ss2

O Estado de São Paulo
23 de março de 2015

por Vanessa Barbara

O jogo Depression Quest (www.depressionquest.com) não é para ser divertido. A bem da verdade, nem é para ser um jogo. Trata-se de uma ficção interativa em texto que se desenvolve à medida que o jogador toma decisões cotidianas, geralmente relativas a trabalho, saúde e relacionamentos. O objetivo é fazer com que pessoas sadias entendam a dimensão da doença e mostrar aos depressivos que eles não estão sozinhos em suas angústias.

O herói é um rapaz de 20 e poucos anos que tem um emprego meio entediante, uma mãe preocupada e uma namorada compreensiva. Uma vida normal, portanto. Só que, pouco a pouco, ele começa a se sentir “preguiçoso”, cada vez mais exausto e ansioso, e tem problemas para dormir.

Muitos dizem que é só questão de ter força de vontade e de se cuidar melhor, porém, por mais que ele se esforce, essa sensação vai se aprofundando ao longo dos dias. Ele se sente culpado por isso. Também perde o gosto pelas coisas e vê que, na maior parte do tempo, está apenas se forçando a viver.

Diante de cada situação, o jogador precisa fazer uma escolha entre uma série de possibilidades.

A grande sacada de Depression Quest é a seguinte: quanto mais a depressão se aprofunda, menos opções o protagonista possui. Por exemplo: depois de uma noite insone, ele consegue cochilar, mas acaba perdendo a hora. Se estivesse saudável, teria ânimo para sair da cama e ir para o trabalho, mesmo estando bastante atrasado. Acontece que essa opção simplesmente não existe para o depressivo; já é apresentada com uma tarja em cima, como se realmente a ação estivesse fora do seu alcance emocional. Não é mais uma escolha possível.

Como numa avalanche macabra, as poucas escolhas disponíveis ao usuário acabam levando a uma quantidade ainda menor de escolhas, a ponto de, a certa altura, não sobrar mais nenhuma.

O jogo se inicia com uma citação do escritor David Foster Wallace, que sofria de depressão atípica e suicidou-se em 2008. Para ele, a doença se traduz num “dilema emocional em que qualquer das alternativas (ou todas as alternativas) que associamos com as ações humanas – sentar ou levantar, fazer ou descansar, falar ou ficar em silêncio, viver ou morrer – não só são desagradáveis como absolutamente horríveis”.

A trilha sonora é (claro) deprimente. Há cinco finais possíveis e nenhum deles é exatamente animador. O desfecho menos ruim advém da decisão de tomar medicamentos, fazer terapia e buscar uma rede de apoio junto aos familiares e amigos. Ah, e adotar um gato.

Na primeira vez que joguei Depression Quest, ignorei o aviso de que “pessoas que estão atualmente sofrendo da doença e se encontram mais sensíveis devem saber que este jogo se utiliza de descrições fortes de indivíduos em estados muito sombrios”.

Meses se passaram até que tive coragem de tentar de novo.

Operação silêncio

Posted: 16th março 2015 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: ,

74_1serprico_copy

O Estado de São Paulo – Caderno 2
16 de março de 2015

por Vanessa Barbara

Frank Serpico foi um policial nova-iorquino que, nos anos 70, denunciou quase que solitariamente uma gigantesca rede de extorsão que envolvia comissários, oficiais e soldados em todos os departamentos da Força Policial, a ponto de praticamente haver se tornado regra. O sistema era “alimentado pela ação da grande maioria dos policiais e protegido pelo código de silêncio daqueles que continuavam honestos”, segundo o relatório final da Comissão Knapp. Entre as atividades cotidianas de inúmeros guardas de Nova York estava o tráfico de heroína, a venda de informações sigilosas, a proteção a traficantes, o encobrimento de crimes, a execução de testemunhas, a delação de infiltrados da própria polícia e a cobrança de favores. A investigação deu início a uma limpeza moral na corporação.

Em troca, Serpico ganhou o ódio de muitos de seus pares, que o consideraram um traidor – exatamente como pode acontecer hoje, quando os que denunciam um desvio de conduta na polícia são tratados como adversários do bem e amigos do Alheio. Meses após depor na Justiça, Serpico participou de uma emboscada a um traficante e foi abandonado na linha de tiro. Foi baleado no rosto e deixado para morrer – os outros policiais nem sequer chamaram a ambulância.

Ele sobreviveu apenas porque um idoso hispânico viu a cena e chamou o socorro.

