A Hortaliça – #097

Posted: 7th agosto 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças

É ouro rosé para o Brasil

#097 – São Paulo, 7 de agosto de 2024
Consulte-nos sobre seus problemas avícolas
Manduca, jam coctum est*
www.hortifruti.org

“Sabe, Haroldo, tem dias em que nem a minha cueca da sorte com estampa de foguete dá conta.”
(Calvin)

“Agorafobia! Fiquei pensando: Taí uma coisa que eu poderia tentar agora.”
(Joyce Carol Oates)

:: EDITORIAL ::

Nesta edição, a delegação olímpica de A Hortaliça resolve praticar um de seus esportes favoritos – ler os relatórios da PF na íntegra – e compartilha com a torcida os melhores momentos de nosso mais recente thriller policial. Com vocês, o divertidíssimo relatório de 2.528 páginas que indiciou Jair Bolsonaro e seus comparsas por um esquema de venda de joias recebidas de autoridades estrangeiras.

É ouro rosé para o Brasil.


:: EQUILÍBRIO MENTAL ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 118

Essas duas mensagens, assim como as fotos enviadas anteriormente das joias e dos certificados, também foram encaminhadas da conversa que MAURO CID possuía consigo mesmo.


:: PROFISSIONAIS ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 2022-23

Desta forma, essa equipe policial, durante a análise do material apreendido e com as informações coletadas durante a investigação, acredita que MAURO CID, diante dos contatos salvos com o mesmo nome “Nicholas”, tenha enviado as fotos das esculturas para Nicholas Luna acreditando estar enviando as mensagens para Nicholas Fortuna.


:: ARE YOU INTERESTING? ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 2075


:: PROFISSIONAIS 2 ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 1981

Nas trocas de e-mail acima, a empresa Crown and Caliber informa que recebeu a solicitação de venda do relógio GIRARD-PERREGAUX Earth to Sky Edition Watch 49555-1-433-BH6A e que havia enviado outro e-mail contendo a oferta sobre o conjunto.

A troca de e-mails prossegue. Nela fica claro que MAURO CID teria enviado a proposta de vendas para outras lojas, e que havia recusado a proposta da Crown and Caliber de forma equivocada. No e-mail ele pede para a proposta ser reenviada.


:: ADVOGADOS MALUCOS ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 1928-30


:: SELVA ::
Relatório da PF sobre o roubo das joias, p. 1872

:: CHEGA! CHEGA! ::
Colm Tóibín, “Ten rules for writing fiction

Se você precisa ler, então, para se alegrar, leia a biografia de escritores que ficaram loucos.


:: TRÊS CRISTOS ::
Leonard Mlodinow, Subliminar

Em 1959, o psicólogo social Milton Rokeach reuniu três pacientes de psiquiatria para habitar o mesmo quarto no hospital Ypsilanti State, em Michigan. Os três pacientes achavam que eram Jesus Cristo. Já que pelo menos dois tinham de estar enganados, Rokeach imaginou como eles processariam em conjunto essa ideia. 


:: TRISTE DEMAIS ::
Jeffrey Eugenides, As virgens suicidas

Um sanduíche comido pela metade jazia esquecido no patamar, onde alguém tinha se sentido triste demais para terminar de comê-lo. 


:: E CORUJAS ::
Julian Barnes, O sentido de um fim

As coisas que eram tratadas pela Literatura: amor, sexo, moralidade, amizade, felicidade, sofrimento, traição, adultério, bondade e maldade, heróis e vilões, culpa e inocência, ambição, poder, justiça, revolução, guerra, pais e filhos, mães e filhas, o indivíduo contra a sociedade, sucesso e fracasso, assassinato, suicídio, morte, Deus. E corujas. 


:: ESQUILOS DE ESQUI ::

David McRaney, You Are Not So Smart

Por exemplo, se você deseja ensinar um esquilo a praticar esqui aquático, você só precisa começar aos poucos e ir aumentando os esforços.


:: PENSE POSITIVO ::
Oliver Burkeman, The Antidote

Se você estiver sendo torturado lentamente até a morte, você sempre pode ser torturado ainda mais lentamente até a morte.

Reflexo do general Mauro Lourena Cid


:: É ESTRANHO ::
Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray

É estranho, mas dizem que todo mundo que desaparece é visto em San Francisco.


:: INSCRIÇÃO EM UM TRAVESSEIRO ::

Não passar a ferro.


:: HOMENS BRANCOS ::

Harrison Salisbury, ex-editor do NYT
Citado por Gay Talese, O reino e o poder

Quando deixo cair um pedaço de papel no chão, é porque quero que ele fique lá.


:: DISTRAÇÕES ::

Gustave Flaubert, Madame Bovary

Seu companheiro, porém, lhe parecia muito esquisito, pois muitas vezes Léon se estirava na cadeira, distendendo os braços, e se queixava da vida.
– É porque não procurava distrações – dizia o preceptor.
– Quais?
– Eu, no seu lugar, teria um torno.


:: HOJE ::

Emily Dickinson em uma carta

A Existência desbancou os Livros. Hoje eu matei um Cogumelo.


:: SOBRE CHECADORES E REVISORES ::
Mary Norris, Between You & Me

Você quer ter certeza de que, ao sair de casa, a etiqueta na parte de trás do seu colarinho não está aparecendo – a menos, é claro, que esteja deliberadamente vestindo suas roupas do avesso.


:: DIÁLOGOS ALEATÓRIOS ::

Dead Man (Jim Jarmusch, 1995)

– Conhece Cole Wilson?
– Claro! Todos o conhecem, é uma lenda!
– Ele matou os pais.
– Ele o quê?
– Ele matou os pais.
[pausa demorada]
– Os dois?

>>>>

*“Coma, já está cozido”. Palavras que teriam sido pronunciadas por São Lourenço, mártir da igreja católica, enquanto queimava na fogueira.

Agradecimentos: Fausto Salvadori, Érico Assis, Alexandre Morgado, Toninho Gonçalves, Fernando Gherardini, Lucas Pessoa, Roberto Bencz, Taynara Borges, Luis Maian, Xiko Lopes, José Ricardo Alves, André Meneguel.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #096

Posted: 15th julho 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças, Sem categoria

Sorrindo para as batatas

#096 – São Paulo, 15 de julho de 2024
Para aqueles que só pensam na equação de Boltzmann
www.hortifruti.org

Um verdadeiro fracasso não precisa de justificativa. É um fim em si mesmo.
(Gertrude Stein)

“Destinados, como Aristodemos, o Trêmulo, e Roberto Durán, à vergonha e à humilhação?”
(Scott Stossel)

:: EDITORIAL ::

Certo dia, Henry James entendeu que não conseguiria bancar sua vida luxuosa na Europa trabalhando com esmero, então decidiu escrever mais rápido. Na época, morava em um quarto com varanda no Hôtel de Rome; o sol batia na janela aberta e ele se sentava em uma escrivaninha de frente para a Via del Corso. Fico imaginando o jovem aristocrata abusando nos advérbios, empregando todo tipo de chavão, redigindo capítulos muito curtos e inventando o clickbait. Ele mal conseguiria olhar para o que escreveu enquanto estava no processo — talvez prendesse a respiração enquanto trabalhava. Imagino também que ele tivesse de tomar vários banhos demorados depois. Essa intenção de escrever mais rápido não parece ter durado muito.

Em todo caso, este editorial é dedicado a ele.


:: OS PROVENTOS DE HENRY JAMES ::

Percy LubbockPortrait of Edith Wharton

Certa vez, [Edith] Wharton mencionou que o automóvel onde eles estavam havia sido adquirido com os proventos de seu romance mais recente. “Com os proventos do meu romance mais recente”, disse Henry James de forma reflexiva, “eu comprei um pequeno carrinho de mão, no qual a bagagem dos meus convidados é transportada da estação de trem até a minha casa. Ele está precisando de uma demão de tinta. Com os proventos do meu próximo romance eu devo mandar pintá-lo.”


:: DIÁRIOS ::
Franz Kafka, Diaries

13 V (1922) 
Nada

17 (Maio 1922)
Triste


:: A EQUAÇÃO DE BOLTZMANN ::
Scott DodelsonModern Cosmology

Nos anos 1960, uma revista de circulação nacional publicou um cartum que mostrava dezenas de executivos caminhando pelas ruas de Manhattan com um ar muito importante e sério. Sobre cada uma daquelas cabeças, balões de pensamento revelavam seu verdadeiro foco: todos estavam imaginando cenas de sexo selvagem. Pelo menos em alguns aspectos, a equação de Boltzmann desempenha um papel semelhante para físicos e astrônomos: ninguém nunca fala sobre isso, mas todos estão sempre pensando no assunto.


:: MEMÓRIA POR MEMÓRIA ::
Olga RavnMy Work

Devo resgatar como de um incêndio as partes que ainda são importantes para mim, as partes que escrevi enquanto ainda estava lá, como se o tempo fosse uma fogueira que devorasse, memória por memória, a pessoa que fui para que eu não me lembre mais, muito menos entenda, o que aconteceu.


:: SE A GENTE NÃO GRITA NA HORA ::

Tatiana Salem Levy, Melhor não contar

Há coisas que, se a gente não grita na hora, num ataque de raiva, virando o mundo pelo avesso, elas se encrustam na gente, se agarram aos nossos órgãos, com unhas afiadas, e vão ganhando solidez e imobilidade com o passar do tempo — fazendo com que se torne cada vez mais difícil a sua transformação em palavras.


:: HOMENS TOLOS EM CONVERSÍVEIS ::

Miranda July, All Fours

Ainda que as crises de meia-idade possam ser apenas mal vistas, é possível que cada uma delas tenha sido profunda e única, e foram só alguns poucos homens tolos em conversíveis vermelhos que lhes deram má fama. Imaginei cumprimentar um homem desses de forma solene: “Vejo que você chegou a um momento de grandes questionamentos. Deus esteja com você, buscador”.


:: EU CHUTARIA UNS 30% ::

Abigail Tucker, Mom Genes

Ainda mais impressionante é que os cérebros das novas mães pareciam muito diferentes dos seus antigos cérebros, conforme tomografias tiradas antes de engravidarem. Essas perdas de massa cinzenta podem totalizar até 7% em algumas mães, descobriu outro estudo. Mudanças dessa magnitude são praticamente inéditas em humanos adultos, com a possível exceção de sobreviventes de traumatismos cranianos.


:: NA MÉDIA ::

Matt Parker, Humble Pi

Após o censo de 2011, o Instituto Australiano de Estatísticas revelou quem era o australiano médio: uma mulher de 37 anos que, entre outras coisas, “mora com o marido e os dois filhos (um menino de 9 e uma menina de 6 anos) numa casa com três quartos e dois carros no subúrbio de uma das capitais da Austrália”. E então descobriram que essa mulher não existe. Eles vasculharam os registros e nenhuma pessoa atendeu a todos os critérios para ser considerada verdadeiramente mediana.


:: TIPO ISSO ::

Stephen PileThe Ultimate Book of Heroic Failures

[Sobre o filme Offending Angels, de 2000]

Menos de vinte pessoas no Reino Unido pagaram para assisti-lo. Tirando os impostos e a comissão dos cinemas, o filme teve uma renda total de bilheteria de 17 libras.


:: MAIS UM BOM EXEMPLO ::

Stephen PileThe Ultimate Book of Heroic Failures

Depois da partida contra o Irã, metade do time das Maldivas foi até o técnico, Romulo Cortez, e disse que queria desistir do futebol.


:: SORRIA PARA AS BATATAS ::

T. Lobsang RampaLuz de vela

Uma porção de gente acredita que plantas evoluem e se tornam animais e os animais evoluem para se tornar seres humanos, mas isso não é verdade. Você nunca ouviu falar de um cavalo que virou vaca, não é, nem de uma alface que virou pássaro. (…) Portanto a evolução é essa: uma couve pode não ter muita consciência nesta Terra, mas assim mesmo as couves podem reconhecer as pessoas e as emoções. (…) A moral disso parece ser: sorria para as suas batatas e elas crescerão melhor para você!


:: CONFESSIONÁRIO DO AUTO-COMPLETE ::

Leslie JamisonSplinters

Toda vez que um amigo pesquisava alguma coisa no meu computador, meu sovaco pinicava de suor. O que poderia surgir do confessionário do meu preenchimento automático? Talvez aquelas madrugadas passadas assistindo a vídeos do Coro do Tabernáculo Mórmon no YouTube. Todos esses homens brancos de terno cantando “Amazing Grace”, como se fosse um escritório cheio de corretores de hipotecas convocados para o arrebatamento. Às vezes eu imaginava meu terapeuta dizendo: “Talvez você devesse começar a beber de novo?”.


