com uma enfermeira que, no meio de uma contração das mais doloridas, pediu que eu me virasse um tantinho para que ela pudesse trocar o lençol da cama, que estava manchado de sangue. A preocupação com a esterilização não fazia o menor sentido naquele ambiente.

“Estou morrendo”, informei ao meu marido, que era a única pessoa da sala com quem eu ainda estava conversando. Sinceramente não me importaria se isso acontecesse: seria uma ótima chance de dormir. Só queria que aquilo acabasse logo. Ele não respondeu e trocou olhares preocupados com a obstetra.

Então, às 23h41, sem muito aviso, Mabel nasceu: um serzinho minúsculo e escorregadio que só permaneceu uns dez segundos nas mãos da dra. Larissa. Assim que ela desentalou, a dor imediatamente passou, como que por milagre. Eu me virei de uma só vez, em um movimento ágil que foi descrito pela obstetra como um “triplo carpado”, e me estiquei para pegar o bebê. Trouxe Mabel junto ao peito, falei: “Oi, amiga” e não desgrudei dela por um bom tempo.

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O cordão umbilical foi cortado quarenta minutos após o nascimento, e só então Mabel desacoplou do meu peito para a pesagem. “Recém-nascido: vigoroso”, anotaram no prontuário. Ela também passou com honras na avaliação inicial pediátrica, chamada de escala de Apgar. Voltou para o peito e continuou a mamar, concentradíssima.

Na verdade, de tão saudável, Mabel poderia ter recebido alta e saído do centro obstétrico com um Bilhete Único no bolso, pronta para ir para casa de metrô. O mesmo não podia ser dito da mãe dela que, uma hora e meia após o nascimento, ainda não havia expelido a placenta.

Fui então transferida para o centro cirúrgico, onde seria necessário aplicar mais analgesia para a extração manual do órgão. (O procedimento consiste em puxar o cordão, feito um mágico tirando lenços coloridos da cartola.) Mabel foi levada ao berçário. Não entendi por que não permitiram que Gigio me acompanhasse até a sala de cirurgia ou, no mínimo, por que não o deixaram ficar com o bebê. Em vez disso, tivemos um marido perambulando pelo hospital, um bebê largado e pelado no berçário, e uma puérpera aguardando no corredor pela chegada de um anestesista.[15]

Lá pela uma da manhã realizaram a complementação da raquianestesia e o procedimento teve início. “Foi um expulsivo de sete horas!”, informou a dra. Larissa para uma enfermeira. A extração da placenta demorou só dez minutos, mas a anestesia me deixou paralisada até o pescoço por quase duas horas. Fui transferida para a soturna ala de recuperação pós-anestésica, onde me largaram sozinha numa cama entre dois biombos. Eu tremia muito e não conseguia mexer as pernas. Estava com hipotermia leve e ainda sem nenhuma roupa, coberta apenas por um lençol e com um pano dobrado entre as pernas para absorver o sangue.

Fiquei aguardando a sensibilidade voltar da 1h50 às 3h35. Lá pelas duas e meia, quando a tremedeira diminuiu, reparei que eu era a única mulher sozinha naquela ala e pedi para chamarem meu acompanhante. As enfermeiras perguntaram onde ele estava, e eu respondi que não fazia ideia. Então me pediram o número do celular dele, que eu também não tinha. Depois de um tempo, Gigio apareceu, e juntos indagamos por que Mabel não estava lá comigo. Afinal, ela havia nascido saudável. O setor de recuperação anestésica entrou em contato com o setor do berçário, e eles afirmaram que Mabel não descera para ficar com a mãe porque estava sem roupa. (Um bebê sem roupa! Santa indecência! Onde é que vamos parar?)

Só então informaram meu marido que ele deveria ir ao berçário do 6º andar para honrar suas atribuições de roupeiro. Em pouco tempo, Mabel apareceu na recuperação anestésica com seu portentoso macacão de ratinhos. Um bebê muito rosado, cabeludo e invocado.

Recebi alta às 3h35, mas ficamos uma hora esperando para sermos levadas ao quarto. É que houve algum tipo de confusão no meu prontuário que ninguém sabia resolver. Como eu passara pelo pronto-socorro (trabalho de parto), pelo centro obstétrico (parto normal) e pelo centro cirúrgico (para a extração da placenta), parece que entrei num limbo burocrático. As enfermeiras chamavam outras enfermeiras, que encaravam telas de computador e de palmtops. E eu ali, ainda pelada e sangrando, sem comer nada substancial há quase 24 horas. Antes de me levarem ao quarto, uma das enfermeiras ainda puxou o meu lençol, viu que eu estava sem roupa e estranhou: “Não colocaram o top baby em você?” Ela se referia a uma espécie de bustiê que servia para carregar o bebê. “Minha senhora, olha o meu estado. Claro que não”, eu quase respondi, mas fiquei quieta. No mundo da obstetrícia moderna, mulheres dóceis ganham comida mais rápido.

Chegamos ao quarto às 4h40. Lá, fui informada de que não poderia me vestir nem tomar banho sozinha, pois havia risco de queda. De acordo com a minha ficha, o banho estava agendado só para as onze e meia da manhã, na companhia de uma enfermeira. Perfeitamente compreensível. Eu havia passado o dia todo suando, fazendo cocô no chão, vertendo 300 mililitros de sangue e parindo um bebê rosado, mas quem precisa de dignidade? Eu podia muito bem continuar sangrando num pano dobrado.

E isso nem era o pior: o anestesista só havia liberado o meu café da manhã às 7h25, pois prescrevera um jejum de seis horas após a anestesia.

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Por trás dessa discussão sobre violência obstétrica e autonomia da gestante não há apenas uma questão de lucro hospitalar e prepotência dos profissionais de saúde, mas de considerar a mulher incapaz de raciocinar claramente e de tomar decisões por si própria. Durante a gravidez, o parto e o pós-parto, institui-se uma relação hierárquica na qual a mulher é tratada como um objeto (patológico) de intervenção profissional, e não um sujeito pensante. Esse comportamento paternalista e autoritário é também reproduzido por obstetras e enfermeiras do sexo feminino.

