Bom dia pra quem?

Posted: 26th janeiro 2015 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Caderno 2
26 de janeiro de 2015

por Vanessa Barbara

Poucas coisas me parecem tão misteriosas quanto a transição entre boa tarde e boa noite. É de se espantar que os primeiros criadores das línguas humanas tenham insistido em manter esse dilema para todas as gerações vindouras.

Em tempos de horário de verão, a trama se complica. Se ainda não escureceu, podemos chamar de noite? A partir de que horas “boa tarde” vira “boa noite”? Talvez seja às seis em ponto, às seis e um, ou quem sabe exista um protocolo oficial baseado no azimute do Sol e na amplitude ortiva vezes o fuso horário menos oito – protocolo vastamente conhecido pelos nossos barbeiros e taxistas, com quem nunca se deve discutir.

Para o resto de nós, o drama é cotidiano. Conheço um amigo que, pouco depois do meio-dia, resolveu falar “boa tarde” para o porteiro. “Ele me deu bom dia”, contou, de forma dramática. “Repeti ‘bom dia’, claro, ele parecia mais decidido do que eu.”

Entendo perfeitamente. É sempre constrangedor ser corrigido em nossas saudações cotidianas, sobretudo quando são sete da noite e você diz “bom dia!” para o psiquiatra. (Provavelmente ele fará algumas anotações a respeito.)

Uma das saídas é afirmar, de forma singela: “Aposto que um monte de gente já te deu bom dia hoje, eu já estou dando bom dia para amanhã, para garantir”. Ou a clássica: “É bom dia porque eu não almocei ainda, né?”.

Depois da meia-noite, então, o cenário vira terra de ninguém. Faz-se igualmente aceitável proferir “bom dia” ou “boa noite”, sendo, porém, questionável a escolha de “boa tarde”, ainda que em nome da autonomia dos seres e da defesa das liberdades individuais.

(Lembrança aleatória: certa vez, quando eu tinha uns 12 anos, uma bola de futebol desceu a ladeira e foi interceptada por uma senhora, que a devolveu. Como forma de agradecimento, um dos meninos exclamou: “Muito obrigado! E tenha uma boa vida”.)

Como se vê, a questão é espinhosa. Muito pode ser dito em defesa dos atendentes de telemarketing, que, do interior de suas P.A.s (posições de atendimento), não conseguem enxergar o mundo lá fora e, portanto, estão autorizados a escolher o período que lhes convêm. (A esse respeito, muitos garantem que o trabalho é tão massacrante que, em casa, continuam atendendo ao telefone da seguinte forma: “Santana Laboratórios, Sheila, bom dia”.)

Pessoas mais inseguras optam pelo “olá” ou por um aceno de cabeça. Outras se recusam a participar desse jogo doentio. Lembro de uma amiga que, às seis da manhã de um dia frio, recebeu bom dia de outrem e respondeu, furiosa: “Bom dia pra quem?”.

Hard times

Posted: 22nd janeiro 2015 by Vanessa Barbara in Sem categoria
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Moral Reasoning 22: Justice with Michael Sandel

O Estado de São Paulo – Caderno 2
19 de janeiro de 2015

por Vanessa Barbara

Andei assistindo aos episódios de “Justice” com o fervor de quem acompanha “Lost”.

Trata-se de uma série de 12 aulas ministradas em Harvard pelo filósofo político Michael Sandel, disponíveis com legenda no canal de YouTube da UnivespTV. O curso aborda as principais doutrinas éticas defendidas ao longo da história, como o utilitarismo de Bentham e Mill (preocupado em proporcionar o máximo de felicidade para o maior número de pessoas), o libertarismo de Locke (defensor do livre mercado) e o imperativo categórico de Kant (focado nos direitos humanos e na dignidade intrínseca dos indivíduos).

Há ação e suspense nas aulas de Sandel, que explica os conceitos a partir de dilemas éticos discutidos pelos alunos. Entre um episódio e outro, eu me desesperava: “Meu Deus! Como é que os filósofos vão responder ao utilitarismo?” ou: “Será que o rapaz pró-meritocracia com relógio de ouro vai aparecer no próximo?”. Passei madrugadas torcendo para Rawls e discordando veementemente de Aristóteles, aquele pateta que prega a distribuição de flautas só para quem sabe tocar bem. Fiquei sem resposta em alguns momentos, revi meus conceitos e, mais importante, consegui fugir dos spoilers.