:: MAIS DEPRESSÃO PÓS-PARTO ::
Olga RavnMy Work

Enquanto estiver escrevendo este livro, acho que permanecerei num estado de depressão pós-parto. Não escrever o livro é permanecer nessa ansiedade. Não escrever o livro é dar poder ao medo das palavras. Não escrever é não se tornar mãe, permanecer para sempre no limiar da maternidade. Escrever é entrar de cabeça nisso. Vamos ver o que há ali dentro. Ali está o meu destino. Ser mãe de alguém de hoje até eu morrer.


:: DIÁRIOS ::

Franz Kafka, Diaries

22 (Setembro 1917)
Nada

17 I (1922)
Pouco diferente


:: ESPIRITUALMENTE FALANDO ::

Heidi JulavitsThe Folded Clock

Talvez ela achou que engataria uma conversa mais interessante com um estranho que conheceu na universidade, em vez de alguém que conheceu, digamos, no Carnegie Deli. Qual é o lugar do homem no universo? O que determina o destino do indivíduo? Onde, espiritualmente falando, fica o metrô mais próximo?


:: OVOS PODRES ::

Mihaly CsikszentmihalyiFlow

Um amigo que gosta de cruzar oceanos sozinho em um veleiro me contou certa vez uma anedota que ilustra até onde os navegantes solitários às vezes têm de ir para manter a mente focada. Aproximando-se dos Açores numa travessia do Atlântico em direção ao leste, a cerca de 1,2 mil km da costa portuguesa, e depois de muitos dias sem ver um navio, ele avistou uma outra pequena embarcação seguindo na direção oposta.

Era uma oportunidade bem-vinda de visitar outro navegador, e os dois barcos recalcularam as rotas para se encontrar em mar aberto, lado a lado. O homem do outro barco esfregava o convés, que estava parcialmente coberto por uma substância amarela pegajosa e fétida. “Como você sujou tanto o seu barco?”, perguntou o meu amigo para quebrar o gelo. “Veja bem”, o outro respondeu, encolhendo os ombros, “é só um monte de ovos podres”. Meu amigo admitiu que não lhe parecia claro como tantos ovos podres acabaram espalhados pelo convés de um barco no meio do oceano.

“Bem”, disse o homem, “a geladeira quebrou e os ovos estragaram. Faz vários dias que não há vento e eu estava ficando muito entediado. Então pensei que, em vez de jogar os ovos ao mar, poderia quebrá-los no convés para poder limpá-los depois. Deixei-os estragar por um tempo para que ficasse mais difícil limpá-los, mas não imaginei que cheirassem tão mal”.


:: DEDICATÓRIA EM UM LIVRO ::

“Este livro é uma das coisas mais idiotas que eu já li na vida” (assinatura indecifrável)

>>>>

Agradecimentos: Adriano Pereira Bastos, Giovane Salimena, Paulo Henrique Martins.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #095

Posted: 4th junho 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças

Tão alegre quanto assistir a uma autópsia

#095 – São Paulo, 4 de junho de 2024
Oito em pé, vinte sentados
A mulher mais perigosa do hemisfério
www.hortifruti.org

“As duas capas deste livro estão distantes demais uma da outra.”
(Ambroce Bierce)

“Tão alegre quanto assistir a uma autópsia”
(Variety)

:: EDITORIAL ::

Enfim estão chegando as resenhas de Três camadas de noite.* Há nelas um entusiasmo que há muito não se via em matéria de literatura: a escritora Dorothy Parker teria dito que “não é um romance para ser deixado de lado graciosamente. Deve ser arremessado para longe com enorme força”.

Dois ou três dias após a data oficial de lançamento, antes mesmo que a maioria dos leitores recebesse seus exemplares, um anônimo avaliou a obra com uma estrela na Amazon, expressando todo o seu ardor pela capa. Pouco depois, o livro saiu repentinamente da categoria “não ficção” e foi realocado para “ficção” — já não se descarta a reclassificação póstuma como “poesia” ou simplesmente “horror”. A estupefação é completa.

Em artigo para um jornal de grande circulação, Dylan Thomas até procurou ser gentil: afirmou que o romance “não é nada mais do que moderadamente bom. Colocaria esse livro ao lado dos poemas de Matthew Arnold só para ver que barulho delicioso ambos fariam se os atirasse num rio”.

Outro comentador garantiu que ler Três camadas de noite em voz alta era como ouvir “um bando de ratos sendo lentamente torturados até a morte, enquanto, de vez em quando, uma vaca moribunda mugia”. Por fim, e ainda na metáfora bovídea, disseram-nos que era “como ficar encarando uma vaca por quarenta e cinco minutos”.

Estamos profundamente satisfeitos com a recepção apaixonada da obra e rogamos para que continuem nos enviando suas impressões. Há um erro na página 69, por exemplo, e um fio de cabelo permanentemente enrolado entre a orelha e a quarta capa. Fora isso, trata-se de um livro (216 páginas) perfeitamente capaz de parar em pé.

Instagram: @vmbarbara
Link para comprar o livro: FósforoAmazonEstante VirtualTravessaMartins FontesLeonardo Da VinciDois Pontos

:: A MULHER MAIS PERIGOSA DA ALEMANHA ::
Matt ParkerHumble Pi

De 1993 a 2008, a polícia alemã procurou a misteriosa “fantasma de Heilbronn”, uma mulher que havia sido relacionada a quarenta crimes, incluindo seis assassinatos; seu DNA foi encontrado em todas as cenas dos crimes. Dezenas de milhares de horas policiais foram gastas à procura da “mulher mais perigosa da Alemanha” e houve uma recompensa de 300 mil euros pela sua cabeça. Acontece que era uma mulher que trabalhava na fábrica dos cotonetes utilizados ​para coletar​ as evidências de DNA.


:: A CABRA ::
Jonathan RottenbergThe Dephts

Não podemos ter certeza de que a cabra se sente bem quando come, embora pareça extraordinariamente provável que sim.


:: DEMISSÃO ::

Scott StosselMy Age of Anxiety

Certa vez, deparei-me com um relato na literatura clínica de uma mulher que fingiu estar doente e faltou a um banquete da firma onde receberia um prêmio pelo desempenho excepcional, pois a perspectiva de ser o centro das atenções a deixava muito nervosa. Depois de ela ter faltado ao jantar, um pequeno grupo de colegas planejou uma recepção mais íntima em sua homenagem. Ela pediu demissão para não ter de comparecer.


:: GOSTOU DO LIVRO? ::
Tom RachmanThe Rise and Fall of Great Powers

“Você gostou desse livro?”, ele perguntou.
“Achei um lixo total.”
“Que droga. Por que o recomendou?”
“É tão horrível que pensei: Tooly tem que ler isso.”
“Você é a única pessoa, Fogg, que recomenda um livro porque o odiou.”


:: O RECEIO ::
Cory DoctorowInformation Doesn’t Want to Be Free

Esse é o meu receio: que a tecnologia amplie o poder dos poderosos – não apenas dos governos, mas das gravadoras, dos estúdios de cinema e dos intermediários online que moldam cada vez mais a esfera criativa – para o prejuízo de todos os demais.


:: NADA NA VIDA ::
Daniel KahnemanRápido e devagar

Nada na vida é tão importante quanto você pensa que é quando você está pensando a respeito. 


:: O PERSERVERANTE DO 175-P ::


:: A FUNÇÃO METAFÍSICA DOS PIOLHOS ::
Sarah Ruhl100 Essays I Don’t Have Time to Write

Talvez seja essa a função metafísica dos piolhos. Para nos lembrar de nossa necessidade mútua.


:: OS SOLAVANCOS SORTIDOS ::

Sérgio PortoO homem ao lado

[…] nos bons tempos em que só valia viajar sentado. Depois veio a ordem para os oito em pé, e lá viemos nós — os do ônibus — a compartilhar com um número maior de almas irmãs os solavancos sortidos que a prefeitura proporciona aos moradores desta cidade, através de seus bem cuidados buracos. Mas, lá um dia, um sábio qualquer, das chamadas classes dirigentes, fez cair a portaria dos oito em pé. O oito caiu, ficou deitado, e como um oito deitado é o símbolo do infinito, nasceu a suposição de que, nos ônibus, há sempre lugar para mais um. 


:: RESENHA ANÔNIMA ::
Matthew ParrisScorn

Chuang Tzu nasceu no ano quatrocentos antes de Cristo. A publicação deste livro em inglês, dois mil anos após sua morte, é sem dúvida prematura.


:: PAI NOSSO, QUE ESTAIS NO MANDAQUI ::
Mary NorrisBetween You & Me

Um excelente exemplo de cláusula que todos conhecem e que pode ser restritiva ou não restritiva está no Pai Nosso: “Pai Nosso, que estais nos céus” (Mateus 6:9). Esse “que estais nos céus” é restritivo ou não restritivo? Onde está Deus? Acredito que não é restritiva, como indica a vírgula antes de “que”; isto é, a frase “que estais nos céus” não define o Pai, apenas diz onde ele mora. É como se você pudesse inserir “aliás”: “Pai Nosso, que, aliás, reside nos céus” – exceto que “Pai Nosso” é vocativo, o termo gramatical para tratamento direto. No discurso direto não há necessidade de dizer a Deus onde ele está. No contexto original, Jesus ensinou esta oração aos seus discípulos. Se não houver vírgulas, a implicação é que quem está orando tem outro pai (José?). Portanto, é concebível que Cristo pretendesse que a frase “que estais nos céus” fosse restritiva, para identificar o pai celestial em oposição ao pai terreno.

[…] Deixando a teologia de lado por um momento, eu poderia dizer, falando por mim e por meus irmãos, “Pai Nosso, que estais em Cleveland”.


:: PICOLÉ DE ABACAXI ::
Zadie Smith, “Joy”

Mesmo a grande ansiedade de escrever pode ser acalmada durante os oito minutos que leva para comer um picolé de abacaxi.


:: DESCOBRIR QUE AINDA É DIA ::
Janet Malcolm41 inícios falsos

(Sobre as irmãs Vanessa Bell e Virginia Woolf)

Vanessa escreve muito bem, não só quando está comendo alguém vivo, como Madge Vaughan, mas em todo o volume de suas cartas. “Você tem um dom para escrever cartas que está acima da minha capacidade. Alguma coisa inesperada, como dobrar uma esquina num jardim de rosas e descobrir que ainda é dia”, Virginia escreve a ela em agosto de 1908, e a descrição é correta. Sobre suas próprias cartas, disse Virginia: “Ou sou demasiado formal, ou demasiado febril”, e também está correta nisso. Virginia era a grande romancista, mas Vanessa era a escritora nata de cartas; ela tinha um dom para escrevê-las. […]


:: RENÚNCIA ::
Matthieu RicardThe Art of Happiness

Um provérbio tibetano diz: “Falar com alguém sobre renúncia é como bater no nariz de um porco com uma vara. Ele não gosta nem um pouco disso”.


:: EU PEDIRIA UM ESTÔMAGO DE DOCES ::

Caitlin MoranHow To Be a Woman

“De qualquer maneira, não quero ter filhos”, diz Caz. “Então não estou ganhando nada com isso. Quero que todo o meu sistema reprodutivo seja retirado e substituído por pulmões sobressalentes, para quando eu começar a fumar. Eu quero essa opção. Isso não tem sentido.”


:: SOU UM BULE DE CHÁ ::

Matt ParkerHumble Pi

Sempre hilários, os engenheiros de software designaram o código de erro 418 como “Sou um bule de chá”. Ele é retornado por qualquer bule com acesso à internet ao qual é enviada uma solicitação para fazer café. Foi introduzido como parte do lançamento de 1998 das especificações do Hyper Text Coffee Pot Control Protocol (HTCPCP). Originalmente pensados como uma piada do Dia da Mentira, os bules conectados foram posteriormente fabricados e operados de acordo com o HTCPCP. Uma tentativa de remover esse erro em 2017 foi derrubada pelo Movimento Save 418, que o preservou como “um lembrete de que os processos subjacentes aos computadores ainda são feitos por humanos”.


:: A VAQUINHA ELSIE ::
Alice MunroThe Progress of Love

Ele recortava fotos de revistas e as pendurava pelas paredes do quarto — não fotos de garotas bonitas seminuas, mas apenas de coisas que lhe agradavam: um avião, um bolo de chocolate, a vaquinha Elsie.


:: UM ANO POLITICAMENTE DIFÍCIL ::
Michael Schulman sobre Julio Torres, na New Yorker

Quando criança, contaram-lhe a verdade sobre o Papai Noel — foi um “ano politicamente difícil de navegar”, já que algumas crianças ainda acreditavam — e esperava que uma revelação semelhante sobre Deus se seguisse, mas isso nunca aconteceu.