Prova disso é o tratamento infantilizado dado a gestantes e puérperas nos consultórios e hospitais, algo que pude atestar nos dois dias que fiquei internada no pós-parto. Um exemplo: somos muitas vezes chamadas de “mãe” e “mãezinha”. O que algumas mulheres julgam ser carinhoso é, na verdade, pura condescendência. Quando um profissional nos dirige a palavra dessa forma, está a suprimir uma identidade complexa e nos reduzir ao papel social de mãe, como se essa fosse nossa característica mais relevante.

É curioso notar que esse apelo à função materna geralmente ocorre quando se deseja a nossa resignação à dor ou a aceitação de algum protocolo médico-hospitalar. No meu caso, quando anunciaram que o café da manhã só viria dali a mais de duas horas, chorei de raiva e de exaustão. “Estou há mais de um dia sem comer!”, exclamei. Nem água queriam me dar. A enfermeira pareceu compungida e comentou: “Moça bonita não chora.” Ela foi consultar o anestesista e, na volta, me chamando de mãe, reiterou a prescrição do jejum. Alegou que, se eu me alimentasse naquele momento, corria o risco de vomitar.

Eu disse que assumia esse risco e ela respondeu que o médico não havia dado autorização. Insisti e consegui que o café fosse servido por volta das seis e pouco. “Se você vomitar, a culpa vai ser sua, tá?”, ela ainda avisou, como se eu tivesse 8 anos de idade.

Há profissionais que evitam usar termos técnicos com as pacientes, dão explicações vagas e se sentem insultados diante de perguntas. Numa cartilha de 2014 sobre violência obstétrica elaborada pela rede Parto do Princípio e pelo Fórum de Mulheres do Espírito Santo há um relato de uma gestante que pediu explicações de um procedimento e recebeu a seguinte resposta: “Mãezinha, o que adianta eu explicar? Por acaso você vai entender?”[16]

Existe também uma tentativa moralizante de punir a mulher pelo exercício de sua sexualidade. Ela deve sentir dor e obedecer às ordens superiores sem questionar porque ousou exercer seu livre-arbítrio. O “ponto do marido” é uma pista de quem importa nessa equação: “O médico disse que tinha que cortar [episiotomia] porque se ele não cortasse, eu ia ficar com a vagina larga e meu marido ia me trocar por uma outra na rua”, contou uma parturiente de Vitória.

No modelo tecnocrático de assistência ao parto, somos muitas vezes desrespeitadas, menosprezadas e ignoradas. Um bom resumo de como nos sentimos é fornecido por uma puérpera de Vila Velha (ES): “A gente fica lá, sozinha, com dor, não dão água, não dão comida, fica lá largada, sem celular, sem óculos, sem nada, só ouvindo desaforo.”

*

Tive apenas uma laceração leve (de primeiro grau) no períneo, que sarou muito rápido. A obstetra deu dois pontos no local para conter o sangramento, mas nada de episiotomia. Um dia depois eu já não precisava mais tomar nenhum remédio para dor.

Ainda assim, nas 48 horas que se seguiram, algumas enfermeiras entravam no quarto e pediam para olhar “a cicatriz”. Quando eu informava que o parto havia sido normal, elas consultavam a minha ficha e pediam desculpas. “Parto normal é outra coisa”, disse uma delas, referindo-se à pronta recuperação nesse caso. Se é mesmo “outra coisa”, então por que se faz tanta cesárea?

No Hospital e Maternidade Santa Joana, o documento que a gestante recebe com as orientações de alta faz uma menção especial (em letras maiúsculas e sublinhadas) à importância de se higienizar diariamente a incisão cirúrgica. Ainda que de forma não intencional, trata-se a cesariana como padrão.

Até os manobristas costumam perguntar à dra. Larissa, quando ela deixa o carro no local: “E aí, doutora? Cesarinha?” Eles precisam saber quanto tempo os médicos irão ficar no hospital para poder dispor os carros no estacionamento, e sabem que “cesarinha” é uma hora. “Eu já falo: pode deixar o meu no fundão que hoje vou demorar”, conta.

Talvez se trate de um protocolo padrão nas maternidades, mas lá também é proibido que as novas mães troquem a fralda do bebê. É preciso chamar a equipe de enfermeiras do berçário, que aparece com o material. A justificativa do hospital é que existe a necessidade de avaliar a função intestinal e renal do recém-nascido, bem como a integridade cutânea da região do períneo. Também não é permitido cortar as unhas do bebê – “por medidas preventivas de traumas e de infecção”, segundo a assessoria do hospital – nem perambular com ele no colo pelos corredores. Esse tipo de precaução, justificada ou não, acaba sendo mais uma forma de limitar a autonomia das mães.

Imagino o medo que deve sentir uma mulher que passou por uma cesariana ao dar o primeiro banho no bebê após a alta hospitalar: ela ainda está com dor e tem medo de fazer movimentos bruscos. O recém-nascido parece frágil e foi extraído da barriga dela em um ambiente estéril por um pessoal altamente qualificado. Múltiplos protocolos de assepsia foram seguidos após o nascimento. Só podia trocar a fralda quem tivesse inscrição no Conselho Regional de Enfermagem. E então ela se vê sozinha com um bebê que, às cinco horas de uma manhã de inverno, resolve fazer um cocô preto e fedido que se espalha até a nuca.

No meu caso – porque isso de fato aconteceu –, corri com a recém-nascida pelada, levei ao chuveiro e mandei ver na água com sabão. Ela não tinha nem quatro dias de vida. Mas lembrei que aquela batatinha invocada havia nascido envolta em sangue e vérnix, depois de se espremer por uma abertura de tubo de pasta de dente, e que portanto não era tão frágil quanto parecia.

Da mesma forma, seria interessante se a mulher grávida não fosse considerada vulnerável feito um bebê, mas, sim, um adulto inteligente e autônomo, capaz de compreender o que está acontecendo com o corpo e de fazer escolhas embasadas. Que durante o pré-natal as informações lhe fossem fornecidas honestamente e com base nas mais recentes evidências científicas, a fim de que ela possa decidir o melhor caminho a tomar para si e para o bebê.