Hoje Serpico tem 78 anos e ainda traz fragmentos de bala no cérebro. Sua história foi vivida por Al Pacino num excelente drama de 1973 dirigido por Sidney Lumet. Ainda assim, ele continua a receber ameaças de morte de ex-colegas e de policiais na ativa. “A divisão de narcóticos estava podre até a medula; muitos policiais eram pagos pelos traficantes que deveriam prender. Recusei-me a receber propina e testemunhei contra meus colegas. Só que a polícia constitui uma subcultura peculiar dentro da sociedade. Possui um código próprio de conduta, uma atitude ‘nós contra eles’ que é reforçada pelo Muro Azul do Silêncio”, afirma Serpico, referindo-se à cumplicidade por vezes criminosa dos colegas de farda, numa atitude que lembra a omertà dos mafiosos.

Isso ficou claro para Serpico logo de início, quando comunicou o esquema aos superiores e nada foi apurado. Só quando ameaçou revelar o que sabia a terceiros é que foi instaurada uma investigação interna, que, por fim, também se mostrou falha e comprometida. A mudança só ocorreu quando o escândalo saiu no New York Times.

Desde aquela época, diz-se que as críticas à polícia são perigosas porque enfraqueceriam a “imagem” da corporação, fortalecendo o lado dos bandidos. Frank Serpico discorda – segundo ele, a falta de um órgão fiscalizador externo e permanente pode levar a abusos indescritíveis. “Como eu disse à Comissão Knapp 43 anos atrás, precisamos criar uma atmosfera na qual os policiais corruptos temam os policiais honestos, e não o contrário”, disse ele ano passado.

Trote

Posted: 14th março 2015 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: ,

O Estado de São Paulo – Caderno 2
9 de março de 2015

por Vanessa Barbara

Eram aproximadamente onze da noite quando um rapaz e uma moça entraram no 118-C. Estavam cobertos de tinta colorida, os cabelos gosmentos, as roupas sujas. Ficaram em pé junto à porta de saída, atravancando a passagem, e ela começou a falar em voz alta, como se anunciasse para o ônibus inteiro:

“Ai, eles me obrigaram a beber um troço no-jen-to, tinha até pimenta lá dentro!… Pimenta! E botaram as meninas pra andar de quatro numa fileirinha, fazendo elefantinho, sabe? Foi hilário!”

A cada meia dúzia de frases, a moça soltava uma risada exagerada, quase histérica, que ecoava pelas portas e janelas do coletivo. Pelo que pude apurar, era o dia mais feliz da vida dela. Os veteranos, além de forçar a tal bebida goela abaixo dos animadíssimos calouros, jogaram ovo e farinha na cabeça deles e os fizeram pedir dinheiro no farol para pagar uma cervejada.

Aumentando ainda mais o tom de voz, a moça descreveu as conversas que travou com os motoristas dos carros durante o trote no semáforo – “Acredita que ele pediu o meu telefone? Eu dei, né, mas falei que tinha que sair correndo porque os veteranos estavam me esperando com o dinheiro”.

O rapaz pouco falou, mas confirmou haver passado pelas mesmas provações e deu a entender que também se achava no ápice de sua plenitude histórica. Mas a moça mal escutava o interlocutor, ocupada em divulgar aos passageiros todos os grandes momentos do dia – como se falasse de um ato de heroísmo ou de um instante de iluminação mística em que houvesse enxergado a face do Criador frente a frente, e tudo lhe fosse perdoado.

“Tinha até mandioca no troço que me fizeram beber!”

“Hãm?”

“É, tinha mandioca! E tipo, eu estou muuuuuito suja, meu cabelo está grudento, e lá em casa sei que não vai ter água, então imagina! Vou ter que dormir assim! Ah!”, e gargalhava.

Sobre a faculdade em si, disse apenas que no dia seguinte as aulas começariam.

“Então, tem muita gente certinha, um pessoal que leva a sério, não tem quase ninguém tipo doidinha que nem eu. Hoje deixei o meu caderno com um menino que eu nem conhecia, só perguntei assim: Você vem amanhã? Leva o meu caderno? E deixei com ele, tipo, sei lá se ele vai amanhã… Ah, mas tinha uma menina que também é tipo doidinha que nem eu.”