Sandel submete à argumentação dos alunos uma profusão de casos bizarros, como o clássico dilema do vagão desgovernado.

Nele, você é maquinista de um trem sem freios. No fim da linha, há cinco operários que você fatalmente irá atingir e matar. A única opção é desviar para uma bifurcação onde há apenas um trabalhador nos trilhos. Você: a) decide desviar e matar apenas um operário, b) mantém o curso e mata os cinco.

Adotando a lógica utilitarista, a maioria escolhe desviar o curso. Mais eis que o professor acrescenta outra camada ao problema: imagine que você está no alto de uma ponte e pode parar o trem jogando algo pesado nos trilhos. Por coincidência, há um homem obeso ao seu lado.

Mesmo os utilitaristas mais ferrenhos hesitam em empurrar o homem sob essas novas circunstâncias, ainda que, olhando friamente, o caso também envolva o sacrifício de um indivíduo em prol da maioria. Para piorar, Sandel introduz uma nova variável: e se o gordo fosse o responsável pela sabotagem dos freios?

(Não perca o próximo capítulo.)

Sandel pretende colocar à prova nossas convicções diante de casos concretos, ainda que extravagantes, fazendo-nos reformular ou elaborar melhor nossas concepções.

“O objetivo deste curso é despertar a inquietude da razão e ver até onde ela pode nos levar”, diz o professor. “E se essa inquietude permanecer e continuar incomodando nos dias e anos vindouros, então nós, juntos, conseguimos alcançar algo que não é nada pequeno.”

A série é ideal para alternar com “Cavaleiros do Zodíaco”.

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O Estado de S. Paulo – Caderno 2
12 de janeiro de 2015

por Vanessa Barbara

Em 25 de agosto de 1959, uma semana após o lançamento de “Kind of Blue”, o trompetista Miles Davis foi surrado e detido pela polícia de Nova York.

Ele fumava um cigarro do lado de fora do clube Birdland, após tocar um set de músicas transmitido ao vivo pela emissora de rádio das Forças Armadas. Foi quando um policial (branco) o abordou e ordenou que circulasse. O músico respondeu: “Por quê? Eu trabalho aqui. É o meu nome ali no letreiro, Miles Davis”. O policial disse: “Não interessa, eu falei para você sair daqui. Se não for embora, vou prendê-lo.”

Davis não se moveu e encarou o oficial com um olhar desafiador, enquanto outros dois policiais se aproximavam. Recebeu voz de prisão e, sem haver oferecido resistência, foi golpeado no estômago e na cabeça, diante de dezenas de testemunhas atônitas que saíram do clube após ouvir a confusão. Aos gritos, elas pediam que parassem.

O escândalo foi tamanho que membros da Hodges-Robbins Orchestra, que ensaiavam do outro lado da rua, viraram os microfones para a janela e captaram os policiais xingando Davis de “nigger”.

Sangrando, o trompetista foi conduzido ao 54o. Distrito. Na delegacia, os policiais continuaram com as provocações, esperando que ele reagisse.

Miles Davis foi indiciado por conduta desordeira e agressão, e posteriormente inocentado. Teve sua licença de músico cassada por vários meses e tomou cinco pontos na cabeça. Em sua autobiografia, ele conta que o incidente o tornou de novo amargo e cínico, bem quando ele enxergava mudanças positivas na luta pelos direitos civis. “Mas então fui cercado mais uma vez pelos brancos e aprendi que, quando isso acontece, se você é negro, não há justiça. Nenhuma justiça.”

Cinquenta e cinco anos depois, pouca coisa mudou. Nos últimos meses os americanos voltaram às ruas para protestar contra a violência policial dirigida aos negros, que continuam sendo tratados com truculência. Segundo a ProPublica, em comparação aos brancos, os negros nos Estados Unidos têm 21 vezes mais chances de serem mortos pelas forças de segurança.

Já no estado de São Paulo, de acordo com uma pesquisa da Ufscar, 61% das vítimas da polícia são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29 anos. No Brasil, um jovem negro tem um risco 2,5 vezes maior de ser vítima de homicídio.