A autonomia da mulher deveria ser respeitada. Se, depois de informada, ela desejar ter uma cesariana eletiva, que tenha seu desejo atendido e possa agendar a cirurgia a partir das 39 semanas. Se desejar um parto vaginal humanizado, que não precise dispor de tanto dinheiro, determinação ou conhecimento para consegui-lo. Em ambas as situações, ninguém deveria tomar o nosso lugar e ditar o que devemos fazer e querer em matéria de direitos reprodutivos e de saúde.

Ao contrário do que certos obstetras fazem parecer, não somos crianças tolas nem donzelas indefesas em busca de salvação. Somos capazes de gestar e parir pequenas pessoas cabeludas.

Ninguém aqui é “mãezinha”.

P.S.: No segundo dia após o parto, notei que Mabel estava com uma remela endurecida em um dos olhos. Não tínhamos algodão no quarto do hospital e tentei tirar o muco sólido com um lencinho umedecido em água, mas não consegui. Telefonamos então para o berçário e o que se seguiu foi o momento mais patético de toda essa jornada: “Boa tarde, aqui é do 677, precisamos de uma enfermeira para tirar uma remela do bebê.” Depois que esse procedimento de altíssima complexidade foi executado, pedi que ela deixasse algumas bolas de algodão para quaisquer eventualidades. Meu pedido foi negado.

Mesmo depois de parir um bebê de 3 quilos e meio, eu ainda não era qualificada.


[1]  Para o período expulsivo, canções mais óbvias como Push, do Matchbox Twenty, e Stuck in the Middle With You, do Stealers Wheel. Se o escândalo estivesse grande demais, Shout, Sister, Shout, de Sister Rosetta Tharpe. A obstetra, com alguma sorte, entraria em cena com: I Got You Babe, de Sonny and Cher, e a enfermeira com Baby It’s Cold Outside, na voz de Ella Fitzgerald. Para a saída da maternidade, Steppin’ Out With My Baby, interpretada por Fred Astaire.

[2] A própria expressão “parto cesáreo” ou “parto cirúrgico” é um paradoxo criado para naturalizar o que é essencialmente uma cirurgia de extração do feto vivo do útero da mãe. Quando se fala em “tipos de parto”, dá-se a impressão de que o bebê pode nascer naturalmente pela vagina ou, digamos, pelo umbigo, sendo apenas uma questão de optar pelo caminho mais curto no Waze.

[3] É do filme O Sentido da Vida (1983), do grupo britânico Monty Python, a frase mais certeira sobre a medicalização dos partos. A gestante é colocada em litotomia e pergunta aos médicos: “O que eu faço?” Eles respondem: “Nada, querida. Você não é qualificada.”

[4]Na época eu estava vivendo de traduções e calculava o custo de vida em número de laudas. Para bancar uma obstetra gourmet eu precisaria trabalhar uns três ou quatro meses – sem gastar nada.

[5]A violência obstétrica nos casos de abortamento espontâneo ou provocado é um capítulo à parte, já que as pacientes por vezes são tratadas como criminosas. Há casos de médicos que fazem a curetagem sem anestesia e ainda deixam bem claro que se trata de uma punição.

[6]Uma boa resposta a essa grosseria foi dada por uma gestante anônima, conforme registrado no livro Eu Não Quero (Outra) Cesárea, de Luciana Carvalho: “Deitaram-me na maca com as pernas nos apoios, eu estava morrendo de dor e gritava, nesse momento ouvi a pérola: ‘Na hora de fazer você não gritou, né?!’, e eu rapidamente respondi: E QUEM TE FALOU QUE NÃO GRITEI, a enfermeira se irritou e falou que eu não tinha educação.”

[7] Segundo a pesquisa Nascer no Brasil, a manobra foi realizada em 36,1% dos partos ocorridos entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012.

[8]Assim como a episiotomia virou “piquezinho”, o soro com ocitocina é chamado de “sorinho”, na tentativa de fazê-lo parecer inócuo e inofensivo. No Brasil, segundo a mesma pesquisa, houve aplicação de ocitocina sintética em 36,4% dos partos.

[9]Comprimir com clampe, uma espécie de pinça, antes de cortar.

[10]Ela é revisora desta humilde publicação e me ensinou a confiar apenas nas fontes primárias, em Antônio Houaiss e em Napoleão Mendes de Almeida.

[11]Para obter a receita, basta procurar na internet pelo chá da parteira mexicana Naolí Vinaver. (Não se esqueça de procurar seu médico.) Ele provavelmente induz o trabalho de parto ao provocar enorme aversão na gestante.

[12]Em minha defesa, ela confirmou que realmente havia comido pipoca.

[13]Os fatores de risco seriam: obesidade, diabete, pré-eclampsia, eclampsia e administração de analgésicos opioides intravenosos.

[14]Grandes momentos da parturição: fazer cocô em público e achar meio engraçado.

[15]Quando me levantei para deitar na maca, observei com curiosidade o cordão azulado dependurado para fora do meu corpo, com uma tesoura cravada na ponta. Mais um de meus grandes momentos.

[16]Uma amiga conta que, quando ouviu o primeiro “mãezinha”, respondeu: “Pois não, enfermeirinha?” Depois disso, passou a ser chamada pelo nome.

Students protesting against cuts to federal spending on higher education, in Curitiba, Brazil. Credit: Rodolfo Buhrer/Reuters

Brazil’s education system is being strangled by a president who doesn’t believe in learning

The New York Times
Jun. 12, 2019

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Op-ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — According to President Jair Bolsonaro, Brazilian education leaves a lot to be desired. “Everything is going increasingly downhill,” he said last month, to journalists during a trip to Dallas. “What we want is to save education.”

That would seem a reasonable thing to say if Mr. Bolsonaro were, for example, announcing a new education plan or a substantial increase in spending on public schools. But instead, he was alluding to a $1.5 billion “freeze” to Brazil’s education budget. (The government insists on calling it freeze, rather than the cut it is; that’s because, in theory, the funds will be made available when the economic situation improves.) These cuts amount to 30 percent of the discretionary budgets (which cover utility bills, scholarships, cleaning, maintenance and security, among other things) at all federal universities.