Cansados, os passageiros tentavam não escutar. Mas não havia como: quase gritando, a moça declarou que neste semestre teria aulas de anatomia, biologia e “cintologia”. Ficou felicíssima ao descobrir que não teria mais que estudar matemática. E repetiu, embora ninguém tivesse perguntado:

“Pimenta! Tinha até pimenta no troço! Eles me obrigaram a comer pimenta, e me forçaram a tomar cachaça… E sabe o que mais? Eu vou me vingar. Já disse pra todo mundo que vou fazer igual com os bichos do ano que vem!”.

A didática de Jout Jout

Posted: 4th março 2015 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: , , ,

hqdefault

O Estado de São Paulo – Caderno 2
2 de março de 2015

por Vanessa Barbara

Dentro da comunidade sub-30, Jout Jout é tendência.

Estamos falando de um videoblog (série de vídeos curtos com observações pessoais, ensinamentos, lembranças e desabafos) da niteroiense Julia Tolezano, de 23 anos, “uma draga de sentimentos, um vórtice que aspira todas as atenções num raio de mil quilômetros” – como definiu um leitor desta coluna.

Com o nome “JoutJout Prazer”, o canal de YouTube foi criado em maio de 2013 e já contém verdadeiros clássicos do videoblogging brasileiro. Jout Jout possui tutoriais que ensinam a limpar a geladeira, dar banho no cachorro e lavar o carro. Fala sobre espíritos, biometria, Interestelar, naturismo, Romero Britto e como fazer cocô sem perder o romantismo de um namoro recente. Não há roteiro e tampouco um rumo, como se pode ver nos momentos em que ela hesita e fala qualquer coisa tola com um ar resignado.

Jout Jout pode decidir demonstrar “como devemos nos portar diante de pequenos problemas que nós pensamos que são grandes problemas porque a nossa perspectiva é esquisita”, como ocorreu num vídeo recente. Na ocasião, ela usou um brinquedo de encaixe chamado Urso Jumpy para tirar conclusões edificantes sobre a vida, ainda que aleatórias: quando Jumpy não consegue enxergar em perspectiva, “ele nutre aqueles problemas dentro dele. E aí depois de um tempo ele… morre”.

Trata-se de um humor seco, monocórdio e absolutamente conformado com o fardo da existência – um bom exemplo é o vídeo “Tá todo mundo mal”, no qual Jout Jout confessa: “Ontem eu me dei conta de que não trocava de roupa há três dias”.

Um dos meus preferidos é “Alerta encrenca”, no qual a moça elenca seus defeitos para dissuadir possíveis admiradores; ela assume que seu sistema digestivo não funciona bem, que gosta de fazer coreografias em dupla e que possui gordurinhas localizadas. “Você quer alças pra você? Alças nas costas?” E acrescenta, referindo-se ao namorado: “Caio aguenta porque ele é um santo”.

A graça é ver que Jout Jout usa seu didatismo sério para instilar pérolas de sabedoria nos espectadores, tal qual uma palestrante da Casa do Saber. Só que o tema é: calcinhas. “Eu sou tão didática que dá até nervoso”, admite.

Num vídeo sobre autoestima, ela recomenda assistir a algum filme “de Universo” para ver o quão pequena é a Terra, e então perceber como são minúsculas as suas celulites. “Se não dá pra ver de um satélite, deixa pra lá”, ela diz. Também aconselha encontrar, no corpo, duas pintas que se pareçam com olhinhos e desenhar sorrisos com uma caneta.

Jout Jout diz que decidiu fazer um vlog para superar sua aversão a críticas. “Na internet as pessoas não têm medo de te machucar; elas te machucam por puro prazer”, declarou.

Por isso, todas as terças e quintas, Jout Jout passa vergonha em larga escala. “Eu só meio que vou falando e vocês meio que vão ouvindo e a gente meio que vai se amando”, conclui.

Trabalho nas horas vagas

Posted: 23rd fevereiro 2015 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: , , ,

maxresdefault

O Estado de São Paulo – Caderno 2
23 de fevereiro de 2015

por Vanessa Barbara

Outro dia acordei cedo, tomei café, li o jornal, botei uma roupa séria e fui jogar “Papers, Please” [“Os documentos, por favor”].

Lançado em 2013, o jogo de computador se passa nos anos 80 e tem como cenário a cabine do posto de fronteira de uma república imaginária chamada Arstotzka. O herói é o funcionário responsável pelo controle de imigração do país, cuja função é analisar os documentos dos recém-chegados, conferindo ou negando acesso a Arstotzka. Seu objetivo é barrar elementos indesejáveis.