Em um show de stand-up, o comediante Chris Rock resumiu bem a situação: “Saí da barriga da minha mãe; a partir daí, tudo o que acontecia no raio de três quarteirões, eu era suspeito”, declarou. “Quando passo na rua, as mulheres já deixam preparado o spray de pimenta, todo mundo esconde as chaves, tranca a porta dos carros, faz posturas de caratê. Eu levanto o olhar e há uma porção de senhorinhas brancas ao telefone – elas irão discar 911 e simplesmente esperar que eu faça alguma coisa.”

“Eu nasci suspeito”, costuma dizer Chris Rock.

Policial: “Todo mundo tem que pagar”

Posted: 10th janeiro 2015 by Vanessa Barbara in O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Metrópole
10 de janeiro de 2014

por Vanessa Barbara
Colunista do Estado

Estávamos na rabeira da manifestação contra o aumento da tarifa, que reuniu cerca de 5 mil pessoas em São Paulo. Depois de sair do Teatro Municipal, o protesto seguiu pela rua da Consolação rumo à Paulista. Na altura do cemitério, começamos a ouvir bombas sendo arremessadas lá na frente, e muita fumaça. Boa parte dos manifestantes correu desesperada para as ruas laterais, a fim de fugir do gás. A turma do fundo continuou parada, segurando uma faixa comprida.

Havia um cordão de policiais bem atrás de nós, fortemente armados, que se colocaram a postos. Levantei as mãos diante deles e disse que ninguém estava fazendo nada ali – o grupo que restou naquele trecho era composto basicamente por pessoas caminhando. Pedi calma. Ainda assim, eles atiraram bombas de gás contra nós. Enquanto fugíamos pela calçada, um policial mirou e lançou duas granadas de gás aos nossos pés – entre os presentes, uma senhora de 60 anos que por acaso é minha mãe.

Também atiraram uma bala de borracha no cotovelo de uma socorrista e três bombas em um homem de muletas que tinha uma perna só. (Não estou brincando.)

Enquanto corríamos pelas ruas laterais, víamos tênis e chinelos pelo caminho – deixados para trás pela multidão em fuga. Vi muros pichados, lixos pegando fogo e uma vidraça de banco quebrada. Mais de 50 pessoas foram detidas e pelo menos 6 feridas, segundo os socorristas do GAPP (Grupo de Apoio ao Protesto Popular).

Um policial justificou a ação da tropa dizendo que “infelizmente meia dúzia de vagabundos começa a quebrar e aí todo mundo tem que pagar”.

Incluindo manifestantes pacíficos, socorristas, jornalistas, idosas e deficientes físicos que em nenhum momento representaram um perigo para as forças da ordem.

Extraordinários

Posted: 5th janeiro 2015 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Caderno 2
5 de janeiro de 2015

por Vanessa Barbara

Conheço um sujeito que ficou temporariamente cego de tanto comer.

O episódio ocorreu há mais de uma década na Cantina e Pizzaria Gordeixos, em Juiz de Fora. A vítima confessa ter se locupletado de massas e pizzas do sistema de rodízio, conversando e mastigando animadamente em vezes alternadas, sem atentar para o perigo que estava por vir.

A cegueira durou cerca de um minuto e foi apavorante. (Ele nega ter solicitado ajuda para continuar a comer sem enxergar.)

Encontrei uma possível explicação para o fenômeno num livro sobre stress (“Why Zebras Don’t Get Ulcers”, do neuroendocrinologista americano Robert M. Sapolsky), no qual se diz que um organismo incapaz de secretar quantidades suficientes de insulina pode favorecer o acúmulo de glucose e ácidos graxos na corrente sanguínea. Isso resultaria em arteriosclerose, falência dos rins e cegueira temporária.

É claro que tal explicação é forçada e não deve sequer fazer sentido. Mas foi uma forma que arrumei para tentar entender os fenômenos fora do comum que me vêm ao conhecimento com frequência cada vez mais alarmante, como esta história contada pelo próprio protagonista do incidente acima:

“Conhecemos um cara que foi perseguido por um tiranossauro na estrada entre Piau e Coronel Pacheco. Ele afirma que só sobreviveu porque seu Chevette estava revisado.”

Aparentemente, os mineiros têm uma propensão extraordinária para protagonizar histórias bizarras. Outro juiz-forano me contou, com riqueza de detalhes, qual era a sensação de ter uma mosca incrustada no olho direito. Ele afirma que estava descendo uma ladeira quando o inseto alado chocou-se contra sua córnea, permanecendo no local até que ele chegou em casa e olhou-se no espelho. A mosca continuava alojada em um canto do olho e teve de ser retirada com cuidado. Cogita-se que uma das asas tenha migrado permanentemente para o cérebro, o que explicaria grande parte de seu comportamento recente.