The cuts could have concrete impacts, very soon. One of the oldest universities in the country, the Federal University of Paraná, has only a hundred days before it will have to close its doors because it can’t afford to pay for water and electricity. The government has also suspended all future grants for masters and doctorate research.

The cutback hasn’t been limited to higher education: Funding for high schools, elementary education and even day care centers has also been very much affected.

But the situation is most dire for federal universities — schools which, over the last few decades, have achieved a respectable position in Brazilian education, offering high-quality, tuition-free courses for more than a million students. The first step in Mr. Bolsonaro’s rescue plan, in other words, is to throw a few survivors overboard.

But that’s just one example of our president’s nonsensical logic. On that same occasion in Dallas, Mr. Bolsonaro was asked about the tens of thousands of Brazilians, many of them students, who have gathered to rally against the education cuts. He called them “useful idiots and imbeciles,” adding that they have nothing in their heads. “If you ask them what’s the formula for water, they don’t know.”

This from a man who once confessed that he had never read a novel in his life. (To be fair, he said this in an interview 29 years ago, after being elected to Congress. Since then, he’s had time to read at least all the Russians, and I’m sure he has.) This same man also declared, after a visit to Israel’s official Holocaust memorial, that Nazism was a left-wing movement, since the Nazi party has the word “socialist” in its name.

A woman protested cuts to the education budget in Rio de Janeiro last month.Credit: Mauro Pimentel/Agence France-Presse — Getty Images

For Mr. Bolsonaro, as for many political leaders nowadays, an “imbecile” is any impractical thinker. This group includes all sorts of idealists — socialists, environmentalists, pacifists — and also those with occupations that produce nothing tangible or profitable, like humanities professors and artists. Sure enough, in April, Mr. Bolsonaro tweeted that the government was considering withdrawing public funding for philosophy and sociology courses. Instead, it would concentrate its spending on areas that create “immediate return for the taxpayer,” such as veterinary science, engineering and medicine.

Such disdain for the humanities is a clear mistake. If anyone needs basic philosophy and rhetoric courses, it’s our president, who, in front of reporters, seems incapable of meeting even minimum standards of reasoning. He often answers their questions with random platitudes, in the confused way of someone who is reading a distant, blurry teleprompter. Then he invokes a passage of the Bible (“Ye shall know the truth, and the truth shall make you free” is a favorite) or some out-of-place piece of trivia that has little to do with the issue at hand (that the state of Texas collects no income tax is a go-to). If all else fails, he discredits the question, the media outlet and even the journalist.

What’s the educational background of the man himself, you might ask? In 1977 he graduated from Agulhas Negras Military Academy, which offers “solid background in exact sciences, at a complexity similar to that of an Engineering degree,” according to a biography page on the government’s official website. However, the current curriculum of the Academy, pera recent master’s thesis, doesn’t include courses on physics or calculus. What it does include are many hours of philosophy, sociology, law, geopolitics, psychology and military history. When he criticizes the humanities, the president undermines the disciplines integral to his own education in the military sciences.

Mr. Bolsonaro also earned a degree in physical education from the Army School of Physical Education, and would later become a master of parachute jumping, as part of the paratrooper brigade of Rio de Janeiro. “He won first place in a class of 45 students at the Army Physical Education School, as well as first place in the autonomous diver course offered by the Search and Rescue Group of the Rio de Janeiro Fire Department,” the government’s website says.

But the president prefers to emphasize the practical training he received in the Academy as opposed to those useless ethics classes or all that military criminal law nonsense. In a Facebook Live transmission last April, Mr. Bolsonaro praised a refrigerator and TV repair course that he undertook as an army lieutenant decades ago. “If I were to practice that profession out there today, I would earn more — a lot more — than people with a college degree.”

And that, after all, is paramount. The education minister agreed, adding that the government’s primary goal is to teach basic skills to children, such as reading, writing and math. Then they would teach an occupation that can generate income for the student and their family.

Enough of philosophy, sociology, literature, and the humanities. Who needs reasoning when, without it, our children can still grow up to be future Brazilian presidents?


Vanessa Barbara is the editor of the literary website A Hortaliça, the author of two novels and two nonfiction books in Portuguese, and a contributing opinion writer.

Estudantes protestam contra cortes federais no ensino superior em Curitiba, Brasil Créditos: Rodolfo Buhrer/Reuters

The New York Times
12 de junho de 2019

por Vanessa Barbara
Tradução: Uol Notícias / Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Segundo o presidente Jair Bolsonaro, a educação brasileira está deixando muito a desejar. “É cada vez mais ladeira abaixo “, disse ele no mês passado a jornalistas durante uma viagem a Dallas, no Texas (EUA). “Então o que nós queremos é resgatar a educação.”

Isso seria algo razoável de dizer se Bolsonaro estivesse, por exemplo, anunciando um novo plano educacional ou um aumento substancial nos gastos com o ensino público. Mas, não, ele estava se referindo a um corte de R$ 5,7 bilhões no orçamento da educação no Brasil. (O governo insiste em chamá-lo de “contingenciamento”, em vez do corte que é; isso porque, na teoria, os fundos serão disponibilizados quando a situação econômica melhorar.) Esses cortes chegam a 30% dos orçamentos discricionários (que cobrem contas de água e luz, bolsas de estudo, limpeza, manutenção e segurança, entre outras coisas) em todas as universidades federais.

Os cortes podem ter impactos concretos, muito em breve. Uma das universidades mais antigas do país, a Universidade Federal do Paraná, só poderá continuar funcionando por mais cem dias antes de precisar fechar as portas, por falta de condições para pagar água e luz. O governo também suspendeu todos os futuros subsídios para pesquisas de mestrado e doutorado.

O corte não se limitou ao ensino superior: as verbas para ensino médio, ensino fundamental e até mesmo creches também foram muito afetadas.