Basicamente é isso. Por horas a fio, o jogador se diverte em comparar documentos e vistos, checando os locais de emissão, datas de expiração, certificados de vacinação, nome, sexo, foto, duração e propósito da visita. Então carimba o passaporte com os dizeres “aprovado” ou “negado”. Se deixa algum detalhe escapar, é advertido ou punido com um desconto no salário.

É bem parecido com o que chamamos de trabalho.

Conforme a história vai se desenvolvendo, mais exigências e particularidades entram em jogo, por exemplo: caso o visitante esteja muito acima do peso registrado nos papéis, é preciso submetê-lo a uma radiografia em busca de armamentos ou drogas. Se os nomes não batem, faz-se necessário tirar as impressões digitais do infeliz. Alguns dias de expediente são abreviados por ataques terroristas, e, após tais ocorrências, há um veto geral para os cidadãos de alguma república vizinha (Obristan, Kolechia, Antegria). Há também listas de criminosos procurados e uma infinidade de minúcias para checar, sobretudo quando se sabe que o tempo é curto e o salário está relacionado à produtividade.

Mais tarde, o herói ganha permissão para prender suspeitos e até alvejar terroristas que se aproximem da fronteira. Há ofertas de suborno, pilantras recorrentes como Jorji Costava e um grupo de rebeldes encapuzados lutando pela democratização de Arstotzka, que afinal de contas é governada por um regime ditatorial. Você pode ou não se meter nisso. Também pode liberar a entrada de imigrantes por piedade, mas terá que arcar com as consequências.

Eu, por exemplo, escolhi ser bovinamente fiel à minha gloriosa pátria e agi da forma mais fascista possível – fascista e incompetente. Escorracei os militantes pela liberação do povo, esmaguei asilados políticos, aceitei suborno dos meus superiores e segui estritamente as regras da fronteira. Lá pela segunda semana de trabalho, meus erros constantes acabaram por reduzir meu salário. Naturalmente deixei morrer meu filho, minha mulher, minha cunhada e meu tio. (Os inúteis viviam doentes e faziam questão de ter aquecimento e comida.) Como resultado, ganhei uma promoção e subi na vida.

Um amigo meu se disse horrorizado com a minha ética de trabalho e afirmou, orgulhoso, que decidiu colaborar com o movimento rebelde e libertou Arstotzka da tirania.

Fingi que não ouvi e chamei o próximo da fila.

O Estado de São Paulo – Caderno 2
16 de fevereiro de 2015

por Vanessa Barbara

Na semana passada, falei das pequenas coisas capazes de nos aproximar de pessoas que condenamos sem conhecer; poderia fazer uma crônica também sobre os policiais que acompanham os protestos e que muitas vezes são vistos como um bloco único formado por insensíveis máquinas de cumprir ordens e bater em manifestantes. Eles também podem gostar de doce de leite, torcer pelo Corinthians, levar o cachorro à missa e ter opinião sobre o aumento da tarifa, a despeito das ordens do governador ou de seus superiores.

Poderia, mas nunca me expressaria tão bem quanto Rubem Braga, que acompanhou os pracinhas na Segunda Guerra e teve seus textos reunidos em “Crônicas da Guerra na Itália”. À crueza dos fatos, o repórter adiciona seu olhar de cronista que busca pontos singelos no cotidiano daqueles homens, detalhes despretensiosos, anedotas, histórias de vida e preocupações. “Encontramos no meio do caminho o general Cordeiro de Farias, que está deixando crescer um bigode, e vamos a um Centro de Tiro”, escreve.

Mesmo reportando uma situação de guerra, e portanto atípica, Braga descreve os aspectos que fazem tais pessoas diferentes de todas as outras e também aqueles que as aproximam de qualquer ser humano, aliado ou inimigo, metido em uma trincheira lamacenta bem longe de casa.

Na história de cada soldado – como aquele que veio de Monte Aprazível e estava terminando o liceu, ou aquele que é filho do proprietário das Perfumarias Carneiro, ou o sargento Domingos Leite que é da rua Goitacazes, 1726 e vai se casar no inverno, ou o outro que quando começa a falar de boi não para mais – também vamos nos tornando seus velhos conhecidos.

Isso pode trazer à tona uma empatia que é tão necessária em tempos de ódio, quando tudo é reportado como uma guerra entre o lado de cá e o lado de lá.

“Há um mundo de coisas que os jornais não dizem”, afirma Braga. São bobagens irrelevantes para a Secretaria da Segurança Pública ou para o chefe de gabinete do prefeito – mas que são essenciais para a maioria de nós. Dados que vão além do “efetivo de 800 policiais” e “44 pessoas detidas”. Quando lemos, por exemplo, sobre o “comandante da operação, tenente-coronel Bexiga”, não sabemos qual o tom da voz dele, se tem senso de humor, se está com os pés doloridos.