Foi outro mineiro que me falou de um sujeito que engessou o braço com uma semente dentro, e que, na retirada do gesso, havia uma planta germinando em seu interior.

Conta-se também de uma moça que confundiu areia com pó para cappuccino e tomou uma xícara inteira do que ela suspeitou ser “um café muito ruim”. E de um indivíduo que possuía uma tarântula de estimação e era famoso por andar na beira do Paraibuna tentando catar baratas para a Gorgon. “Eventualmente ele teve notícia de um outro sujeito com uma tarântula, a Pandora, e combinaram de fazer o fantástico encontro de aranhas da Zona da Mata”, conta um professor de filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora (fonte fidedigna, portanto). “Os eventos eram levados muito a sério, já que os animais só tinham essa rara oportunidade para socializar com um membro da mesma espécie.”

Meu voto para 2015: mais mineiros e menos explicações.

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O Cruzeiro do Sul, a Nebulosa Carina e a Via Láctea, vistos do Quênia. Créditos: Babak Tafreshi / National Geographic Society, via Corbis

 

 

 

 

 

The New York Times
28 de dezembro de 2014

Por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil — Meses atrás viajei para Fernando de Noronha, uma ilha na costa nordeste do Brasil, apenas quatro graus ao sul do Equador. No caminho para o restaurante, notei algo estranho no céu noturno: era Ursa Major, uma constelação que os americanos chamam de Big Dipper [algo como “Colherona”] e os britânicos de Plough [“Arado”].

A Big Dipper, comum no norte, é raramente vista no Hemisfério Sul, embora um amigo jure ter avistado a constelação uma vez, do alto de uma montanha em São Paulo. De acordo com ele, estava colada ao horizonte.

Tenho inveja de quem possui a Big Dipper. Também tenho ressentimento daqueles que podem ver a aurora boreal, fenômeno que testemunhei recentemente numa viagem a Islândia.

Mas é só.

O astrônomo neerlando-americano Bart Bok costumava dizer que “o Hemisfério Sul possui todas as coisas boas”. Ele provavelmente se referia ao fato de que temos “os dois melhores aglomerados globulares, as maiores e mais brilhantes galáxias exteriores visíveis a olho nu, a maior nebulosa difusa, a maior nebulosa escura e uma Via Láctea brilhante o suficiente para produzir sombras em certas épocas do ano, a partir de nosso céu escuro e límpido”, nas palavras do jornalista Luke Dodd.

Aqui a porção central da Via Láctea está muitas vezes posicionada exatamente no alto do céu, visível de um horizonte a outro como uma ferida aberta e brilhante. Também temos uma vista exclusiva de duas galáxias vizinhas à nossa, a Pequena e a Grande Nuvem de Magalhães. Ambas têm a declinação — medida astronômica que designa a distância do equador celeste — de quase 70 graus sul e são circumpolares, o que significa basicamente que são visíveis apenas nessa metade do planeta. (Um viva ao Terceiro Mundo!)

É verdade que, assim como a Ursa Major, os habitantes do norte têm para si a constelação Cassiopeia e Vega, a quinta estrela mais brilhante do céu noturno. Vega foi usada como base para a escala de magnitude aparente, que mede o brilho das estrelas, e para calibrar telescópios.

Ainda assim, o Hemisfério Sul detém as três estrelas mais brilhantes do céu noturno: Sirius, Canopus e Alpha Centauri. Canopus pertence à constelação Carina, notória por dois motivos: a Nebulosa Carina, quatro vezes maior e mais brilhante do que a Nebulosa de Orion, e o sistema estelar Eta Carinae, que irá explodir como supernova ou hipernova em algum momento entre hoje e os próximos mil anos. (Um cientista falou à BBC que a explosão poderá ser tão intensa a ponto de ser vista durante o dia, e de permitir a leitura de um livro com seu brilho durante a noite.) Alpha Centauri e Beta Centauri, esta última a décima-primeira estrela mais brilhante, são chamadas de “Guardiãs da Cruz”, pois apontam para a constelação Crux (popularmente conhecida como Cruzeiro do Sul). Crux é a menor das 88 constelações, mas uma das mais distintivas. É visível em praticamente qualquer época do ano em todo o Hemisfério Sul.