Mas a situação é mais dura para as universidades federais, que, nas últimas décadas, alcançaram uma posição respeitável na educação brasileira, oferecendo cursos gratuitos e de alta qualidade para mais de um milhão de estudantes. O primeiro passo no plano de resgate de Bolsonaro, em outras palavras, é jogar alguns sobreviventes ao mar.

Mas esse é só um exemplo da lógica absurda do nosso presidente. Na mesma ocasião em Dallas, Bolsonaro foi indagado sobre as dezenas de milhares de brasileiros, muitos deles estudantes, que se reuniram em mobilizações contra os cortes na educação. Ele os chamou de “idiotas úteis e imbecis”, acrescentando que não têm nada na cabeça. “Se você perguntar a fórmula da água, não sabem.”

Isto vindo de um homem que certa vez confessou que nunca leu um romance na vida. (Para ser justo, ele disse isso em uma entrevista há 29 anos, depois de ter sido eleito para o Congresso. Desde então, teve tempo de ler pelo menos todos os russos, e tenho certeza de que o fez.) Esse mesmo homem declarou, após uma visita ao Memorial do Holocausto, em Israel, que o nazismo foi um movimento de esquerda, já que o partido nazista tem a palavra “socialista” no nome.

Para Bolsonaro, assim como para muitos líderes políticos hoje em dia, um “imbecil” é qualquer pensador não prático. Esse grupo inclui todo tipo de idealistas — socialistas, ambientalistas, pacifistas — e também aqueles com ocupações que não produzem nada tangível ou lucrativo, como professores de humanas e artistas. Em abril, Bolsonaro tuitou que o governo estava considerando retirar as verbas públicas para as faculdades de filosofia e sociologia. Em vez disso, concentraria seus gastos em áreas que geram “retorno imediato ao contribuinte”, como veterinária, engenharia e medicina.

Esse desdém pelas ciências humanas é claramente um erro. Se alguém precisa de cursos básicos de filosofia e retórica é nosso presidente, que, diante dos repórteres, parece incapaz de cumprir padrões mínimos de raciocínio. Ele frequentemente responde às perguntas com chavões aleatórios, na maneira confusa de alguém que está lendo um teleprompter distante e embaçado. Então ele invoca uma passagem da Bíblia (“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” é uma das favoritas) ou alguma curiosidade deslocada que tenha pouco a ver com o assunto em questão (o fato de que o Texas não cobra imposto de renda está sempre à mão). Se tudo o mais falhar, ele tenta desacreditar a pergunta, o veículo e até o jornalista.

Mas qual é o histórico educacional do próprio homem, você poderia perguntar? Em 1977, ele se formou na Academia Militar das Agulhas Negras, que oferece “sólida formação em ciências exatas, em uma complexidade semelhante à de um diploma de engenharia”, de acordo com uma página biográfica no site oficial do governo. No entanto, o atual currículo da academia, segundo uma recente dissertação de mestrado, não inclui disciplinas de física ou cálculo. O que de fato inclui na grade são muitas horas de filosofia, sociologia, direito, geopolítica, psicologia e história militar. Quando critica as ciências humanas, o presidente desdenha as disciplinas integrantes de sua própria formação em ciências militares.

Bolsonaro também se formou em educação física pela Escola de Educação Física do Exército, e mais tarde tornou-se mestre em paraquedismo, participando da brigada de paraquedistas do Rio de Janeiro. “Ele conquistou o primeiro lugar em uma turma de 45 alunos da Escola de Educação Física do Exército, bem como o primeiro lugar no curso de mergulho autônomo oferecido pelo Grupamento de Busca e Salvamento do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro”, diz o site do governo.

Mas o presidente prefere enfatizar o treinamento prático que recebeu na academia, em oposição às inúteis aulas de ética ou a toda aquela baboseira de direito penal militar. Em uma transmissão ao vivo no Facebook em abril passado, Bolsonaro elogiou um curso de conserto de geladeira e TV que ele fez como tenente do Exército décadas atrás. “Se eu hoje em dia fosse exercer essa profissão aí fora, eu ia ganhar muito, mas muito mais do que gente que tem um curso superior.”

E isso, afinal, é primordial. O ministro da Educação concordou, acrescentando que o principal objetivo do governo é ensinar habilidades básicas às crianças, como poder ler, escrever e fazer contas. Depois eles ensinariam um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família dela.

Chega de filosofia, sociologia, literatura e humanidades. Quem precisa de raciocínio quando, sem ele, nossos filhos ainda podem crescer para ser futuros presidentes do Brasil?


*Vanessa Bárbara é editora do site literário A Hortaliça, autora de dois romances e dois livros de não-ficção em português, além de colaboradora do INYT de artigos de opinião.

Estudiantes protestando en contra de los recortes al gasto federal en educación superior, en Curitiba, Brasil. Credit: Rodolfo Buhrer/Reuters

The New York Times
15 de junio de 2019

by Vanessa Barbara
Contributing Op-ed Writer

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SÃO PAULO, Brasil — De acuerdo con el presidente Jair Bolsonaro, la educación brasileña deja mucho que desear. “Todo va cada vez más cuesta abajo”, dijo el mes pasado a periodistas durante un viaje a Dallas. “Queremos salvar la educación”.

Este parecería un argumento razonable si Bolsonaro anunciara, por ejemplo, un nuevo plan de educación o un aumento sustancial en el gasto dirigido a las escuelas públicas. Sin embargo, por el contrario, el mandatario estaba aludiendo a un “congelamiento” de 1500 millones de dólares al presupuesto para la educación en Brasil —el gobierno insiste en llamarlo así, en vez del recorte que es; esto se debe, en teoría, a que los fondos quedarán disponibles cuando mejore la situación económica—. Estos recortes representan un 30 por ciento de los presupuestos discrecionales —los cuales cubren los pagos de los servicios, las becas, la limpieza, el mantenimiento y la seguridad, entre otras cosas— para todas las universidades federales.

Los recortes podrían tener impactos concretos muy pronto. Una de las universidades más antiguas del país, la Universidad Federal de Paraná, tiene tan solo cien días antes de verse obligada a cerrar sus puertas porque no puede pagar el agua ni la electricidad. El gobierno también ha suspendido todas las becas futuras para investigación en maestría y doctorado.