Não que isso sirva como justificativa para as ações alheias. É só que, nesse processo de aproximação, podemos nos tornar mais compreensivos e sensíveis a outros pontos de vista.

Um exemplo está na carta de um soldado para a família, tal qual foi descrita por Rubem Braga: o sujeito fez “um enorme lero-lero sentimental de começo a fim, disse que está morrendo de saudades, viver sem ti é uma desgraça, eu não sei como aguento essa separação, é uma agonia medonha, choro pensando em ti, e no fim de tudo isso meteu esse P.S. – ‘manda me contar o resultado do jogo do Bangu’”.

Brasil, terra dos gatunos

Posted: 10th fevereiro 2015 by Vanessa Barbara in Traduções
Tags: , ,

The International New York Times
5 de fevereiro de 2015

por Vanessa Barbara

Trad. George El Khouri Andolfato (Uol Notícias)

Um antigo lugar-comum em Hollywood diz que se você roubou um banco ou vendeu segredos de guerra para o inimigo, ou mesmo se apenas desviou fundos de alguma empresa, então você deve fazer as malas e fugir para o Brasil.

Segundo meu breve trabalho de detetive, talvez o primeiro filme a fazer referência a essa atração peculiar exercida pelo Brasil sobre os fugitivos internacionais foi “O Mistério da Torre”, uma comédia britânica de 1951 estrelada por Alec Guinness. Seu personagem rouba 1 milhão de libras em ouro do Banco da Inglaterra, derrete as barras em miniaturas da Torre Eiffel e vai “direto para o Rio de Janeiro. Uma terra alegre e animada de jovialidade e desembaraço social”.

Um ano depois, o drama de Hollywood “5 Dedos” apresentava um ambicioso serviçal da embaixada britânica que decide vender segredos aos nazistas. O personagem de James Mason pretende receber 200 mil libras em 12 semanas, então correr para uma “nova vida. Um novo nome”. Juntamente com sua parceira, uma condessa arruinada interpretada por Danielle Darrieux, ele planeja fugir das “guerras, intrigas e medos” e se tornar como o homem elegante que certa vez viu na sacada de uma casa brasileira, no alto da encosta acima do porto. “Ele parecia próximo o bastante para ser tocado, mas estava fora do alcance de todos.”

Não causa surpresa que tantas histórias de ficção envolvam personagens fugindo para cá para escapar da lei. Hoje o Brasil conta com um tratado de extradição com os Estados Unidos, mas ele entrou em vigor apenas em 1964. Nós não tínhamos um tratado semelhante com o Reino Unido até 1997, permitindo assim a Ronald Biggs – que teve participação secundária no Grande Assalto ao Trem Pagador de 1963 e escapou de uma prisão em Londres em 1965 – viver aqui em liberdade por décadas.

Como colocou o personagem de Tom Hanks em “Um Dia a Casa Cai” (1986): “Eles não têm leis no Brasil? Eles não têm polícia?” E há o golpista em “A Máquina de Fazer Milhões” (1968), que entra no país com uma bolsa cheia de dinheiro. Quando ele chega à alfândega, ele abre a bolsa e diz exatamente o que contém – “dinheiro” – com a autoridade alfandegária apenas respondendo: “Desfrute sua estadia no Brasil”. 

Segundo “Olhar Estrangeiro”, um documentário de 2006 de Lúcia Murat, mais de 40 filmes não brasileiros envolvem fora-da-lei expressando um desejo de fugir para o Brasil. Mas apenas poucos são bem-sucedidos. Talvez o exemplo mais famoso seja “Primavera para Hitler” (1968), no qual Max Bialystock e seu contador, Leo Bloom, planejam pegar seus milhão de dólares e voar para o Rio, mas acabam na prisão.

Ao longo dos anos, se esses personagens não olham para o Brasil por causa de sua má reputação de leis frouxas ou reputação de paraíso ensolarado, eles vêm à procura de aventura em uma terra “primitiva”, cheia de riscos desconhecidos. Eles podem se referir à América do Sul como se fosse um único país, e misturar Brasil e México. Em “Fu Manchu e o Beijo da Morte” (1968), o diabólico gênio do crime Fu Manchu (interpretado por Christopher Lee) se esconde na selva brasileira e planeja usar um antigo veneno inca em seu plano maligno para conquistar o mundo. (Não importa que o Império Inca estivesse localizado no Peru moderno.)