Junto à borda leste de Crux se localiza a Nebulosa do Saco de Carvão, um trecho profundamente escuro onde nascem estrelas. Nas proximidades do Saco de Carvão pode-se enxergar a Caixinha de Joias, um aglomerado de aproximadamente cem estrelas vermelhas, brancas e azuis, visíveis com a ajuda de binóculos. Há também Omega Centauri, o maior e mais brilhante aglomerado globular, com suas estrelas nas cores topázio, laranja e vermelho.

Constelações como Sagittarius e Scorpius são vislumbradas com grande facilidade no Hemisfério Sul; esta última se localiza no centro da Via Láctea, bem no alto do céu de São Paulo. É possível identificar o escorpião do aguilhão às quelíceras, incluindo a supergigante vermelha Antares, localizada no coração do animal.

Neville H. Fletcher, hoje professor emérito da Australian National University, disse certa vez: “No campo da astronomia costuma-se observar — geralmente são invejosos habitantes do norte — que Deus, ao criar o universo, localizou perversamente as regiões mais interessantes da galáxia no Hemisfério Sul, mas todos os astrônomos no Norte”. Como resultado, pode ser mais difícil identificar daqui as formas pelas quais as constelações foram originalmente nomeadas.

Um exemplo clássico: Orion, o caçador, não está orgulhosamente de pé, mas dando uma estrela. Também o corajoso leão da constelação Leo parece mais uma tartaruga de ponta-cabeça. Ou talvez uma lâmpada mágica. Os irmãos de Gemini estão em queda livre. Boötes, o trabalhador com arado, e o cão de Canis Major estão ambos tropeçando. De modo que mais criatividade é exigida de nós, sul-americanos, africanos, australianos, neozelandeses e outros sortudos habitantes do Hemisfério Sul.

Há uma citação atribuída a Bart Bok, que nos anos 50 deixou Harvard pela Austrália e às vezes dava palestras a membros da Royal Astronomical Society, de Londres, que resume bem a questão: “Cavalheiros, vocês vivem sob o lado errado do céu!”.

 


Colunista do jornal brasileiro O Estado de São Paulo, editora do site literário A Hortaliça e colunista de opinião do NYT.

Este texto foi publicado em inglês no The New York Times do dia 29 de dezembro de 2014. Tradução da autora.

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The Southern Cross, Milky Way, Large Magellanic Cloud and Carina Nebula, viewed from Kenya. Credit: Babak Tafreshi/National Geographic Society, via Corbis

 

Stargazing is better on the Southern Hemisphere

The New York Times
28 December 2014

by Vanessa Barbara
Contributing op-ed writer

SÃO PAULO, Brazil — EARLIER this year, I visited Fernando de Noronha, an island off the northeastern coast of Brazil, only four degrees south of the Equator. When I was walking to a restaurant, I noticed something strange in the night sky: It was Ursa Major, the constellation that Americans call the Big Dipper and the British call the Plough.

The Big Dipper, commonplace in the north, is rarely seen in the Southern Hemisphere, though a friend of mine swears he saw it once from the top of a mountain in São Paulo. According to him, it was just above the horizon.

I’m jealous of those who have the Big Dipper. I also envy those who get to see the Northern Lights, which I saw recently during a trip to Iceland.

But that’s all.

The Dutch-American astronomer Bart Bok used to say: “The Southern Hemisphere holds all the good stuff.” He was probably referring to the fact that we have “the two best globular clusters, the largest and brightest naked-eye external galaxies, the largest diffuse nebula, the largest dark nebula and a Milky Way bright enough under our dark transparent skies to cast shadows during certain times of the year,” in the words of the journalist Luke Dodd.

Here the central parts of the Milky Way are at times directly overhead, visible from horizon to horizon, like an open, brilliant bruise. Here we also have an exclusive look at two of our neighboring galaxies, the Small and Large Magellanic Clouds. They both have a declination — the astronomical measurement of the distance from the celestial equatorof close to 70 degrees south and are circumpolar, which means that they are mostly visible only from this half of the planet. (A high-five to the third world!)

It is true that, as well as Ursa Major, northerners have the constellation Cassiopeia and Vega, the fifth-brightest star in the night sky. Vega has been used as the baseline for the apparent magnitude scale, which describes the brightness of stars, and to calibrate telescopes.