El recorte no se ha limitado a la educación superior: el financiamiento de bachilleratos, de la educación primaria e incluso de las guarderías también se ha visto muy afectado.

No obstante, la situación es más extrema para las universidades federales, escuelas que en las últimas décadas se han ganado un lugar respetable dentro de la educación brasileña, pues ofrecen cursos de alta calidad sin pagos de colegiatura para más de un millón de estudiantes. En otras palabras, el primer paso en el plan de rescate de Bolsonaro es lanzar a unos pocos sobrevivientes por la borda.

Sin embargo, ese es tan solo un ejemplo de la lógica absurda de nuestro presidente. En esa misma ocasión en Dallas, a Bolsonaro le preguntaron sobre las decenas de miles de brasileños, muchos de ellos estudiantes, que se han reunido para protestar en contra de los recortes a la educación. Los llamó “imbéciles e idiotas inútiles”, y agregó que no tenían nada en la cabeza. “Si les preguntan cuál es la fórmula del agua, no la saben”.

Esto lo dijo un hombre que alguna vez confesó nunca haber leído una novela en su vida (para ser justos, esto lo comentó en una entrevista hace veintinueve años, después de ser elegido al congreso. Desde entonces, ha tenido tiempo para leer al menos a todos los rusos, y estoy segura de que lo ha hecho). Este mismo hombre también declaró, después de su visita al monumento conmemorativo oficial del Holocausto en Israel, que el nazismo era un movimiento de izquierda, pues el Partido Nazi tenía la palabra “socialista” en su nombre.

Una mujer protestando el mes pasado en Río de Janeiro por los recortes al presupuesto de educación. Credit: Mauro Pimentel/Agence France-Presse — Getty Images

Para Bolsonaro, como para muchos líderes políticos de la actualidad, un “imbécil” es cualquier pensador poco práctico. Dentro de este grupo se encuentran todas las clases de idealistas —socialistas, ambientalistas, pacifistas— y también las personas cuyos trabajos no produzcan nada tangible o rentable, como los profesores de Humanidades o los artistas. Como era de esperarse, en abril, Bolsonaro tuiteó que el gobierno estaba considerando retirar el financiamiento público de los cursos de Filosofía y Sociología. En cambio, iba a concentrar su gasto en áreas que crean “ganancias inmediatas para los contribuyentes”, como la Ciencia Veterinaria, la Ingeniería y la Medicina.

Tal desprecio por las humanidades es un error evidente. Si alguien necesita cursos básicos de retórica y filosofía, es nuestro presidente, quien, frente a los reporteros, parece incapaz de cumplir los más mínimos estándares de razonamiento. A menudo, responde sus preguntas con lugares comunes lanzados al azar, de una manera tan confusa como quien está leyendo un apuntador electrónico borroso y lejano. Luego, invoca un pasaje de la Biblia (“Y conocerán la verdad y la verdad los hará libres” es una de sus favoritas) o alguna trivia fuera del lugar que no tiene casi nada que ver con el tema por tratar (suele recurrir al hecho de que el estado de Texas no recauda un impuesto sobre la renta). Si todo lo demás no funciona, desacredita la pregunta, el medio informativo e incluso al periodista.

Uno se podría preguntar, ¿cuál es la formación de este hombre? En 1977, Bolsonaro se graduó de la Academia Militar das Agulhas Negras, la cual ofrece una “sólida formación en ciencias exactas, con un grado de complejidad similar al de un título de Ingeniería”, de acuerdo con una página de su biografía en el sitio oficial del gobierno. Sin embargo, el actual currículo de la academia, según una tesis reciente de maestría, no incluye cursos de Física ni Cálculo. Lo que sí incluye son muchas horas de Filosofía, Sociología, Derecho, Geopolítica, Psicología e Historia Militar. Cuando critica a las Humanidades, el presidente socava las disciplinas integrales de su propia educación en las ciencias militares.

Bolsonaro también obtuvo un título en Educación Física de la Escuela de Educación Física del Ejército y después se convirtió en un maestro en el salto de paracaídas, como parte de la brigada de paracaidismo de Río de Janeiro. “Se ganó el primer lugar en una clase de 45 estudiantes en la Escuela de Educación Física del Ejército, así como el primer lugar en el curso autónomo de buceo que ofrece el Grupo de Búsqueda y Rescate del Departamento de Bomberos de Río de Janeiro”, dice el sitio web del gobierno.

No obstante, el presidente prefiere realzar la capacitación práctica que recibió en la academia por encima de esas inútiles clases de Ética o todas esas tonterías del Derecho Penal Militar. En una transmisión de Facebook Live de abril, Bolsonaro alabó un curso de reparación de refrigeradores y televisores que tomó como teniente del ejército hace décadas. “Si practicara esa profesión en la actualidad, ganaría más, mucho más, que la gente con un título universitario”.

Y eso, después de todo, es crucial. El ministro de Educación estuvo de acuerdo y agregó que la meta principal del gobierno es enseñar las habilidades básicas a los niños, como leer, escribir y las matemáticas. Luego enseñarán una actividad que pueda generar ingresos para el estudiante y su familia.

Basta de Filosofía, Sociología, Literatura y las Humanidades. ¿Quién necesita el razonamiento cuando, sin él, nuestros hijos aún pueden crecer para ser los futuros presidentes de Brasil?


Vanessa Barbara es la editora del sitio web literario A Hortaliça, autora de dos novelas y dos libros de no ficción en portugués, y colaboradora de artículos de opinión.

“Who commissioned the murder of Marielle?” asked a banner last month, one year after the murder of the city councilwoman and human rights activist Marielle Franco and her driver, Anderson Gomes. Credit: Ian Cheibub / picture alliance, via Getty Images

Just how deep do the connections between Brazil’s paramilitary “death squads” and the government run?

The New York Times
Abr. 10, 2019

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Op-ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — A little more than a year ago, a member of Rio de Janeiro’s City Council was murdered with four shots to the head and neck. The councilwoman, Marielle Franco, was headed home from an event when a car pulled up and someone opened fire, killing her and her driver. It was obvious from the beginning that this was a premeditated, professional assassination. Ms. Franco was a black, feminist L.G.B.T. activist, a fierce human-rights defender who wasn’t afraid to take on sensitive issues: the use of state violence in favelas, for instance, or the involvement of police and politicians in Rio’s paramilitary groups.