Naquele mesmo ano, o sofisticado e belo Thomas Crown (Steve McQueen) deu pistas para Vicki Anderson (Faye Dunaway) sobre seu destino final em “Crown, o Magnífico”: “Samba, Pão de Açúcar, selva, piranha”.

Mal sabem eles.

Quando se trata de estereótipos, o Brasil é acima de tudo uma selva exótica, tropical, cheia de mulheres bonitas usando biquíni. Muitos fora-da-lei sonham em terminar suas vidas na praia de Copacabana bebendo piña coladas, assim como o protagonista de “A Volta de Max Dugan” (1983). Na vasta filmografia de fugitivos para o Brasil, Michael Keaton dança um samba depois de fraudar a loteria (“Os Trapaceiros da Loto”, 1987), Eric Idle e Robbie Coltrane se disfarçam de freiras para se aposentarem da máfia (“Freiras em Fuga”, 1990), Val Kilmer e Kim Basinger fogem para cá com US$ 3 milhões (“O Grande Assalto”, 1993), e Kerry Fox compra uma passagem só de ida para o Brasil após deixar seus melhores amigos morrerem (“Cova Rasa”, 1994).

Por anos, esse clichê de paraíso permaneceu notavelmente consistente. Há menos de uma década, nós tínhamos Philip Seymour Hoffman roubando seus próprios pais para financiar sua fuga para o Rio com sua esposa (“Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto”, 2007), enquanto o Hulk se esconde dos militares americanos em uma favela brasileira (“O Incrível Hulk”, 2008). Um pouco depois, Johnny Depp, como John Dillinger, planeja tomar um avião para Caracas e depois para o Rio, “para um pouco de diversão ao sol” (“Inimigos Públicos”, 2009).

O filme mais recente dessa linhagem é “Velozes & Furiosos 5: Operação Rio”. Ele mostra o personagem de Vin Diesel fugindo da prisão e então indo para o Rio para roubar US$ 100 milhões de um empresário corrupto.

Mas dessa vez, a imagem do Brasil mudou. Ele é descrito como uma terra de narcotraficantes armados e mulheres fáceis. Estranhamente, muitas pessoas falam espanhol. Um personagem diz que todo mundo no Rio pode ser comprado; outro chama o lugar de um “buraco infernal”.

Do céu ao inferno em apenas poucos quadros.

Brazil, the outlaw’s paradise

Posted: 10th fevereiro 2015 by Vanessa Barbara in New York Times, Reportagens
Tags: , , ,

The International New York Times
Feb. 5, 2015

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — A long-established piece of wisdom in Hollywood says that if you have robbed a bank or sold war secrets to the enemy, or even if you’ve just embezzled some company funds, then you should pack your stuff and move to Brazil.

According to my brief detective work, perhaps the first film to reference the peculiar attraction that Brazil holds for international runaways was “The Lavender Hill Mob,” a 1951 British comedy starring Alec Guinness. His character steals one million pounds in gold from the Bank of England, melts the bars into miniature Eiffel Towers and comes “straight on to Rio de Janeiro. Gay, sprightly, land of mirth and social ease.”

A year later, the Hollywood drama “5 Fingers” presented an ambitious British Embassy valet who decides to sell secrets to the Nazis. James Mason’s character intends to collect 200,000 pounds in 12 weeks, and then dash into “a new life. A new name.” Alongside his partner, a ruined countess portrayed by Danielle Darrieux, he plans to escape “the wars, the intrigues, fears,” and to become like the elegant man he once saw on the balcony of a Brazilian villa, high in the mountainside above the harbor. “He seemed close enough to touch, and yet he was beyond the reach of anyone.”

It’s not surprising that so many fictional stories revolve around characters fleeing here to escape the law. Today Brazil does have an extradition treaty with the United States, but it has been in effect only since 1964. We had no similar treaty with Britain until 1997, thus allowing Ronald Biggs — who had a role in the Great Train Robbery of 1963 and escaped from a London prison in 1965 — to live here in freedom for decades.

As Tom Hanks’s character puts it in “The Money Pit” (1986): “Don’t they have any laws in Brazil? Don’t they have any police?” Then there’s the con artist, in “Hot Millions” (1968), who enters the country with a bag full of money. When he gets to customs, he opens the bag and says exactly what it contains — “money” — to which the officer just answers: “Enjoy your stay in Brazil.”