:: O ROMÂNTICO DO 177-H ::

>>>>

*As ofensas de maior gabarito foram retiradas da coletânea Scorn, de Matthew Parris.
Agradecimentos: Paulo Henrique Martins, Google Translator.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo) 

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

5 livros sobre depressão e outros transtornos mentais

Posted: 17th maio 2024 by Vanessa Barbara in Artigos
Foto: Pablo Saborido

A convite da seção “Favoritos”, a escritora Vanessa Barbara indica cinco livros que tratam da depressão e outros transtornos mentais.

Nexo Jornal
3 de maio de 2024

por Vanessa Barbara

Dizem que há escritores que passam a vida reescrevendo o mesmo livro, ou seja, falando sobre os mesmos temas de formas ligeiramente distintas. Se isso é verdade, meus assuntos fundamentais seriam: tartarugas, leguminosas, feminismo, transporte público, astronomia e depressão. (Um dia ainda vou escrever uma obra definitiva juntando todos esses tópicos.)

Quem sofre de transtornos mentais conhece a dificuldade de se expressar direito, e por isso há algo de reconfortante em saber que outra pessoa entende o que se passa e está fazendo o melhor possível para explicá-lo. Por exemplo: o escritor Andrew Solomon diz que, “na depressão, o ar parece espesso e resistente, como que cheio de massa de pão”. Tudo o que foi rápido se torna lento. A depressão é a ausência de sentido vital de propósito e o embotamento de sensações, e talvez só seja possível descrevê-la com a ajuda da literatura.

Enquanto eu escrevia o romance “Três camadas de noite” – sobre depressão, maternidade e trabalho literário – revisitei algumas das minhas obras preferidas nas áreas de depressão e outros transtornos mentais, que me dão essa sensação valiosa de ser estranhamente compreendida. 

A redoma de vidro
Sylvia Plath (Trad. Chico Mattoso, Biblioteca Azul, 2019)

Nesse clássico da ficção contemporânea, a escritora norte-americana reconta seu primeiro episódio depressivo, ocorrido em 1953, aos 20 anos de idade, após uma desalentadora temporada de estágio em Nova York. Inicio esta lista com um romance, e não com um livro de não ficção, porque Plath consegue descrever muito bem como é a sensação de estar deprimida, guiando o leitor em sua vertiginosa descida ao abismo. Gosto sobretudo do trecho em que a narradora, Esther Greenwood, relata a inutilidade de lavar os cabelos: “Parecia idiota lavá-los um dia quando eu teria de lavá-los de novo no outro dia. Eu ficava cansada só de pensar. Queria fazer tudo de uma vez e acabar logo com isso” [tradução minha, de uma edição de 2008 da Faber & Faber].

O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão
Andrew Solomon (Trad. Myriam Campello, Companhia das Letras, 2018)

Uma espécie de enciclopédia da depressão, leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema. No livro, o escritor expõe seu vínculo pessoal com a doença e faz uma investigação de sua incidência, manifestação, sintomas e tratamentos. “Viver com depressão é como tentar manter o equilíbrio enquanto dança com um bode”, define.

Solomon explica que a depressão começa pela insipidez, enevoa os dias num tom sépia e então enfraquece ações ordinárias até que suas formas claras sejam obscurecidas pelo esforço que exigem, nos deixando cansados, entediados e obcecados por nós mesmos. Há uma passagem sobre a dificuldade que o autor tem para se levantar da cama e ir tomar banho, antecipando cada passo e por fim desistindo da tarefa: “No mundo inteiro as pessoas tomam banho. Por que eu não podia ser uma delas?”.

Meus tempos de ansiedade 
Scott Stossel (Trad. Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra, Companhia das Letras, 2014)

Editor da revista The Atlantic, o jornalista norte-americano Scott Stossel costura ciência, história e autobiografia em um extenso perfil da ansiedade. Foi com Stossel que aprendi que Charles Darwin era tão ansioso que tinha ataques prolongados de vômito, que os babuínos de baixo status na hierarquia social estão sempre estressados e que a romancista austríaca Elfriede Jelinek, ganhadora do Nobel de Literatura de 2004, faltou à cerimônia de entrega por causa de sua fobia social aguda.

Até hoje me lembro, em detalhes, de um episódio extremamente constrangedor em que Stossel entope o banheiro de uma mansão em Cape Cod, enrola uma toalha na cintura, tenta sair sem ser visto e encontra John F. Kennedy Jr. no corredor. Tento manter isso em mente sempre que preciso participar de algum evento social. 

Bem que eu queria ir
Allen Shawn (Trad. Caetano Galindo, Companhia das Letras, 2009)

Bela obra de referência para os fóbicos. O compositor e escritor norte-americano confessa ter medo de altura, água, campos abertos, estacionamentos, túneis, elevadores, metrôs, pontes e estradas desconhecidas. Sua agorafobia serve de base para uma investigação mais ampla sobre as fobias e a psicologia do medo. Um dos méritos deste livro é que acaba expondo a relação direta entre nossas fraquezas e aquilo que somos. Referindo-se ao pai (o lendário editor William Shawn, da revista The New Yorker), o autor diz: “O paradoxo é que, sem suas fobias, ele não teria chegado aonde chegou. Podia muito bem ter chegado a outros lugares; que possivelmente poderiam lhe ser mais compensadores, mas não lá, onde se revelou tão competente.”

Shawn explica que o conceito de fobia abrange todo um elenco de temores sociais, que podem ir da especificidade (ficar trancado em um armário de lavanderia) à generalização (todo confinamento de qualquer espécie). Há fobias que se assemelham simplesmente a um medo de estar neste planeta: o medo da luz (fotofobia), do ar (aerofobia), e, para cúmulo da ciclicidade, o medo de adquirir fobia (fobofobia).

O corpo guarda as marcas
Bessel Van Der Kolk (Trad. Donaldson M. Garschagen, Sextante, 2020)

A grande novidade no campo da não ficção psiquiátrica é este livro sobre estresse pós-traumático. Com base em sua experiência clínica de mais de 30 anos, o psiquiatra holandês descreve como as experiências traumáticas podem reformular nossa fisiologia, recalibrando o sistema de alarme do cérebro, aumentando a atividade dos hormônios do estresse e acarretando todo tipo de distúrbios mentais. Suas sugestões de tratamento não parecem tão revolucionárias – ele sugere a prática de ioga, artes marciais e qigong, com o objetivo de ensinar visceralmente o corpo de que ele está de volta ao controle. Em todo caso, a lógica de seu raciocínio é interessante o suficiente para causar um grande e merecido impacto na literatura sobre depressão.

Encerro a lista com algumas menções honrosas: “Darkness Visible”, de William Styron; “Por que as zebras não têm úlceras”, de Robert M. Sapolsky; “A Cure for Darkness”, de Alex Riley; “Touched with Fire”, de Kay Redfield Jamison; “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf; The “Upward Spiral”, de Alex Korb; e “The Master and His Emissary”, de Iain McGilchrist. (Este último é mais sobre o cérebro, mas eu super recomendo para os fortes de espírito.)


Vanessa Barbara é jornalista e escritora, autora de Três camadas de noite (Fósforo, 2024). Publicou outros nove livros, como Noites de alface (Alfaguara, 2013), ganhador do Prix du Premier Roman Étranger, na França, e O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008), vencedor do Prêmio Jabuti de Reportagem. Colabora com a New York Review of Books e The New York Times. Escreve o almanaque A Hortaliça no Substack.

A Hortaliça – #094

Posted: 6th maio 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Provável localização da mítica Praça Tito, no Mandaqui

O Olodum pirou de vez

#094 – São Paulo, 6 mai 2024
Edição especial Praça Tito
Fortificada com 7 vitaminas e ferro
www.hortifruti.org
Alerta de gatilho: lavagem de cabelos


Um livro é um suicídio adiado”
(Emil Cioran)

“Em lituano, há um verbo ‘morrer’ exclusivo para humanos e abelhas.
(Sam Knight)


:: A PRAÇA TITO ::
Uma atualização

Localizada em um ponto ermo da rua Cel. Joaquim Ferreira de Souza, à altura do número 221, na localidade do Mandaqui, a Praça Tito era uma área de cerca de três metros quadrados, fartamente arborizada por ervas daninhas e sarças de diferentes matizes. Nesse local havia uma cadeira carcomida de cor bege e um cartaz de papelão – da caixa de leite La Serenissima, com sete vitaminas e ferro -, que alguém fixou com fita crepe. No referido cartaz liam-se os dizeres:

“Praça Tito. Favor não estragar a mobília”.

Era isso o que sabíamos do logradouro, que sempre exalou os ares místicos de um santuário. Ninguém nunca se sentou na cadeira bege. Alguns tiravam o boné ou faziam uma reverência discreta ao passar por ali.

Seis anos mais tarde, em dezembro de 2008, enquanto apurávamos para uma coluna em O Estado de São Paulo, descobrimos que o sítio havia sido erigido em homenagem a Trípoli Amelio Bernardini, avô da leitora Cristina Bernardini. À época, ela informou que estava de mudança para a casa vizinha à do Cebola. Não tivemos mais notícias. Resolvemos seguir nossas vidas insignificantes, ainda que para sempre afetados pela contemplação do sublime.

Infelizmente hoje quase não há resquícios daquele monumento.

O ponto exato da praça, conforme apontado por arqueólogos

A Praça Tito, porém, deixou para a posteridade um ímpeto arquitetônico que só os verdadeiros vanguardistas são capazes de inspirar. Vejam esta nova praça, erigida a cerca de cem metros do ponto original por mandaquienses de natureza menos nostálgica e levemente mais boêmia:

30 de março de 2024


E esta outra, onde botaram um chafariz azul:


E sim, agora temos uma réplica do Cristo Redentor em pleno coração do Mandaqui. Tudo isso em um espaço de menos de trezentos metros:


Do que se conclui que a Praça Tito estará para sempre viva em nossos corações, em nossos puxadinhos e mobílias.

Sigamos então, tu, eu e possivelmente o Eliot.


:: A QUESTÃO DO XAMPU ::

Elizabeth WurtzelProzac Nation

Você sabe que desabou completamente na loucura quando a questão do xampu atingiu níveis filosóficos.


:: FAZENDO XIXI NA RUA ::
Susan TaubesDivorcing

Como as idosas urinavam na rua em Galanta
Muitas vezes testemunhei a seguinte cena. (Em Galanta, não havia como encontrar um local para urinar, a não ser em casa.) Sempre acontecia com duas mulheres juntas; elas se encontravam e conversavam. Depois que saíam, havia uma poça no local. O chão estava seco antes. Mais tarde, quando estudei medicina, entendi que entre as mulheres idosas há a possibilidade de fazer isso sem se sujar muito. (As mulheres usavam vestidos compridos.)


:: UM PAÍS COM CROCODILOS ::
Joan Acocella sobre Graham Greene, para a New Yorker

Basicamente, sempre que uma organização precisava que alguém viajasse, com despesas pagas, para um país que tivesse crocodilos, ele se interessava.


:: ORFEU ::
José Paulo Paes, do livro “A meu esmo”, em Poesia completa

O jabuti perdeu a companheira por causa de um ovo atravessado que nem o veterinário conseguiu tirar.
Durante meses, ficou a percorrer aflito o jardim, de cá para lá, de lá para cá, procurando-a.
Nas épocas do cio, soltava, angustiado e cavo, o seu chamado de amor.
À falta de resultados concretos, acabou por finalmente desistir da busca.
Voltou a andar no passo habitual e ficar, como antes, longas horas imóvel aquentando sol.
Isso até o dia em que deixaram encostado ao muro do fundo do quintal um velho espelho.
Assim que topou com ele, estacou e se pôs a balançar a cabeça de um para outro lado no esforço de reconhecimento.
Quando julgou distinguir ali a companheira, soltou, mais angustiado e cavo do que nunca, seu chamado de amor.
Repetiu-o o dia inteiro diante do vidro impassível. Porém ela continuou para todo o sempre prisioneira do espelho.


:: EM PLENA CALÇADA ::
Um tour guiado pelos pontos de interesse do bairro

Em outro ponto do Mandaqui, registramos uma máquina de lavaso:



:: SOBRE ACORDAR EM OUTRA VIDA ::
Susan TaubesDivorcing

Durante todos aqueles anos em Budapeste, ela pensou em acordar e esquecer. Era um pensamento estranho, poderoso e assustador. No entanto, ela refletiu, só agora era assustador. Assim que ela acordasse em outra vida, não teria medo, pois não se lembraria de ter sido outra pessoa antes.


:: CONSELHO ::
Marcus Aurelius, apud Oliver BurkemanThe Antidote

O pepino está amargo? Deixe-o de lado.