Yet the Southern Hemisphere claims the three brightest stars of the night sky: Sirius, Canopus and Alpha Centauri. Canopus belongs to the Carina constellation, notorious for two things: the Carina Nebula, four times as large and even brighter than the famous Orion Nebula, and the star system Eta Carinae, which is expected to burst as a supernova or hypernova sometime in the next thousand years. (A scientist told the BBC that the explosion would be so bright that you would see it during the day, and you could even read a book by its light at night.) Alpha Centauri and Beta Centauri, the 11th-brightest star, are called “The Pointers,” as they form a line in the sky to the constellation Crux (the Southern Cross). Crux is the smallest of all 88 constellations but one of the most distinctive. It is visible at practically any time of the year in all of the Southern Hemisphere.

Along the eastern edge of Crux is the Coalsack Nebula, a deep dark patch where stars are born. Near the Coalsack is the Jewel Box, a cluster of roughly 100 stars colored red, white and blue, and visible with a pair of binoculars. There’s also Omega Centauri, the largest and brightest globular cluster in the sky, with its topaz, orange and red stars.

Constellations like Sagittarius and Scorpius are best seen in the Southern Hemisphere; the latter lies within the center of the Milky Way, high in São Paulo’s sky. It is possible to see the scorpion from its sting to its claws, including the red supergiant star Antares at its heart.

Professor Neville H. Fletcher, now an emeritus professor at Australian National University, once said: “In astronomy circles it is often remarked — mostly by envious northerners — that God, in creating the universe, perversely located all the most interesting regions of our galaxy in the Southern Hemisphere, but all the astronomers in the north.” As a result, it can be more difficult down here to pick out the shapes for which the constellations were originally named.

The classic example: Orion, the hunter, is not proudly standing on his feet, but rather doing a cartwheel. Also, the brave lion from the constellation Leo looks more like an upside-down turtle. Or maybe a magical lamp. The twins of Gemini are falling to the ground. Boötes, the plowman, and the dog from Canis Major are both tripping. So more creativity is required of us South Americans, Africans, Australians, New Zealanders and other lucky inhabitants of the Southern Hemisphere.

There’s a quote attributed to Mr. Bok, who left Harvard in the ’50s for Australia but often lectured to members of the Royal Astronomical Society in London, that sums it up nicely: “Gentlemen, you live under the wrong half of the sky!”

O Estado de S. Paulo – Caderno 2
29 de dezembro de 2014

por Vanessa Barbara

Cabe frisar que o objetivo desta crônica não é gabar-se da genialidade de minha família e amigos, tampouco acabrunhar os leitores que porventura não compreenderem o escopo e a grandiosidade dessas maravilhas inventivas que irei aqui descrever.

Meu único intuito é presentear a humanidade com ideias revolucionárias que irão proporcionar-lhes conforto, praticidade e talvez a paz mundial, não nesta ordem, mas com razoáveis chances de sucesso. Se não estiverem sentados, por favor tomem seus assentos para evitar síncopes emocionais.

A primeira invenção foi desenvolvida pelo meu irmão Marcos, autor de “Anão vestido de palhaço mata oito” (editora Rocco). Ele é idealizador de um produto chamado Marcondas, o micro-ondas que gela. Trata-se de um segredo industrial que dispensa maiores detalhes.

Ainda no âmbito doméstico – “Antes de iniciares a tarefa de mudar o mundo, dê três voltas dentro de sua casa” –, temos aqui outra invenção de um membro da família. Ele nos deu a graça de apresentar-nos o Gigio Home Chicken Roaster, um produto de design clean, com uma porta de vidro (pense num climatizador de vinhos), que traz para o conforto de sua casa as TVs de frango assado das padarias. Aos donos de cães, a oportunidade adicional de fornecer entretenimento hipnótico e exclusivo ao elemento canino. O slogan: “Diversão para o seu pet, nutrição para a sua família”.

De minha própria e genial lavra temos algo que vai abalar o turismo tal qual o conhecemos: trata-se do Marcúnico, o bilhete único europeu. (O nome surgiu da certeza de que o meu irmão irá fatalmente apoderar-se dos royalties, então já vamos facilitar e botar tudo em seu nome.)