According to “The Foreign Eye,” a 2006 documentary by Lúcia Murat, more than 40 non-Brazilian movies involve outlaws expressing a desire to flee to Brazil. Yet only a few of them succeed. Perhaps the most famous example is Mel Brooks’s “The Producers” (1968), in which Max Bialystock and his accountant, Leo Bloom, plan to take their million dollars and fly to Rio, but end up in prison instead.

If, over the years, these characters don’t look to Brazil because of its disreputable loose laws or reputation as a sunny paradise, they come searching for adventure in a “primitive” land, full of unknown dangers. They might refer to South America as if it were a single country, and mix up Brazil and Mexico. In “The Blood of Fu Manchu” (1968), the diabolical mastermind Fu Manchu (played by Christopher Lee) ensconced himself in the Brazilian jungle and planned to use an ancient Incan poison in his evil plot to conquer the world. (Never mind that the Inca Empire was located in modern-day Peru.)

That same year, a sophisticated, handsome Thomas Crown (Steve McQueen) gave a hint to Vicki Anderson (Faye Dunaway) about his final destination in “The Thomas Crown Affair”: “Samba, Sugarloaf, Jungle, Piranha.”

Little do they know.

When it comes to stereotypes, Brazil is above all an exotic, tropical wilderness full of beautiful women wearing small bikinis. Many outlaws dream about ending their lives on Copacabana Beach drinking piña coladas, just like the protagonist of “Max Dugan Returns” (1983). In Brazil’s vast runaway filmography, Michael Keaton dances a samba after defrauding the lottery (“The Squeeze,” 1987), Eric Idle and Robbie Coltrane disguise themselves as nuns to retire from their gangster jobs (“Nuns on the Run,” 1990), Val Kilmer and Kim Basinger flee here with $3 million (“The Real McCoy,” 1993), and Kerry Fox buys a one-way ticket to Brazil after leaving her best friends to die (“Shallow Grave,” 1994).

For years, these paradise clichés remained remarkably consistent. Less than a decade ago, we had Philip Seymour Hoffman robbing from his own parents to fund his escape to Rio with his wife (“Before the Devil Knows You’re Dead,” 2007), while the Hulk hides from the United States military in a Brazilian favela (“The Incredible Hulk,” 2008). A little later, Johnny Depp, as John Dillinger, planned to grab a plane to Caracas and then to Rio, “for some fun in the sun” (“Public Enemies,” 2009).

The most recent movie in this lineage is “Fast Five” (2011). It shows Vin Diesel’s character escaping from prison and then going to Rio in order to steal $100 million from a corrupt businessman.

But this time, the image of Brazil has changed. It is depicted as a land of armed drug traffickers and easy women. Oddly, lots of people speak Spanish. One character says that everybody in Rio can be bought; another one calls the place a “hellhole.”

From heaven to hell in just a few frames.


Vanessa Barbara is a columnist for the Brazilian newspaper O Estado de São Paulo and the editor of the literary website A Hortaliça.

Enciclopédia das ruas

Posted: 9th fevereiro 2015 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
Tags: , , ,

IMG_0119

O Estado de São Paulo – Caderno 2
9 de fevereiro de 2015

por Vanessa Barbara

Tem o Alexandre, que é socorrista e já foi detido pela polícia enquanto estancava o sangue de um rapaz atingido por estilhaços de bomba de efeito moral. Ele é natural de Bauru e possui um jabuti chamado Tango. (Caso um dia descubra que o quelônio é fêmea, pretende mudar para “Rumba”.)

Tem o Manoel, que trabalha com terraplenagem, é católico e membro do grupo de Observadores Legais. Vestidos com um colete amarelo, eles acompanham e registram a ação dos policiais durante as passeatas. Manoel afirma que fez três faculdades e só não fez a quarta “porque acabou o cimento”.

Tem o Igor, advogado que às vezes leva o cachorro Carlos à missa, sofre de astigmatismo e alega veementemente que a gata Theodora esconde as meias dele.

Tem a Vânia, que possui uma dezena de cães em casa e apareceu uma vez no Jornal Nacional protegendo os policiais de pedradas. E o Pierre, que usa joelheiras, lê Brecht, gosta de astronomia e entra em discussões longuíssimas sobre política e participação popular.

E o Vitinho, de 21 anos, que foi atingido por uma bomba de efeito moral em setembro de 2013 e perdeu a visão do olho direito, mas continua nas ruas. Ele costuma compor a frente do ato e anda por aí de tapa-olho, assim como o fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu a visão do olho esquerdo após ser ferido por uma bala de borracha em junho de 2013.