:: O CONTRÁRIO DE MIM ::
Kathryn Schulz, na New Yorker

Essas lagostas espinhosas que migram em fileiras de conga são tão boas nisso que parecem impossíveis de se desorientar, algo que só sabemos porque os cientistas se esforçaram muito para tentar fazê-lo. Como Barrie descreve em Supernavigators, pode-se cobrir os olhos de uma lagosta, metê-la em um recipiente opaco cheio de água salgada de seu ambiente nativo, forrar o recipiente com ímãs suspensos em cordas – de modo que balancem em todas as direções -, colocar o recipiente em um caminhão, pilotar o caminhão em círculos até um barco, dirigir o barco em círculos até um local distante, jogar a lagosta de volta na água e – voilà – ela irá avançar de forma confiante em direção ao lar.


:: MEUS FAVORITOS ::
Extra! Extra!

Meus 5 livros favoritos sobre depressão e outros transtornos mentais

http://www.nexojornal.com.br/estante/favoritos/2024/05/03/5-livros-sobre-depressao-e-outros-transtornos-mentais


:: DA LISTA ::
Sylvia PlathA redoma de vidro

Eu tinha certeza de que os católicos não aceitariam nenhuma freira maluca. Certa vez, o marido da minha tia Libby contou uma anedota sobre uma freira enviada por um convento para fazer um check-up com a [médica da família] Teresa. Essa freira vivia ouvindo notas de harpa e uma voz que repetia: “Aleluia!”. Só que, ao ser questionada com mais rigor, ela não conseguia ter certeza se a voz dizia Aleluia ou Arizona. A freira tinha nascido no Arizona. Acho que ela acabou em algum hospício.


:: CHAMADA NO JORNAL ::



:: O JAGUAR, O JACARÉ E A TARTARUGA ::
Mito Mundurucu. Claude Lévi-StraussO cru e o cozido

Macacos convidam a tartaruga a comer frutas com eles no alto de uma árvore. Eles a ajudam a subir e vão embora, abandonando-a em cima da árvore. 

Passa um jaguar, que aconselha a tartaruga a descer, com a intenção de comê-la. A tartaruga se recusa a descer, o jaguar resolve ficar à espera. […] Finalmente, o jaguar se cansa e baixa a cabeça. Então a tartaruga se joga, e sua grossa carapaça quebra a cabeça do jaguar. “Weh, weh, weh”, exclama a tartaruga, rindo e batendo palmas. Ela come o jaguar, faz uma flauta com um de seus ossos e a toca para comemorar a vitória.

Um outro jaguar ouve a flauta, resolve vingar a companheira e ataca a tartaruga, que se refugia num buraco. Um jacaré começa uma discussão com a tartaruga acerca do brotamento dos feijões: em cipós ou em árvores. Irritado porque ela o contradiz, o jacaré tapa o buraco e volta todos os dias para provocar a tartaruga. […] 

O jacaré abre o buraco para comer a tartaruga, que considera morta. Mas ela ataca o jacaré por trás, empurra-o para dentro do buraco e tapa-o, rindo “weh, weh, weh” e batendo palmas. […] Logo o jacaré seca e enfraquece. Sua voz se torna inaudível e se extingue; o jacaré morreu. A tartaruga ri “weh, weh, weh”, e bate palmas.


:: ELA É INCOMUM ::
A Woman Under Influence (1974, John Cassavetes)

“A Mabel não é louca, ela é incomum.”
[Mabel’s not crazy; she’s unusual]


:: ESTA SEMANA ::

Seria um novo volume da coleção Grandes Sucessos da Abril Cultural?
https://www.fosforoeditora.com.br/…/tres-camadas-de-noite/



:: ASCENÇÃO DA SRA. LALANNE ::
Correio Mercantil, e Instructivo, Politico, Universal (RJ), de 5 de março de 1865, p. 4 

>>>>

Agradecimentos: Arthur Tertuliano, Renato Onofri, Google Translator.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

A Hortaliça – #093

Posted: 14th abril 2024 by Vanessa Barbara in Hortaliças
Quando enfim encontramos a cabeça da Benê

Era Vera quem lambia os selos para Nabokov
#093 – São Paulo, 10 abr. 2024
Nesta edição, 100% de cotas para mulheres
E se reclamar vai ter duas
Vlw Flws
https://hortifruti.substack.com


“Morremos de sono, eu, então que já nasci morrendo de sono”
(Clarice Lispector)

“Meus primeiros rascunhos sempre soavam como se tivessem sido escritos por um frango”
(Elizabeth Hardwick)

:: EDITORIAL ::

Esta é uma edição feita só com mulheres sobre mulheres, para comemorar a pré-venda de um certo romance. (É ficção ou não ficção? Flor ou legume? Henry ou Alice James?)

O livro será lançado oficialmente no dia 6 de maio, mas já entrou em pré-venda no site da editora Fósforo. Também publicamos um trecho inédito na edição de abril da revista piauí.

Pedimos desculpas pela autopromoção desavergonhada e pelo excesso de aspas inglesas nesta edição. O fato é que amamos as serifas e ninguém irá nos impedir de utilizá-las. [Evocar mentalmente a foto do Suplicy sendo levado pela polícia militar e da Greta Thunberg dentro do camburão.]

Homens descontentes com esta inequívoca manifestação de misandria devem enviar suas moções de protesto para o endereço: Praça Tito, S/N – Mandaqui – São Paulo – SP. Cep: 02419-070. É aconselhável encaminhar o documento via notificação extrajudicial ou, opcionalmente, contratar uma advogada que interponha uma medida preventiva para aceitação da queixa. A resposta chegará em dezessete dias úteis via tegrama fonado.

https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/tres-camadas-de-noite/


:: VERA LAMBIA OS SELOS ::

Jenny Offill, Departamento de especulação

As mulheres quase nunca se tornam “monstros da arte” porque monstros da arte só se preocupam com arte, nunca com coisas mundanas. Nabokov nem chegava a fechar o próprio guarda-chuva. Vera lambia os selos para ele.


:: DEFINIÇÃO ::

Rebecca SolnitOs homens explicam tudo para mim

O feminismo, como a escritora Marie Sheer observou em 1986, “é a ideia radical de que as mulheres são pessoas”, uma ideia que não é universalmente aceita mas que, ainda assim, está se espalhando.


:: TODAS AS MANHÃS ::

Sylvia PlathThe Letters of Sylvia Plath Vol 2

Devo apenas escrever decididamente todas as manhãs pelos próximos anos, em meio a ciclones, encanamento congelado, doenças pediátricas e solidão.


:: BRUXAS PRATICANTES::

Ruth FranklinShirley Jackson: A Rather Haunted Life

Mais tarde, Shirley faria afirmações ousadas, ainda que muitas vezes jocosas, sobre seus próprios poderes ocultos, desde os dizeres na orelha de seu primeiro romance — “talvez a única escritora contemporânea que é uma bruxa amadora praticante” — até o boato de que ela havia feito o editor Alfred A. Knopf quebrar a perna em um acidente de esqui.


:: BOLAS DE FLUNFA ::

A única participação masculina da edição

“Todas as mulheres são pequenas bolas de flunfa aos olhos do Criador”
(Donald Pomerlau, comissário da polícia de Baltimore, testemunhando num caso de discriminação de gênero)


:: TEXTÃO CARAMELOSO ::

Paola Klug, traduzido por Rui Sá

Minha avó me dizia que, quando uma mulher se sentisse triste, o melhor que podia fazer era trançar o seu cabelo, de modo que a dor ficasse presa nele e não pudesse atingir o resto do corpo. Havia que ter cuidado para que a tristeza não entrasse nos olhos, porque iria fazer com que chorassem. Também não era bom deixar entrar a tristeza nos lábios, porque iria forçá-los a dizer coisas que não eram verdadeiras; e que também não se metesse nas mãos porque se pode deixar tostar demais o café ou queimar a massa. […] Trança a tua tristeza, dizia. Trança sempre a tua tristeza.

Fotografia tirada na Nicarágua por Candelaria Rivera


:: QUE TRANÇA QUE NADA ::
Melhor seria ter cobras nos cabelos

Fique feliz que nós só queremos igualdade. E não retaliação.


:: LIMITE ::
Sylvia Plath, “Edge”, tradução de Marília Garcia

A mulher está completa.
Morto,

Seu corpo traz um sorriso de êxito,
O ideal de uma exigência grega

Transborda das dobras de sua toga.
Os pés

Descalços parecem dizer:
Viemos até aqui, chegou o fim.

As crianças mortas enroladas, serpentes brancas,
Uma em cada

Vasilha de leite, agora vazia.
Ela recolhe em seu

Corpo as crianças como se fossem pétalas
De uma rosa que se fecha quando o jardim

Enrijece e os cheiros sangram
Da garganta funda e doce de uma flor noturna.

A lua não tem motivos para ficar triste
Espiando do alto de seu capuz de osso.

Está acostumada a essas coisas.
Seu lado escuro se parte e se arrasta.


:: SOBRE LAVAR OS CABELOS ::

Sylvia PlathA redoma de vidro

Parecia idiota lavá-los um dia quando eu teria de lavá-los de novo no outro dia. Eu ficava cansada só de pensar. Queria fazer tudo de uma vez e acabar logo com isso.


:: A SOLUÇÃO E O PROBLEMA ::

Leslie JamisonSplinters

Nos dias em que me encontrava presa em intermináveis discussões internas — do tipo que você continua litigando, mesmo sabendo que não pode vencer — eu levava minha filha de volta para Winogrand. Suas fotografias faziam o mundo crescer em torno do meu ressentimento. Isso parecia mais possível do que “deixar pra lá” e certamente mais possível do que resolver a questão. Eu poderia simplesmente aparecer no corredor de estranhos e deixá-los circundar os meus problemas. Na reabilitação [dos Alcoólicos Anônimos], as pessoas gostam de dizer: “Às vezes a solução não tem nada a ver com o problema”, e as fotografias de Winogrand não tinham nada a ver com os meus problemas. Eles apenas me lembraram do mundo comum e infinito – como ele ainda estava lá fora esperando. Naquela galeria escura, ajoelhei-me ao lado do carrinho da minha filha, alimentando-a com Cheerios para mantê-la feliz, e parecia tão certo estar ajoelhada naquele quarto escuro, no meio de estranhos.


:: A SOLUÇÃO E O PROBLEMA – PT. 2 ::

Leslie JamisonSplinters

Sentir falta da minha filha não era um problema a ser resolvido. Era algo que podia ser respondido com uma beleza estonteante e ordinária, e depois deixado intacto – a dor vivendo por trás do brilho, tanto sua sombra quanto sua espinha dorsal.

:: DORMINDO COMO UM BEBÊ ::
Jenny Offill, Departamento de especulação

E essa expressão: “Dormindo como um bebê”? Outro dia, uma loira falou isso casualmente no metrô. Eu tive vontade de deitar ao lado dela e gritar por cinco horas em seu ouvido.


:: ESTADO PERPÉTUO DE ALARME ::

Begoña Gómez UrzaizAs abandonadoras

Quem cuida de crianças pequenas, e todos que já o fizeram sabem disso, vive num estado perpétuo de alarme. O que quer que passe por sua cabeça será invadido e saqueado a qualquer momento, e a certeza de que esse assédio está na iminência de acontecer faz com que pensar, abstrair-se, vire uma atividade furtiva.


:: UMA ÁRVORE ::
Clarice LispectorTodas as cartas

Paulinho me perguntou que é que eu faria se Deus tivesse me dado, em vez de boys, uma árvore… Achei que seria provavelmente mais fácil.


:: EXATAMENTE O ESFORÇO QUE MERECE ::

Ayelet WaldmanBad Mother

[…] Mas meu favorito é o sobrinho de Carlie William. Diante da tarefa de construir uma maquete em gesso de um dos cinquenta estados norte-americanos, o garoto escolheu Nebraska. Fez um retângulo plano. Como disse sua tia, “É preciso amar uma criança que investe na lição de casa precisamente o esforço que ela merece”.


:: RECOLHENDO COISAS ::

Shirley JacksonRaising Demons

Dia após dia, eu andava pela casa recolhendo coisas. Pegava livros, sapatos, brinquedos, meias, camisetas, luvas, botas, chapéus, lenços, peças de quebra-cabeças, moedas, lápis, coelhos de pelúcia e ossos que os cachorros tinham deixado embaixo das cadeiras da sala. Também pegava soldadinhos de chumbo, carrinhos de plástico, luvas de beisebol, suéteres e bolsinhas infantis com moedas dentro e pedacinhos de fiapos caídos do chão. Cada vez que eu pegava algo, colocava a coisa de volta em um outro lugar que me parecia melhor do que onde encontrei.