There was finally a breakthrough in the case last month, when the state police arrested two suspects. Unsurprisingly enough, they were former military police officers. The alleged shooter, Ronnie Lessa, had retired from the force after being injured in a car-bomb attack; according to investigators, he then took a job as a contract killer and gun runner for one of the most powerful militias in Rio de Janeiro, called the Escritório do Crime, or Crime Bureau. The other suspect, Élcio Vieira de Queiroz, who might have acted as a getaway driver, had been expelled from the police force under suspicion of providing security for an illegal gambling house. (Both men deny involvement in the murders.)

Investigators say Ronnie Lessa, suspected in the murder of Marielle Franco, has ties to Brazil’s president. Credit: Lucas Landau/Reuters

But who ordered the assassination? That’s where things get messy. So messy that last year, the federal police began an inquiry into the local murder investigation, after allegations that it had been systematically obstructed by militia members, public officials and politicians. Last November, Brazil’s public security minister at the time said that it’s “more than a certainty” that powerful people are involved in the murder. Some say, half-jokingly, that it might be easier to pinpoint who is not involved.

By now the federal task force has searched the residences of a former state representative, a former civil policeman, a former federal agent and an active-duty federal police official. Even the current president of Brazil, Jair Bolsonaro, has come under public scrutiny for his ties to both of the suspects in the killing. He and Mr. Lessa were neighbors in a luxury seaside condominium in Rio de Janeiro, and his youngest son once dated Mr. Lessa’s daughter. There is also a picture of Mr. Bolsonaro posing alongside Mr. Queiroz. (The president has denied knowing the men.)

But these could be just coincidences. More troubling is the outspoken sympathy of the president and his family for the paramilitaries.

The infamous “milícias,” in their current form, were established in Rio de Janeiro’s favelas in the late 1990s and early 2000s, under the pretext of protecting residents from drug traffickers. They are mainly formed of active-duty and retired police officers who assume control of the communities and extort money from ordinary citizens and shopkeepers. A 2013 academic reportconcluded that of the roughly 1,000 favelas in the city, 45 percent are controlled by militia organizations and 37 percent by drug gangs.

During his 27 years as a congressman, Jair Bolsonaro repeatedly supported death squads and militias. In 2003, he said, “As long as the state does not have the courage to adopt the death penalty, those death squads, in my opinion, are very welcome.” In a 2008 interview, the future president of Brazil declared that the government should support militias and potentially legalize them, since they “offer security and in this way they can maintain order and discipline in their communities.”

It runs in the family, apparently. Mr. Bolsonaro’s eldest son, the senator Flávio Bolsonaro, was recently revealed to have connections to a former military police captain, Adriano Magalhães da Nóbrega, the purported head of the Crime Bureau. (The ex-police officer is now a fugitive from justice.) Both Mr. Nóbrega’s mother and wife were employed for years in Flávio Bolsonaro’s office when he was a Rio de Janeiro State lawmaker. In a news release, Senator Bolsonaro claimed that the women were hired by someone else and that he was the victim of a smear campaign. But he also praised Mr. Nóbrega twice in Rio’s Legislative Assembly for his work as a police officer, awarding him the highest honor granted by the assembly — the Tiradentes Medal — while he was still in jail on a homicide conviction. (The murder victim was a favela resident who had just denounced crimes of torture and extortion allegedly committed by his police squad.) Incidentally, when Mr. Nóbrega was found guilty and sentenced to 19 years in prison, Jair Bolsonaro, too, came to his defense in the Congress, saying he was a “brilliant officer” and demanding a review of the conviction. (Mr. Nóbrega was eventually acquitted on appeal.)

In 2015, Flávio Bolsonaro was the only legislator to vote against the establishment of a parliamentary commission to investigate frauds in “autos de resistência”— killings on the part of the police that are reported as having occurred in self-defense. He argued that the investigation would put a “knife in the throat” of police officers, who already do not have legal security to carry out their work. In 2008, he spoke of the “happiness” of the people “residing in these communities, supposedly dominated by militiamen.” Finally, last year, he was the only legislator to vote against awarding the Tiradentes Medal — that same honor he once gave to a purported militia leader — to Marielle Franco.

The police say these rifles were found at an address linked to Mr. Lessa, a former police officer. Credit: Civil Police, via Associated Press

Which brings us back to her assassination. Bank records have showed a cash deposit of 100,000 reais (about $25,000) into the alleged shooter’s account. Who ordered the crime? And why? How widespread is the influence of paramilitary gangs in Brazil’s police force and politics?

Those questions are met with silence while the country remains one of the deadliest places for human rights defenders in the world. Many cases are never solved. Most of them seem to be quickly forgotten. The situation looks poised to get only worse, since our new president loathes the concept of human rights (in a 2016 tweet, he compared them to “manure”) and welcomes the actions of death squads (“If it were up to me, they would have all the support,” he told Congress in 2003).

It looks like there’s no need to legalize militias in Brazil, after all. Today one might have the impression that paramilitary groups are not merely acting as a parallel state — they are the state.


Vanessa Barbara, a contributing opinion writer, is the editor of the literary website A Hortaliça and the author of two novels and two nonfiction books in Portuguese.

Ian Cheibub/picture alliance, via Getty Images

The New York Times
16 de janeiro de 2019

por Vanessa Barbara
Tradução: Uol Notícias

Quão profundas são exatamente as ligações entre as milícias e o governo no Brasil?

Pouco mais de um ano atrás, uma representante da Câmara municipal do Rio de Janeiro foi assassinada com quatro tiros na cabeça e na nuca. Marielle Franco estava indo para casa após um evento quando um carro emparelhou com o seu e alguém abriu fogo, matando a vereadora e seu motorista. Ficou óbvio desde o início que havia sido um crime profissional e premeditado. Franco era uma ativista negra, feminista e LGBT, defensora ferrenha dos direitos humanos, que não tinha medo de abordar questões sensíveis como o uso da violência do Estado nas favelas ou o envolvimento da polícia e de políticos nas milícias do Rio.