E o Vinícius, estudante de química que distribui livros para moradores de rua e perdeu quatro dentes após ser surrado numa manifestação em janeiro do ano passado.

Tem também o Donato, jornalista, corintiano, que eu não conseguiria reconhecer na rua sem o capacete. No time dos fotógrafos também podemos citar o Adorno, que me ensinou a consertar um pino solto da máscara de gás, e o Eli, um gigante que usa máscara, capacete, óculos e uma sólida couraça. (É a ele que uma repórter da revista Vice se referiu ao escrever que, em meio a uma nuvem de gás, “um maluco passou correndo por mim com uma armadura preta, tirando foto enlouquecidamente”.)

Outro que está sempre nas ruas é o Pablo, professor da USP que gosta de doce de leite e tem um filho de 8 anos. E o padre Júlio, de 66 anos, que às vezes participa do cordão da frente e já foi ferido na perna por uma bala de borracha.

E a minha mãe, uma revisora de 61 anos, 1,49m de altura e 43kg que carrega nos atos uma bolsa repleta de gaze, soro fisiológico e leite de magnésia, materiais notoriamente utilizados para fabricar coquetéis Molotov.

São esses alguns dos “vândalos” e “vagabundos” que participam das manifestações pela redução da tarifa em São Paulo.

“Mete bala”, gritou um senhor da janela do prédio.

RX1

O Estado de São Paulo – Caderno 2
2 de fevereiro de 2015

por Vanessa Barbara

Minha tartaruga está resfriada.

Pouco antes do Natal, um dos meus três cágados de água doce – tigres d’água brasileiros – começou a apresentar sinais de apatia, levando-me a crer que se tratava de uma típica melancolia do tempo de festas.

Entre o Natal e o Réveillon, o “tartarugo” Napoleão me pareceu mais animado, porém logo em seguida parou de comer. Mais uma vez, pensei em promessa de Ano-Novo, talvez uma dieta radical de desintoxicação para corrigir os excessos de 2014. Vários dias se passaram.

No momento em que ele dispensou uma ração especial de camarão, anchovas e ovas de formiga, uma espécie de bife à parmegiana dos quelônios, chamei imediatamente o veterinário. Ele pediu uma radiografia da cavidade celomática do pequeno réptil, coisa que eu jamais imaginei ser possível.

(Há clínicas especializadas nesse tipo de exame diagnóstico, bastando que a tartaruga fique quieta e não tente morder o técnico.)

Foi como descobrimos que Napoleão estava com pneumonia, uma das doenças mais comuns (e fatais) nesse tipo de animal. O corajoso cascudo foi internado na casa do veterinário e por lá ficará durante catorze dias – na companhia de um porco-espinho e de um coelho em reabilitação pós-operatória –, onde tomará duas injeções de antibióticos por dia e fará nebulizações com medicamentos. Também estão previstos banhos periódicos com chá de camomila.

É evidente que, em casa, estão todos apreensivos quanto à recuperação do quelídeo, que ademais sempre foi muito pensativo e taciturno. Também sofria de insônia e passava madrugadas em claro, cheirando o fundo do aquaterrário com um ar solitário. Fora isso, Napoleão nunca ficou doente e, aos cinco anos de idade, pesa 750 portentosos gramas.

Não é só a família que se preocupa com o estado de saúde da tartaruga, mas também completos desconhecidos já manifestaram curiosidade a respeito, abordando-me em confraternizações e protestos. O constrangedor é que, diante de uma questão singela como: “Sua tartaruga está melhor?”, eu costumo agir tal qual uma mãe de recém-nascido e realmente respondo quais são as minhas aflições e expectativas quanto à recuperação do pequenino. Inclusive para pessoas que eu nem sequer conheço. E mostro as chapas de raio-X e as fotos mais recentes do quelônio descansando sobre a bancada da clínica.

A uma plateia atônita, calada e prisioneira das minhas narrativas sem clímax, explico que Napoleão tentou morder vigorosamente o estetoscópio e o dedo do doutor, o que é um bom sinal.

As pessoas costumam assentir, afastando-se progressivamente de mim.

**

Atualização de última hora: O coelho recebeu alta hospitalar e está bem, mas o porco-espinho faleceu, bem como uma chinchila idosa que fez companhia a Napoleão em sua primeira noite de internação. Ela morreu por intoxicação de fumaça de churrasco.