:: BOM CONSELHO ::

Silvia FedericiO ponto zero da revolução

Se o governo está disposto a pagar as mulheres só quando elas cuidam dos filhos dos outros, então as mulheres deviam “trocar de filhos”.


: UM COM O OUTRO ::

Leslie JamisonSplinters

Um aviso [na capela em Las Vegas] mostrava os nomes cursivos de Michael Jordan e Joan Collins com um coração no meio, casados aqui, como se eles tivessem se casado um com o outro. Tudo era possível naquela cidade.

:: SÓ NOS FALTA O BOTÃO ::
Jenny Offill, Departamento de especulação

Há uma história sobre um prisioneiro em Alcatraz que passava as noites na solitária deixando cair um botão no chão e tentando encontrá-lo no escuro. Dessa forma, todas as noites, ele passava as horas até o amanhecer. Eu não tenho um botão. Em todos os outros aspectos, minhas noites são iguais.


:: DIA SIM, DIA NÃO ::
Rebecca SolnitOs homens explicam tudo para mim

Alguns homens explicaram por que homens explicando coisas para as mulheres não era exatamente um fenômeno de gênero.


:: O QUE QUER QUE VOCÊ DESEJAR ::

Megan K. StackWomen’s Work

E ainda assim eu me perguntava: por que será que, o que quer que você desejar, é possível encontrar uma mulher pobre para vendê-lo?


:: A ESCRITORA POSSÍVEL ::

Alice Munro, “The Art of Fiction”, The Paris Review 137

[…] Todo esse processo pode levar até uma semana, o tempo de tentar examinar o conto, tentar recuperá-lo, depois desistir e pensar em outra coisa, e então voltar a ele, em geral de forma bastante inesperada, quando estou no mercado ou dirigindo. Eu penso: ah, sim, tenho que escrever do ponto de vista de fulano de tal, e tenho que cortar esse personagem, e é claro que essas pessoas não são casadas, ou algo assim. A grande mudança, que geralmente é a mudança radical. [E isso faz o conto funcionar?] Eu nem sei se faz a história ficar melhor. Mas faz com que seja possível que eu continue a escrever.


:: FALANDO NISSO ::
“Dona-de-casa encontra tempo para escrever contos”

Alice Munro com as filhas em artigo no Vancouver Sun, 1961

>>>>

Agradecimentos: Google Translator. Quando possível, oferecemos o link para as edições traduzidas para o português.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

::: www.hortifruti.org :::


#092 – São Paulo, 26 mar. 2024
Timor mortis conturbat me*
Não segure as portas do trem
www.hortifruti.org

“Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes”
(Carlos Drummond de Andrade)

“É como ser açoitado por uma alface quente”
(Paul Keating, primeiro-ministro australiano, referindo-se a um ataque do líder da oposição)


:: EDITORIAL ::

Após o borbulhante sucesso do retorno de A Hortaliça nesta rede mundial de computadores, um evento histórico que poucos analistas souberam interpretar com a devida racionalidade, nossos redatores deixaram que a fama lhes subisse às caixolas e saíram para tirar férias no litoral baiano.

São assim os trabalhadores em regime de CLT: pedem folga após algumas míseras semanas de trabalho, ingerem grandes quantidades de água salobra sem fazer caso de sua saúde, torram a risca do cocoruto com o sol do meio-dia e vão parar no posto médico do aeroporto com sintomas de gastroenterite aguda. Pouco nos surpreenderia se aparecessem novamente grávidos, pleiteando o transplante de um órgão qualquer, apenas para desfrutar das benesses de nosso plano de saúde platinum infinite exquisite premium, que garante a todos os segurados três dias extras de vida em regime de enfermaria sentado. (Cinco dias para quem conseguir ficar de pé.)

Mas não é esse o ponto. A despeito da insolação e de dezoito ou dezenove atestados de licença médica, todos ignorados, estamos de volta com mais uma compilação aleatória de citações esdrúxulas, enigmáticas, tolas ou fora do contexto para abrilhantar a semana das senhoras e senhores.

Aproveitamos para agradecer o apoio dos leitores que se inscreveram voluntariamente para receber esta publicação, tornaram-se assinantes pagos e/ou depositaram doações no pix (vmbarbara@yahoo.com) sem que precisássemos enviar cobradores fantasiados de legume para bater às suas portas. Gostaríamos de destacar aqui o generoso doador que nos depositou R$ 5,97 (o preço de um maço de agrião), com notável desprendimento e sem esperar gratidão. A benevolência de vocês será utilizada para financiar bobices da mais alta qualidade.

A vocês, nosso muitíssimo obrigada e os votos de que nunca tenham de se preocupar com a questão do infinitivo pessoal flexionado, como às vezes nos acontece.


:: PONTE DA LONGEVIDADE ::
Lonely Planet Hong Kong & Macau

Em frente ao santuário, à esquerda, de frente para o mar, há a Ponte da Longevidade; cruzá-la irá supostamente acrescentar três dias à sua vida.


:: UM RESUMO DESTE ALMANAQUE ::
Em nota deixada pela minha mãe


:: POR SOLIDARIEDADE ::
Franz KafkaDiaries

Esta noite, após ter estudado o dia inteiro desde as 6 da manhã, notei que a minha mão esquerda estava há algum tempo agarrando a direita pelos dedos, por solidariedade.


:: POR TÉDIO ::
Franz Kafka, Diaries

Esta noite, por tédio, lavei as mãos três vezes seguidas no banheiro.


:: POR TÉDIO (DE NOVO) ::
David Chipperfield, Turtle Care: How to Care for Pet Turtles Like an Expert

As tartarugas tendem a arrancar as plantas pela raiz, provavelmente por tédio.


:: AMARRAR INCONGRUÊNCIAS E ABSURDOS ::
Mark Twain, “How to Tell a Story

To string incongruities and absurdities together in a wandering and sometimes purposeless way, and seem innocently unaware that they are absurdities, is the basis of the American art, if my position is correct. Another feature is the slurring of the point.

[Amarrar incongruências e absurdos de uma forma errante e às vezes sem propósito, e parecer inocentemente inconsciente de que são absurdos, é a base da arte americana, se minha posição estiver correta. Outra característica é o embaçamento do ponto principal.]


:: A BERINJELA QUE PARECIA NIXON ::

Carl SaganO mundo assombrado pelos demônios

De vez em quando, um legume, uma disposição de sementes silvestres ou o couro de uma vaca parece uma face humana. Houve uma famosa berinjela que se parecia muitíssimo com Richard M. Nixon. O que devemos deduzir desse fato? Intervenção divina ou extraterrestre? Intromissão republicana na genética das berinjelas? Não. Reconhecemos que há muitas berinjelas no mundo e que, de posse de um grande número delas, mais cedo ou mais tarde encontraremos uma que se assemelha a uma face humana, até mesmo a um rosto em particular.

:: NADA COMO A TARDE ::
Paulo Henriques Britto, Macau

Nada como a tarde,    trapos encardidos
enxugando os restos    de uma luz já suja,
recolhendo as manchas    de sol desmaiado
com a complacência    de um apagador.

Nada como a manhã,    com seus dedos de feltro,
flanelas metafóricas    de pura indiferença,
a estender sobre o escuro    a realidade plena
de um dia ainda há pouco    de todo inconcebível.


:: GAFANHOTOS GIGANTES ::
Matéria de Ellen Barry no FSP NYT, 15 de agosto de 2011

Tbilisi, Geórgia – A notícia de que escorpiões tinham sido avistados em sua rua deixou Nana Beniashvili apavorada.

Os gafanhotos gigantes já tinham sido muito ruins. Depois, houve as cobras, que são conhecidas em georgiano como “aquilo que não pode ser mencionado”. Na verdade, ela mesma não tinha visto nenhum escorpião, mas acreditava que uma de suas vizinhas tinha, e, no calor atordoante do verão, ela não estava ocupada em ser detalhista sobre as evidências.

“Isso significa que o apocalipse está chegando”, disse Beniashvili, 72, que estava debruçada em sua janela. “Não posso lhe dizer exatamente quando, pois não sou muito informada sobre isso. Mas é claro que o apocalipse está chegando. O mundo enlouqueceu”.


:: ONDE SE TORNOU OLEIRO ::
Bill BrysonUma breve história da vida doméstica

Durante o censo de 1085, Guilherme, o Conquistador, descobriu que havia um cavaleiro chamado Wulfric que detinha mais de 100 propriedades espalhadas por toda a Inglaterra. Preocupado com o que julgava ser um potencial problema, Guilherme mandou alterar os arquivos, que passaram a registrar Wulfric como um cavalo. O sujeito perdeu a posse de todas suas propriedades e se mudou para a Escandinávia, onde se tornou oleiro.


:: EDITORES E ESCRITORES ::
Joyce Carol OatesA Widow’s Story

Certa vez, ouvi Ray dizer a um amigo que ser editor não era nada parecido com tentar ser escritor: “Ninguém nunca se matou por motivos de ‘editar’”.


:: HUMANOS E DÁLMATAS ::
A. J. JacobsThe Know-It-All: One Man’s Humble Quest to Become the Smartest Person in the World

Dálmatas e seres humanos têm uma urina estranhamente parecida (são os únicos dois mamíferos que produzem ácido úrico). Isso poderia ser útil se um dia eu fumasse maconha, me candidatasse a um emprego estatal e tivesse acesso a dálmatas. Ainda assim, as conexões inesperadas continuam a surpreender.


:: SOBRE A NATUREZA DE DEUS ::
Matthew ParrisScorn

“Uma afeição desmedida por besouros”
(J. B. S. Haldane, quando lhe perguntaram que deduções era possível tirar sobre a natureza de Deus a partir de um de seus estudos.)


:: MINHA FILHA ::
Provando que o punk rock não morreu

:: PARA SEU CONHECIMENTO ::
Scott StosselMy Age of Anxiety

Um pregador franciscano na Alemanha estimou as probabilidades a favor da condenação de qualquer alma em 100 mil para um.


:: O PREPARADOR, ESSE DESCONHECIDO ::
Mary NorrisBetween You & Me: Confessions of a Comma Queen
(Dedicado à Luiza Barbara)

Eleanor Gould foi uma lendária gramática e checadora da New Yorker. Ela era um gênio certificado — membro não apenas da Mensa, mas de algum supergrupo dentro da Mensa — e o sr. Shawn [William Shawn, editor da revista] tinha total confiança nela. Gould lia tudo nas provas — quer dizer, tudo menos ficção, seção da qual havia sido afastada anos antes, pelo que entendi, porque tratava todo mundo da mesma forma, fosse Marcel Proust ou Annie Proulx, Nabokov ou Malcolm Gladwell.

Clareza era a estrela-guia de Eleanor, sua bíblia o Modern English de Fowler, e, quando ela concluía uma prova, as linhas de lápis pareciam dreadlocks. Alguns dos artigos tinham noventa colunas e o sr. Shawn respondia a todos os questionamentos. Meu questionamento favorito de Eleanor Gould foi sobre presentes de Natal para crianças: a autora repetiu o velho ditado de que toda boneca de pano Raggedy Ann tinha “eu te amo” inscrito em seu pequeno coração de madeira, e Eleanor escreveu à margem que isso não era verdade, e ela sabia porque, quando pequena, havia feito uma cirurgia de coração aberto em sua boneca de pano e viu com os próprios olhos que nada estava escrito no coração.


:: MAIS DA RAINHA DAS VÍRGULAS ::
Mary Norris, Between You & Me

Certa vez, perguntei a Eleanor Gould qual era o plural possessivo de McDonald’s, e ela muito sensatamente me pediu para deixar para lá. “Você tem que parar em algum lugar”, ela disse. Nós paramos em McDonald’ses’.


:: ALTAMENTE REATIVOS ::

Robert SapolskyWhy Zebras Don’t Get Ulcers

[…] o que ele chama de “altamente reativos”. Assim como aqueles babuínos que consideram o cochilo de um rival uma ameaça alarmante, esses macacos enxergam desafios em todos os lugares. Mas, no caso deles, a resposta à ameaça percebida é uma timidez encolhedora. Coloque-os em um ambiente novo que outros macacos rhesus consideram um lugar estimulante e eles reagirão com medo, despejando glicocorticóides. Coloque-os com novos colegas e eles congelarão de ansiedade – tímidos e retraídos, e novamente liberando grandes quantidades de glicocorticóides. Separe-os de um ente querido e eles terão uma propensão atípica a entrar em depressão, com excesso de glicocorticóides, superativação do sistema nervoso simpático e imunossupressão. Esses parecem ser estilos de lidar com o mundo que duram a vida toda, começando na infância.