No mês passado finalmente houve um avanço no caso, quando a polícia do Rio prendeu dois suspeitos. Como já era de se esperar, tratava-se de ex-policiais militares. O suposto atirador, Ronnie Lessa, se aposentara por invalidez após um atentado; de acordo com investigadores, ele então passou a trabalhar como matador de aluguel e traficante de armas para uma das milícias mais poderosas do Rio de Janeiro, chamada Escritório do Crime. O outro suspeito, Élcio Vieira de Queiroz, que pode ter atuado como motorista na fuga, fora expulso da corporação sob suspeita de fornecer segurança para uma casa de jogos de azar. (Ambos negam envolvimento nos assassinatos.)

Mas quem foi o mandante do crime? É aí que a história se complica. Complica tanto que, no ano passado, a Polícia Federal abriu um inquérito sobre a investigação local do assassinato, após alegações de que ela vinha sendo sistematicamente obstruída por membros da milícia, políticos e agentes do Estado. Em novembro passado, o ministro da Segurança Pública da época disse que era “mais que uma certeza” o envolvimento de poderosos no assassinato. Alguns acrescentam, meio a sério, meio de brincadeira, que pode ser mais fácil apontar quem não está envolvido.

Até o momento a força-tarefa federal já realizou buscas nas casas de um ex-deputado estadual, um ex-policial civil, um ex-agente federal e um delegado federal na ativa. Até mesmo o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, passou a ser questionado publicamente por suas ligações com ambos os suspeitos do assassinato. Ele e Lessa eram vizinhos em um condomínio de luxo no Rio de Janeiro, e seu filho mais novo chegou a namorar a filha de Lessa. Também há uma foto de Bolsonaro ao lado de Queiroz. (O presidente nega conhecer os homens.)

Mas essas podem ser só coincidências. Desconcertante mesmo é a simpatia declarada do presidente e sua família pelos milicianos.

As infames “milícias”, em seu formato atual, foram criadas nas favelas do Rio de Janeiro no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, sob o pretexto de proteger os moradores dos traficantes. Elas são formadas principalmente por policiais aposentados e na ativa que assumem controle das comunidades e extorquem dinheiro de cidadãos comuns e comerciantes. Um estudo acadêmico de 2013 concluiu que, das cerca de mil favelas da cidade, 45% são controladas por milícias e 37% por traficantes de drogas.

Durante seus 27 anos como deputado, Bolsonaro apoiou reiteradamente os esquadrões da morte e as milícias. Em 2003, ele disse: “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, esses grupos de extermínio, no meu entender, são muito bem-vindos”. Em uma entrevista de 2008, o futuro presidente do Brasil declarou que o governo deveria apoiar as milícias e possivelmente legalizá-las, já que elas “oferecem segurança e dessa forma podem manter a ordem e a disciplina em suas comunidades”.

Vem de família, aparentemente. Há pouco foi revelado que o filho mais velho de Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro, teria conexões com um ex-capitão da polícia militar, Adriano Magalhães da Nóbrega, suposto chefe do Escritório do Crime. (O ex-policial agora é foragido da Justiça.) Tanto a mãe quanto a mulher de Nóbrega foram empregadas durante anos no gabinete de Flávio Bolsonaro quando ele era deputado estadual do Rio de Janeiro. Em uma nota à imprensa, Flávio alegou que as mulheres foram contratadas por outra pessoa e que ele estava sendo vítima de uma campanha de difamação. Mas ele também elogiou Nóbrega duas vezes na Assembleia Legislativa do Rio por seu trabalho como policial, premiando-o com a mais alta honraria concedida pela assembleia, a Medalha Tiradentes, enquanto ele ainda estava na prisão acusado de homicídio. (A vítima do assassinato era um guardador de carros que, na véspera, havia denunciado crimes de tortura e extorsão supostamente cometidos pela tropa de Adriano na comunidade.) Aliás, quando Nóbrega foi condenado a 19 anos de prisão, Jair Bolsonaro também veio em sua defesa no Congresso, dizendo que ele era um “brilhante oficial” e exigindo uma revisão da condenação. (Nóbrega acabou sendo absolvido após recurso.)

Em 2015, Flávio Bolsonaro foi o único deputado a votar contra a criação de uma CPI para investigar fraudes nos chamados “autos de resistência”, que são mortes cometidas por policiais e registradas como legítima defesa. Ele argumentou que a investigação colocaria uma “faca no pescoço” dos policiais, que já não têm segurança jurídica para realizar seu trabalho. Em 2008, ele falou da “felicidade” das pessoas que “residem nessas comunidades, supostamente dominadas por milicianos”. Por fim, no ano passado, ele foi o único parlamentar a votar contra a concessão da Medalha Tiradentes — a mesma honraria que ele ofereceu a um suposto chefe de milícia — para Marielle Franco.

O que nos traz de volta ao seu assassinato. Registros bancários mostraram um depósito de R$ 100 mil em dinheiro na conta do suposto atirador. Quem encomendou o crime? E por quê? Qual a extensão da influência das quadrilhas paramilitares na polícia e na política do Brasil?

Essas perguntas são recebidas com silêncio enquanto o país continua sendo um dos lugares que mais matam defensores de direitos humanos no mundo. Muitos casos nunca são solucionados. A maioria deles parece ser rapidamente esquecida. A situação só tende a piorar, já que nosso presidente abomina o conceito de direitos humanos (em uma postagem de 2016 no Twitter, ele os comparou a “esterco”) e aprova as ações dos grupos de extermínio (“Se depender de mim, terão todo o apoio”, disse ao Congresso em 2003).

Parece que não há necessidade de legalizar as milícias no Brasil, no fim das contas. Hoje, temos a impressão de que os grupos paramilitares não estão meramente agindo como um Estado paralelo. Eles são o Estado.


Vanessa Barbara, colunista de opinião, é editora do site literário A Hortaliça e autora de dois romances e dois livros de não-ficção em português.