O Marcúnico (Le Marcunique, Mark-o-nic, Il Marconico, Das Markeinzige) é um bilhete de transporte compatível com todas as capitais europeias, incluindo Bratislava, Nicósia e Tbilisi. O turista adquire seu Marcúnico e o carrega em euros; daí pra frente, não precisa mais se preocupar em descobrir quais as tarifas e como funciona o sistema de transporte público da cidade onde se encontra. Basta encostar seu Marcúnico nas catracas de ônibus ou trens e debitar a quantia equivalente a uma passagem. (Alguns invejosos observaram que “isso já existe e se chama cartão de crédito”, mas não vamos nos deixar abalar pelo derrotismo daqueles que não creem.)

O comercial do Marcúnico mostraria um mochileiro com ar exploratório (trilha sonora do The Doors) andando por uma rua europeia, enquanto portas automáticas se abrem conforme ele passa.

Já a franquia “Sorvetes Que Parecem Perucas” foi criada em parceria com meu amigo Paulo e pretende aniquilar o conceito de bola de sorvete, transmutando-a em topetes, black power e moicanos. E o restaurante por quilo “Coma o Quanto Quiser em Sete Minutos” é exatamente o que diz ser.

Acho que já basta de ideias novas para 2015.

Gente de bem

Posted: 22nd dezembro 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Caderno 2
22 de dezembro de 2014

por Vanessa Barbara

Quinta-feira passada, em Santa Cecília, um rapaz de cerca de 30 anos, descalço e de bermuda, subiu no teto de um ônibus da linha Lapa 875T. O veículo parou, e outro ônibus colou atrás. O rapaz prontamente fez uso do engavetamento, saltando para o o teto do coletivo seguinte, um Aclimação 508L. Lá do alto, passou a gritar e a interagir com as pessoas na rua, num provável surto psiquiátrico. Transeuntes berraram para que ele pagasse a passagem em vez de ficar pegando carona, e o chamaram de folgado e vagabundo. Rapidamente formou-se uma aglomeração de pessoas filmando com os celulares. A certa altura, ele tirou a roupa e correu pelado, depois tornou a se vestir. Deitou no teto do ônibus e ficou falando coisas aleatórias.

As pessoas ao redor continuaram a xingá-lo. Formaram uma rodinha e pediram que descesse, pois assim poderiam enchê-lo de porrada. Uns caras prometeram trazer uns paus e uma mulher tentou dar uma vassourada no rapaz. Um senhor quase conseguiu puxá-lo pelo pé com violência. A galera do linchamento aumentou; defendiam os direitos de circulação dos trabalhadores de bem e prometiam surrá-lo. (O trânsito já estava liberado e os passageiros do ônibus passaram para o de trás, se é que isso importa.)

Uma moça interveio e disse que não deixaria ninguém machucar o rapaz. A turba passou a gritar com ela, dizendo que defendia “coisas erradas”, ao que ela respondeu que ninguém ali tinha o direito de bater em ninguém, que a polícia já havia sido acionada e que o rapaz devia estar doente. Foi quando um jovem apareceu e disse que conhecia o sujeito. “Mora no meu prédio, é pai de família e advogado. Ele vai trabalhar todo dia de manhã, de terno. Tentei falar com ele, mas olhou para mim e não me reconheceu.”

A turba recuou. Tentaram imaginar o rapaz surtado de terno, gente de bem, trabalhador, pai de família.

A polícia chegou quando o episódio já se arrastava havia vinte minutos. A multidão aplaudiu, e alguns sugeriram que era para “descer o cacete”. Enquanto os policiais estudavam o que fazer, o rapaz fez menção de pular de cabeça. Ouvi gritos de: “Pula! Pula!”. A polícia arrumou uma escada e encostou na parte traseira do ônibus. Numa demonstração de calma e sangue-frio, o comandante subiu de mansinho, sem que o rapaz percebesse.

Enquanto ele gritava e ameaçava pular, o policial o agarrou por trás e o imobilizou. Foram necessários mais dois soldados para contê-lo. Eles o algemaram, desceram-no até a rua e o colocaram na viatura.

Foi quando reparei num senhor que havia chegado há pouco. Era o pai do rapaz – paralisado e confuso. Disse que nunca tinha visto o filho naquele estado, que ele não tinha histórico psiquiátrico. Uma vizinha, gentil, telefonou para a mãe do rapaz e informou que estavam todos indo para a Santa Casa.

(Atrás de nós, um sujeito falou que esperava que o rapaz apanhasse muito na viatura.)

Um Feliz Natal para toda a gente de bem.