:: A INSOLAÇÃO ::
Richard Gordon, A assustadora história da medicina

Sir Victor Horsley afirmava com determinada convicção que a insolação era causada pelos elegantes goles de bebida, e não sair para o sol sem seu capacete de cortiça. Ele provou isso na Mesopotâmia, saindo com a cabeça descoberta, e logo depois morreu de insolação.


:: APANHADAS NO CHÃO ::

Paulo Mendes Campos, Hora do recreio

De Juscelino Kubitschek, achando muito seco o discurso que lhe escrevera um assessor: “Espalhe umas borboletas aí entre os parágrafos.”


:: POR DIABOS ::
Matthew ParrisScorn

Quando eu flexiono um infinitivo, por diabos, eu o flexiono para que continue flexionado.
(Raymond Chandler em carta para seu editor inglês)


:: DICA CULTURAL ::

Assistir Perfect Days (Wim Wenders, 2023) e emendar com uma visita aos banheiros da Japan House, em São Paulo, para experimentar uma privada tecnológica japonesa em toda a sua glória.

>>>>

*A ideia da morte me deixa morto de medo, em latim.
Agradecimentos: Marcos Barbará e Richard Nixon.

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

::: www.hortifruti.org :::


Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos graciosamente que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

Some days you just gotta Conga
#091 – São Paulo, 5 de março de 2024
Edição especial eczema
Tudo é bom
Você sabe o que é tartaruga?
www.hortifruti.org

“E assim, do pouco dormir e muito ler se lhes secaram os miolos, de modo que veio a perder o juízo.”
(Dom Quixote, Miguel de Cervantes)

“Dai-me, Senhor, coragem e alegria/ para escalar o cume deste dia.”
(Jorge Luis Borges)

:: EDITORIAL ::

Talvez os leitores não tenham entendido. A ideia desta Hortaliça tem eflúvios de Punk Rock Creative Commons Copyleft Partido Pirata e Lambada O Ritmo Proibido, tudo junto. Precisamos da colaboração financeira dos assinantes para garantir o suprimento de nossas viçosas verduras, do contrário não haverá mais colheita.

Não iremos fechar o conteúdo em paywall a menos que nos arrastem algemados à la Suplicy até o Deic do Carandiru, para onde iremos gritando: “Free Huey!”, enquanto espalhamos edições gratuitas pelos ares. Esta é a nossa tentativa de conquistar (em termos) os meios de produção, diminuir o peso dos intermediários e ganhar algum tipo de poder sobre nossas vidas; contudo, há leitores com empregos de verdade — tipo cirurgião bucomaxilofacial — que se recusam a respaldar a nossa trupe literária.

A vocês, que as pulgas de mil camelos infestem os seus sovacos (provérbio árabe). E aos demais, nossos efusivos agradecimentos. Lembrando que quem não puder colaborar em espécie pode mandar umas abobrinhas de sua colheita pessoal para tornar a nossa paisagem mais frondosa. O endereço: vmbarbara@yahoo.com.

Em nota não relacionada, o leitor Rodrigo Casarin informa que conhece um porco residente na rua Epaminondas Melo do Amaral, no Imirim, mas não sabe precisar se é o mesmo suíno que foi visto vagando na ladeira da rua Pestana, no Mandaqui, a quase 3 km do local. Continuaremos investigando. Trata-se de mais um de nossos imperativos éticos: apurar e checar os fatos, sem distinguir entre caprinos, ovinos, asininos e muares. (Afinal, passamos os últimos anos cobrindo política brasileira.)

Aproveitamos para esclarecer que, ao contrário do que foi divulgado pela imprensa, A Hortaliça não tem nenhum vínculo com laboratórios de pesquisa ou a indústria farmacêutica. Relatos de que se trataria de uma manobra de marketing para vender psicotrópicos são descabidos.


:: LISTA DE INSULTOS CULTOS ::
Contos Completos, de Liev Tolstói

Que Deus achate esse seu focinho!


:: EU JÁ PEDI DESCULPAS A UMA LIXEIRA ::

O olhar da mente, Oliver Sacks

O dr. P., em contraste, oferecera um aperto de mão a um relógio de pêndulo.


:: TODOS OS FIOS DA POLÍTICA EUROPEIA ::

No caminho de Swann, Marcel Proust

[..] a quem divertia com a narrativa de suas aventuras picantes, por exemplo, que encontrando no trem uma mulher e tendo-a levado para a sua casa, viera a descobrir que se tratava da irmã de um soberano que no momento tinha nas mãos todos os fios da política europeia, da qual assim se inteirava de um modo sumamente agradável; ou que, por um complexo jogo de circunstâncias, ia depender da eleição do Papa que ele se tornasse ou não amante de uma cozinheira.


:: APERFEIÇOAMENTO DA REDONDILHA ::
Tribuna da Trova – Órgão oficial da Academia Guanabarina de Trova nº 6, set. 1965

A Academia Brasileira de Trova, combatida por alguns, será considerada no futuro um dos marcos mais importantes do movimento trovadoresco brasileiro, sobretudo no que se refere ao aperfeiçoamento da redondilha.


:: EI! EI! O VISGO ::
Zelda Fitzgerald, fevereiro/março 1932
Clínica Phipps, Baltimore

Às quatro da madrugada – Bem, tem uma moça que berra “Homicídio qualificado!” quando não está gritando “Oi! Ei! Ei! O visgo”. Imagino que não haja nada para se fazer a respeito — e prefiro isso aos odiosos pronunciamentos tranquilizadores de Mlle. B. e às visitações noturnas do eczema.

Estou lendo o Modern French Painters, de Ian Gordon. Ele fala da sensação de plantar coisas na obra de Van Gogh.


:: PANFLETO DE INSTRUÇÕES ::

Em caso de Homem Branco, gire calmamente a manivela em sentido anti-horário, destrave a porta da Saída de Emergência, golpeie o elemento com o cabo de uma pá e empurre-o para fora da aeronave. Respire normalmente.


:: PARECE-ME QUE SERIA RIDÍCULO ::

Charles Fort

Mais adiante exporemos coisas que apareceram no céu, onde permaneceram — alhures — durante semanas ou meses… Mas não certamente pelo poder de sustentação da atmosfera terrestre. Por exemplo, a tartaruga de Vicksburg. Parece-me que seria ridículo pensar numa tartaruga de respeitáveis dimensões que permaneça por 3 ou 4 meses suspensa apenas pelo ar, sobre a cidade de Vicksburg.


:: A MULHER SEM CABEÇA ::
O flâneur: Um passeio pelos paradoxos de Paris, Edmund White

A amante [de Baudelaire], uma atriz chamada Jeanne Duval, morava na rue de la Femme-sans-Tête [rua da mulher sem cabeça], hoje rue La Regrattier. A rua tinha esse nome por causa de uma placa diante de uma estalagem exibindo a figura de uma mulher sem cabeça e o slogan “Tudo é bom”, significando que tudo estava bem quando se lidava com uma mulher sem cabeça.


:: FOFOCAS ESPARSAS ::

Cobrador do 208-M comentando com motorista sobre outro cobrador da linha: “Agora o Almir traz copo descartável para dar café pros passageiros”.


:: IMPRECAÇÃO ::

Ninguém quis ver, Bruna Mitrano

que a chuva poupe as telhas pobres
e mais nada


:: OMAR NA MPB ::

Colaboração de Nayra Dmitruk, em 2012

[…] Aprecio seu esforço para divulgação das cantigas de avô, avó e alergia. Entretanto, uma dúvida vem tirando meu sono: podemos considerar o Omar como um personagem folclórico-popular musical brasileiro?

A substituição do Omar por “o mar” durante a ditadura colabora com o seu quase anonimato. Mas podemos mencionar também a inconstância de sua natureza, que dificulta o trabalho dos pesquisadores que tentam traçar um perfil do Omar.

Ocasionalmente, por exemplo, é um gigante devorador de homens:

“Não deixe Omar te engolir
Não deixe Omar te engolir
Não deixe Omar te engolir
Não deixe Omar te engolir ohhh yeah ohhh”
(BROWN JR., Charlie)

Que possui cabelos coloridos:

“É doce morrer no Omar
Nas ondas verdes do Omar”
(CAYMMI, Dorival)

Mas também pode ser apresentado como um escravo:

“Te dei o sol, te dei Omar
Pra ganhar teu coração”
(SANTANA, Luan)

Ou como um grandessíssimo mulherengo:

“Madalena foi pr’Omar
E eu fiquei a ver navios
Quem com ela se encontrar
Diga lá, no alto Omar
Que é preciso voltar já
Pra cuidar dos nossos filhos”
(BUARQUE, Chico)

“Omar serenou quando ela pisou na areia
Quem samba na beira do Omar é sereia”
(NUNES, Clara)

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça
É ela a menina que vem e que passa
Num doce balanço a caminho do Omar”
(JOBIM, Tom)

Omar também pode integrar relações sadomasoquistas:

“Omar
Quando quebra na praia
É bonito, é bonito”
(CAYMMI, Dorival, Omar”

Ou possuir fetiches atípicos:

“Omar passa saborosamente a língua na areia
Que bem debochada, cínica que é
Permite deleitada esses abusos d’Omar”
(MATOGROSSO, Ney)

[…]

:: BELÍSSIMO NARIZ DE CERA ::
Kevin Delaney, em matéria de 31 de outubro de 2011
Encarte The New York Times/Folha de S.Paulo

Os cães sabem apreciar os prazeres simples da vida, quer estes sejam fuçar no lixo, rolar em algas marinhas em decomposição ou farejar os traseiros uns dos outros.


:: COMO VOCÊ SE SENTE? ::
Colaboração de Ricardo Alpendre, uns cinco anos atrás

Descobriram um sítio arqueológico lá na Paraíba, com pegada de dinossauro e tudo. Aí perguntaram a um agricultor: “Como você se sente sabendo que o lugar onde mora foi povoado por dinossauros?”

“Ah, não sei. Não é do meu tempo.”


:: ENQUANTO ISSO, NO MANDAQUI… ::

:: MAIS ZELDA ::
Querido Scott, Querida Zelda
Outubro de 34, Hospital Sheppard e Enoch Pratt, Towson, Maryland

Meu querido Do-Do —

Obrigada pela carta. Como você está aos poucos se dissolvendo numa figura mítica devido ao longo período de anos que se passaram desde duas semanas atrás, vou lhe contar a respeito de mim:

1) Estou me sentindo só.
2) Não tenho parentes nem amigos e gostaria de conhecer um guerreiro malaio
3) Eu não cozinho, não costuro e não causo aborrecimentos pela casa.

O Hospital Sheppard Pratt está situado em algum lugar do sertão da consciência humana e pode ser localizado a qualquer hora entre a aurora da consciência e o início da velhice.

Querido: A vida é difícil. São tantos os problemas. 1) O problema de como permanecer aqui e 2) O problema de como sair daqui. E eu quero tanto ir à Guatemala e andar de bicicleta até o fim de uma longa estrada branca. Uma estrada margeada por cedros-do-líbano e choupos, com esplendores antiquíssimos se desfazendo na encosta dos morros esturricados de sol e nativos dormindo à sombra, junto a um enorme muro cinzento.


:: O ESTILO ::

A queda, Albert Camus

O estilo, assim como a mais fina seda, muitas vezes serve para esconder o eczema.


:: DEPOIMENTO DE UM TRANSEUNTE ::

Durante a crise de água em São Paulo

Nós estamos fazendo de tudo. Eu nunca fui de tomar banho.


:: PUBLIPOST ::

Dica de compras para viajantes no tempo

Extinction Preparedness Time Badge
https://timetravelmart.com/


:: DOENÇAS DE UMBIGO ::
A assustadora história da medicina, Richard Gordon

Anton Chekov (1860-1904) foi considerado pela mídia “o único capaz de usar o material da medicina e elevá-lo aos níveis de grande arte. Fora isso, a medicina geralmente cria escritores medíocres”. Osborne Henry Mavor (1888-1951) escreveu sobre o pseudônimo de James Bridie peças prolixas como O anatomista e um artigo definitivamente científico sobre o centro anatômico, O Umbigo, que, segundo ele descobriu, pode ser atacado por oito doenças.


:: PINÇANDO NARIZES ::
O homem que fazia chover — e outras histórias inventadas pela mente, Edson Amâncio

Doutor, assisti com muito interesse à sua palestra e gostaria de saber se uma coisa que faço rotineiramente pode ser sinal de TOC. Já faz mais de 20 anos, quando encontro alguma pessoa conhecida que não vejo há certo tempo, esteja ela onde estiver — na rua, na casa de parentes, na casa de amigos —, tenho o hábito de pinçar-lhe o nariz com os dedos. Faço isso de maneira natural e espontânea, mas antes reluto muito. Tento desviar meu pensamento e às vezes até procuro evitar a pessoa, pois sei que aquele hábito não é correto. Mas ele é mais forte que eu. É como se fosse um cmprimento, um alerta ou até uma reprimenda. É como se eu quisesse dizer: “Puxa! Há quanto tempo não nos vemos!” Sinto que preciso tocar o nariz da pessoa. Às vezes, sou mal compreendida, mas, para mim, é muito difícil deixar de fazer isso. Sempre que evito — e todas as vezes tento evitar, mas não consigo —, sinto uma grande angústia. É um verdadeiro desespero que procuro dissimular. Nem sempre consigo.


:: CLASSIFICADOS ::
Colaboração de Bruno Brasil

Diário de Notícias, 1 de janeiro de 1890
CARTOMANTE e somnambula, única. Mme. Josephina, a primeira e mais antiga; na Rua de S. José n. 67. 

Diário de Notícias, 3 de janeiro de 1890:
DOUTOR CORSÁRIO – ispecialista nas doenças do bolso em camas i colxães i PINICOS. Assembléia 75 – 70 i sinco heim?!! Rua Sorocaba n. 1 (Botafogo).

:: NOME PRÓPRIO ::
Ninguém quis ver, Bruna Mitrano

o vassoureiro
o moço da pipoca
o feirante
o catador de latinhas
a voz do carro do pão
o rapaz morto ontem
o garçom
o motorista da van
o camelô
não têm nome próprio

os animais de rua também
não têm nome próprio
nem ocupam cargos públicos
a mulher nunca tem nome próprio
é a mulher do Fulano

a minha avó não teve nome próprio
os filhos a chamavam de mãe
eu a chamava de vó
e ela sempre atendia

a minha avó me ensinou
a atender prontamente
e a morrer sozinha

ela também me ensinou
a degolar franguinhos
e que as mulheres são sempre
propriedade de alguém

menos as que matam o marido
e fogem com a cabeça
numa sacola de mercado

essas ganham nome
nos jornais
e ameaçam o anonimato
das mulheres que em breve
vão aprender
a degolar franguinhos.


:: RECEITA PARA QUALQUER COISA ::
Levels of Live, Julian Barnes

Naqueles primeiros meses, quis assistir esportes com os quais não tinha o menor envolvimento emocional. Eu gostava – embora o verbo seja forte demais para descrever esse tipo de apreciação letárgica – de assistir partidas de futebol entre, digamos, Middlesbrough e Slovan Bratislava (de preferência a partida de volta de uma série cujo início eu havia perdido), na disputa de algum campeonato europeu de segundo escalão que empolgava principalmente aos nativos de Middlesbrough e Bratislava.


:: DAR COMBATE AO MAL E VENCEL-O (?) ::
Revista da Semana, Jornal do Brasil, novembro de 1900

:: AUTOAJUDA ::
Da série Homicide: Life on the Street (1993, Paul Attanasio)

No bar, dois policiais conversam sobre um traficante que não conseguiram prender.

— Mas e agora?
— Agora o quê?
— Luther Mahoney.
— Bem, nós vamos continuar trabalhando nisso.
— É essa a resposta?
— Isso, é a resposta pra tudo. Trabalho policial, casamento, felicidade, amizade, vida.

(E aí entra o Tom Waits e canta: 

“There’s a ribbon in the willow and a tire swing rope
and a briar patch of berries takin’ over the slope
the cat’ll sleep in the mailbox and we’ll never go to town
til we bury every dream in the cold cold ground…”)

>>>>

Agradecimentos: Adriano Marcato, Bruno Brasil, Nayra Dmitruk, Ricardo Alpendre.


“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

::: www.hortifruti.org :::

Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através desta plataforma. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos graciosamente que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.


É cinquenta o tijolão da bananada
#090 – São Paulo, 23 de fev. de 2024
Uma alcachofra de terno coração
Curam habe de facto tuo*
www.hortifruti.org

“Tenho a convicção de que seres humanos e peixes podem coexistir pacificamente”
(George W. Bush)


“Ó, meu Deus! Vou ficar completa e descaradamente louco!”
(pequeno King-Post, em Moby Dick)


:: EDITORIAL ::

Esta edição começou a ser escrita há mais de dez anos, em 7 de agosto de 2013. Acontece que, àqueles tempos, fomos acometidos de uma fadiga muito grande, a mãe de todas as preguiças, que nos levou a procrastinar alegremente por mais de uma década, enquanto balançávamos os pés em um banquinho realmente alto.

É algo que às vezes acontece. E sabem? O conselho editorial não deu bola. Os acionistas estavam jogando pingue-pongue. Os assinantes, esses sim, ficaram injuriados e prometeram empastelar nossas rotatórias – houve uma ameaça de greve de fome e uma anunciada intervenção com sangue de porco durante a entrega dos prêmios Jabuti –, mas consta que, no final, os nossos 703 leitores foram igualmente acometidos de uma leseira tropical e decidiram ir cortar as unhas dos pés.

Depois foram tomar banho, dormir, se casaram, tiveram filhos, concluíram o doutorado, foram morar no estrangeiro, compraram uma AirFryer, aprenderam a fazer cirurgia vascular ou andar com pernas de pau, alguns ainda não me devolveram os livros que emprestei, outros mudaram de ideia sobre a necessidade de emagrecer e alisar os cabelos (eu amo vocês), houve outros que ficaram ricos ou carecas, viraram influencers ou psicanalistas, porém, enquanto tudo isso acontecia, A Hortaliça jamais saiu de seus pensamentos.

Adicionando insulto à injúria, nossos servidores sofreram um ataque de piratas cibernéticos que resultou na perda de todo o nosso repositório de idiotices – ainda que, sejamos sinceros, aquilo tudo não valesse mais do que uma Sete Belo.

Os hackers nos pediram uma quantia exorbitante para devolver o material; o Instituto Serrapilheira ameaçou entrar na negociação; alguém chegou a citar os papiros perdidos do segundo livro da Poética de Aristóteles; mas, no fim, nada foi acordado. Meses se passaram. O preço final para o resgate do lote – uma unidade de Sete Belo, semimascada – foi rejeitado.

Sejamos sinceros mais uma vez: talvez caiba dizer que não aconteceu exatamente dessa forma. Fato é que houve um drama com backups perdidos que se estendeu por anos, transmutou-se em negação, revolta, barganha e aceitação, até que, numa tarde de domingo, nos deparamos com o conteúdo extraviado de A Hortaliça em um HD externo no fundo de uma gaveta em nossa sede de campo, no bairro do Mandaqui, onde não havíamos procurado antes porque deu preguiça.

De modo que: hoje, em 23 de fevereiro de 2024, os arquivos de A Hortaliça foram restituídos à Unesco como patrimônio da humanidade, graças aos esforços de nossos repórteres investigativos – que são ótimos, ainda que introvertidos. Disso se depreende que nossa numerosa newsroom tem agora condições adequadas para parar de se dedicar às palavras cruzadas e voltar ao trabalho. Sua primeira missão foi restaurar e complementar a mítica edição 90, que trazemos aos queridos leitores e leitoras a partir de agora.

[Publicidade]

Jornal O Paiz, 24 de junho de 1893, n. 4065


:: TODOS RIRAM, MENOS A BALEIA ::
Moby Dick, Herman Melville

Disso decorria, por inferência, a crença de alguns baleeiros em que a passagem noroeste, há tanto tempo um problema para o homem, nunca tivesse sido um problema para a baleia.


:: VINTE CENTAVOS POR CUSPARADA ::
Técnicas corporais, Marcel Mauss

Uma menina não sabia cuspir e cada catarro que tinha era agravado por isso. Fui informado do fato. Na aldeia de seu pai e na família de seu pai em particular, em Berry, não sabem cuspir. Ensinei-lhe a cuspir. Dava-lhe vinte centavos por cusparada. Como ela tinha vontade de ter uma bicicleta, aprendeu a cuspir. Foi a primeira da família a saber fazê-lo.


:: FLAGRANTES DA VIDA REAL ::
Novembro de 2018

Minha mãe estava voltando de táxi para o Mandaqui. Numa subida, o trânsito parou e ela viu um caminhão manobrando. Aí o taxista falou: “O que está fazendo esse porco na rua?”

Ela ficou calada porque achou ofensivo. Mas aí reparou que tinha mesmo um porco correndo na rua.


:: UMA LONGA LISTA DE AUTORIDADES ::
O Brasil dos correspondentes, de Jan Rocha, Thomaz Milz e Verónica Goyzueta

Tudo correu bem até a última etapa da sua visita [do papa João Paulo II, em 1980], no Rio. A secretaria de imprensa da CNBB distribuiu o release com a programação. Infelizmente, quem o traduziu para o inglês confundiu a palavra Mrs. (senhora) com a palavra Mistress (amante). Resultado: o release informava que, no Rio, o papa seria recebido por uma longa lista de autoridades, cada um acompanhado de sua amante.


:: SEJA RUDE COM OS RODODENDROS ::
Do filme Expresso de Chicago (1976, Arthur Hiller)

George: Bem, em jardinagem uma regra para recordar é – seja rude com os rododendros.
Hilly: Ótimo. O que mais eu devo saber?
George: Há um segredo para tratar azaleias.
Hilly: Me diz. Sou toda ouvidos.
George: Trate-as do mesmo jeito que às begônias.
Hilly: Sem brincadeira?
George: É místico.
Hilly: Então você está dizendo: “O que é bom para as azaleias é bom para as begônias”.
George: Eu não poderia ter expressado melhor.
[…] Hilly: Bom, então, o que aconteceria se você tratasse uma azaleia como um rododendro?


:: GANGUE DE TEXUGOS ::
Stirling Observer, maio de 1986

William Golpo, morador do condado de Raploch, sobreviveu a um ataque de texugos nesse domingo. Segundo o dr. Kenneth Frew, especialista local, tudo leva a crer que eram seis texugos, talvez sete.


:: INFORME ::
Revista Sino Azul, jan. 1928

:: A FLUNFA ::
Da Redação

A flunfa. Verdade seja dita, não é apenas um acúmulo de detritos na cavidade umbilical, mas o amálgama de nosso ser. Fiapos laníferos de uma blusa especialmente querida, nacos de sabonete Phebo, materiais orgânicos de toda sorte, restos de comida e todos os subprodutos de nossos hábitos quotidianos se reúnem no umbigo para celebrar a essência do que somos. Juntos, reagem e oxidam a fim de formar um único elemento primordial, a flunfa, descrita por Demócrito como “a substância-Mãe”.

[trecho omitido do original] pois algumas questões de cunho metafísico devem ser confrontadas pelo cientista que queira melhor compreender o mecanismo de funcionamento desta inhaca corpórea. Trata-se do caráter sazonal e pouco previsível do fenômeno. Ora, durante o inverno, a acumulação flunfeana é intensa devido ao uso de roupas vastamente felpudas e pouco banho; já no verão, o suor e a água do mar dissolvem grande parte do conteúdo flúnfeo, embora no outono ele já comece a se acumular novamente, e assim por diante. [trecho ilegível, que não faz a menor falta para a compreensão do todo]

Recusando-se a estudar temas menores como os mecanismos neurológicos do pensamento e a cura do câncer, o cientista australiano Karl Kruszelnicki resolveu concentrar seus esforços nos fiapos de tecido que se acumulam no umbigo. Sua pesquisa contou com um universo de 4,8 mil pessoas. Aqui vão os resultados:

– 2/3 das pessoas têm fiapos no umbigo (flunfa têxtil)
– pessoas mais velhas acumulam mais flunfa
– há maior incidência em homens do que em mulheres
– pessoas de pele clara têm fiapos mais claros
– a abundância de fiapos está inexplicavelmente ligada à quantidade de pelos na pessoa. Muitos ou poucos pelos diminuem a quantidade de flunfa
– não existe relação com os atributos físicos do portador
– o azul é a cor predominante dos fiapos


:: MAIS SOBRE A FLUNFA ::

662 tipos desconhecidos de bactérias vivem no umbigo humano, segundo um estudo da Universidade da Carolina do Norte. Essas espécies, que nunca tinham sido encontradas e não possuem nem nome científico, dividem o umbigo com mais de 700 outros micro-organismos. (Superinteressante, setembro de 2011)

Em julho de 2011, na Universidade do Estado da Carolina do Norte, o estudo Belly Button Biodiversity encontrou cerca de 1400 grupos diferentes de bactérias vivendo no umbigo de 95 participantes, Desses, 662 eram desconhecidos até então. (Popular Science Brasil, n. 3, 2011)


:: ABAFADO ::
Da série Homicide: Life on the Street (1993, Paul Attanasio)

O ar não circula… Você fala comigo e as tuas palavras ficam coladas na minha cara.


:: OLHARES ÁVIDOS ::
“Berthe”, Guy de Maupassant

Comecei a visitá-los com frequência e rapidamente percebi que a jovem reconhecia o marido e lançava para ele uns olhares ávidos que até aquele momento dirigia somente para os pratos açucarados.


:: BIOGRAFIA ::
Assustadora história da medicina, Richard Gordon

Rudolf Virchow (1821-1902). Esse pequeno professor, fanfarrão e vigoroso, tornou-se um proeminente médico europeu, o que primeiro descreveu a leucemia e era especialista em embolia pulmonar, lúpus da face, gota, tatuagem e arqueologia de Tróia.


:: ODE À ALCACHOFRA ::
Pablo Neruda

La alcachofa
de tierno corazón
se vistió de guerrero,
erecta, construyó
una pequeña cúpula,
se mantuvo
impermeable
bajo
sus escamas,
a su lado
los vegetales locos
se encresparon,
se hicieron
zarcillos, espadañas,
bulbos conmovedores,
en el subsuelo
durmió la zanahoria
de bigotes rojos,
la viña
resecó los sarmientos
por donde sube el vino,
la col
se dedicó
a probarse faldas,
el orégano
a perfumar el mundo,
y la dulce
alcachofra
allí en el huerto,
vestida de guerrero,
bruñida
como una granada,
orgullosa,
y un día
una con otra
en grandes cestos
de mimbre,
caminó
por el mercado
a realizar su sueño:
la milicia.


:: A EXEMPLO DOS PEPINOS DE ESTUFA ::
Sonata a Kreutzer, Liev Tolstói

Pois bem, fui apanhado por esses tecidos de malha, por esses cachos de cabelo e babados. Aliás, era fácil apanhar-me, porquanto eu fora educado naquelas condições em que, a exemplo dos pepinos de estufa, apressa-se a maturação dos jovens apaixonados.


:: CONFISSÃO ::

Outro dia sonhei que meu parceiro tinha se filiado ao PMDB só para me irritar. “O que precisamos neste país é fortalecer o Centrão”, ele teria declarado. Acordei com taquicardia. Significa?


:: O EUCALIPTO ::
Hora do recreio, Paulo Mendes Campos

Não tenho nada contra o eucalipto, Deus me livre! Ouvi a frase logo ao entrar no escritório dum editor. Este, ao apresentar-me ao velhinho que nada tinha contra o eucalipto, pediu-me com bom humor uma declaração de princípio:

–E você? Tem alguma coisa contra o eucalipto?

Mineiro não se compromete assim assim. Sentei-me, tirei um cigarro, sorri, olhei o velhinho, muito simpático. O sorriso dele me dizia o seguinte: eu, se quisesse, podia ser à vontade contra o eucalipto, ele, em absoluto, ficaria zangado, apenas lamentava que eu não estivesse presente à conversa desde o início, mas de certo modo isso era até bom, pois a minha opinião seria mais livre.


:: CARTAZ EM BARRACA DE PRAIA ::
Já não me lembro onde

Emprestamos
Cadeira
Esteira
Guarda-sol
Dentro do nosso limite


:: ANÚNCIO ::
Propaganda da loja Farol das Tintas

Temos todas as cores do mundo


:: A EXEMPLO DOS PEPINOS-DO-MAR ::
A ilha dos daltônicos, Oliver Sacks

Darwin, que parece amar e admirar todas as formas de vida, menciona em A Viagem do Beagle “as nojentas e viscosas holotúrias […] que os gourmands chineses tanto apreciam”. De fato, os pepinos-do-mar não são estimados. Safford menciona tê-los visto “rastejar como enormes lesmas pardacentas”. Jack London, em The cruise of the Snark, descreve-os como “monstruosas lesmas-do-mar”.


:: HEREDITARIEDADE ::
Do filme La Règle du jeu (1939, Jean Renoir)

– Por sorte, você é um homem muito rico
– Sim, puxei ao meu pai.


:: ÉSQUILO É INFALÍVEL ::
Zelda Fitzgerald, março de 1932, Clínica Phipps
Querido Scott, querida Zelda

Despachei o Zola – Descobri que ele estava me ajudando a alimentar minhas desordens psicológicas um pouco demais para meu próprio bem. Ésquilo é infalível e lê-lo é afundar num rol dourado e opulento de prosa que nos forçaria a escrever mesmo que não soubéssemos nada além do alfabeto sírio.


:: MAIS UMA BIOGRAFIA ::
Assustadora história da medicina, Richard Gordon

John Coakley Lettsom (1744-1815) foi para Edimburgo aprender medicina. Cheio de entusiasmo, fundou a atual Sociedade de Medicina de Londres em 1773 e uma dezena de instituições de caridade, incluindo a Sociedade para a Libertação e Ajuda a Pessoas Presas por Pequenas Dívidas, e – com grande visão – a Sociedade Real Humanitária para Ressuscitação dos Aparentemente Mortos.


:: LEGUMES NÃO BASTAM ::
“A magia negra”, Anne Sexton

A mulher que escreve sente demais
tais transes e presságios!
Como se bicicletas e crianças e ilhas
não bastassem; como se carpideiras e faladeiras
e legumes não bastassem nunca.
Ela julga que pode alertar estrelas.
Uma escritora é essencialmente uma espiã.


:: DESEMPANANDO O ESPÍRITO ::
Revista da Semana, Jornal do Brasil, novembro de 1900


:: COQUETÉIS DE GELO E ÁGUA ::
“Animals”, de Frank O’Hara

I wouldn’t want to be faster
or greener than now if you were with me O you
were the best of all my days

>>>>

Jornalista irresponsável: Vanessa Barbara (MTB 45.250/SP)
Agradecimentos: Bruno Brasil, Chico Mattoso, Luciana Araújo, Marcos Barbará.
*Cuida de tua vida, em latim.

=========

“Para ser lido na maldita hora da noite em que tudo é engraçado – logo após a hora em que nada faz sentido e antes daquela em que tudo faz sentido” (Stephanie A., a moradora mais ilustre da rua Paulo da Silva Gordo)  ## Você está recebendo !!Witzelsucht!! porque estava na mala direta. Ou então, ou então! Você está recebendo o !Rododendro! porque foi um dos 139 mil nomes escolhidos entre todos os possíveis, sorteados em uma grande urna chinesa. Você e o To Fu, que ganhou o direito de trazer um tufo de nenúfares e furar a fila. Caso não queira voltar a receber este jornalzinho, mande um e-mail para vmbarbara@yahoo.com e diga na linha de assunto: “Foi demais para Kudno Mojesic”, mesmo que você não seja – e nem queira ser – Kudno Mojesic.

::: www.hortifruti.org :::


Pequeno aviso legal: A Hortaliça será distribuída gratuitamente através do Substack. Não iremos produzir conteúdos fechados para assinantes por acreditar no livre acesso à informação, arte e cultura. A tarifa zero será bancada pelos leitores e leitoras e leitões que tiverem condições financeiras (e vontade) de colaborar. A estes, pedimos graciosamente que nos apoiem escolhendo um plano de assinatura ou depositando moedas de ouro aleatórias para a chave pix: vmbarbara@yahoo.com. Vamos apoiar o jornalismo independente, a literatura de guerrilha e a bobice semiprofissional.

Ayumi Tanaka

The New York Times
Jan 1, 2024

by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer

Ler em português

I was nursing a 4-month-old baby when Jair Bolsonaro won Brazil’s presidential election in 2018. It was a disaster, and I knew it right away. My daughter — let’s call her Potato — kept on sucking while I shed tears over her head. Then I changed her into a rainbow onesie to indicate my displeasure with our future president, who once said he was “proud to be homophobic.”

There was not much else I could do in my state of exhaustion and despair. But then, on one of those lonely nights of breastfeeding, I started to tell Potato random stories, just to feel less alone and to divert my sad thoughts. Little did I know that this, the simple act of telling tales, would see us through an unhinged far-right presidency and a devastating pandemic. In the toughest of times, it was a lifeline.

I remember the story that started everything: It was the tale of Damon and Pythias, which I had read somewhere and wanted to pass along. According to the myth, they were best friends who traveled to Syracuse, where Pythias did something unpleasant to King Dionysius and was sentenced to death. Pythias wanted to say goodbye to his family, so Damon offered himself as a hostage while Pythias settled his affairs. The king agreed. Nobody expected Pythias to return, but he did. Dionysius was so moved by the demonstration of friendship that he revoked the death sentence.

When I relayed the story’s ending, I swear that my baby stopped feeding for a second, her big brown eyes looking at me inquiringly. After that, I decided to tell her any anecdote that came to mind and sounded even remotely child appropriate. This helped me a lot during late-night diaper changes, especially when I also needed to change Potato’s soaked bed linens while distracting a cold, outraged baby.

She paid attention — first to my intonations and then to the narrative, as she began to understand our language. I told her stories of the day I slipped off a boat, the day my bus broke down, the day I mistook apples for tomatoes, the day two buckets flew away through our window, whatever. She loved the story of a friend who was stung by a bee and continued to play a recreational volleyball match with a swollen foot; it’s graphic, it’s heroic, it’s fun.

A little more than a year later, when Potato was a toddler learning to walk and talk, Covid-19 reached the country. By then, I was telling her stories about the environment, Indigenous tribes, the Amazon rainforest and the soaring deforestation rates under Mr. Bolsonaro’s watch. Then we began to chat about pathogens, masks, vaccines and science denialists — like the leader of our country, who aimed for herd immunity and worked against vaccines.

Sharing stories was our way of getting through the long days and nights of social isolation. She showed a special interest in the plot of a novel by Ivan Goncharov, the 19th-century Russian novelist, she picked up from my bedside table. The protagonist, Ilya Ilyich Oblomov, refused to leave his bedroom; for him to move from his bed to a chair takes dozens of pages. (He complied with quarantine before it was cool.)

As she developed her language skills, Potato started to ask difficult questions — about why the rich could continue to drain our natural resources and why Mr. Bolsonaro hadn’t been arrested yet. I tried to convey a hopeful message about the future, but sometimes my despondency was hard to hide. On the other hand, I learned that telling stories to her was a way of thinking out loud and calming my anxieties. This was good for both of us: I got a therapeutic break from my neurosis, and she got a story.

Since Potato didn’t have many true stories of her own to share and the outside world was a mess, we often resorted to fiction. All the time, she asked me to tell “wrong things” (fictional stories) that were “long and difficult to understand” (meaning many characters and plot twists). Sometimes she interrupted me to say: “No, another one! A story without people.”

She intervened in everything — the plot, the genre, the dialogue, the characters. She demanded certain props and scenarios. “Now I want a sad story with Chico Bento,” she asked one day, referring to a character from a Brazilian comic strip. “And he sings!” Recurring cast members in her stories included Greta Thunberg, Oblomov, the sisters Bingo and Bluey (from the Australian animated series “Bluey”), Mario and Luigi (from the “Super Mario” franchise) and Luna (from the Brazilian animated series “Earth to Luna!”).

In late 2022, Mr. Bolsonaro was voted out of office, defeated by Luiz Inácio Lula da Silva. I told my daughter about Mr. Lula’s imprisonment, his release, the annulment of his convictions and his comeback as president. Now that’s a story. I told her about Mr. Lula’s dog, a female black mutt named Resistance who went from living on the streets outside Mr. Lula’s prison to the presidential palace. Potato loved that part.

Last year, with Mr. Bolsonaro and Covid-19 out of our lives — well, sort of — we could finally concentrate more on experiencing new stories rather than just telling them. Depression, my own faithful black mutt, still follows me around, but I have found more ways to keep it at a certain distance. A good night’s sleep is a nice way to start. Things seem lighter.

Potato is now a 5-year-old who knows how to read, write and craft a compelling narrative. A while ago, we were coming home from school when she decided to perform a story inside the crowded bus. (I told her to lower her voice, to little avail.) At one point we were all “in a very deep cave with a giant, a chicken and a huge ice cream.” The lady next to us couldn’t stop laughing, especially when the plot twist came. We got off at the penultimate stop, so most passengers didn’t hear the end, sadly.

Our storytelling has developed in tandem, each of us encouraged by the other. In the past year, I drafted a novel about depression, motherhood, Greek myths and creative writing. Potato wrote and illustrated five books before getting bored: “Things I Like,” “Things I Don’t Like,” “The Long Dress,” “The Crazy Birthday Book” and “The Pineapple Singer.” Life is fuller for both of us: She’s been learning to swim and I’ve been playing beach volleyball, risking the occasional bee sting.

She’s been teaching me how to finish a complex narrative when you are despairing and clueless about how to move on: She just appears, flying, as a plot resolution device. It’s called a Potato ex machina. It works every time.