O Estado de S. Paulo – Caderno 2
15 de dezembro de 2014

por Vanessa Barbara

No início do livro “Information Doesn’t Want to be Free”, o escritor Cory Doctorow avisa: “Mesmo se eu estiver errado, prometo estar errado de uma forma interessante e bem informada”.

A obra, lançada em novembro, foi citada há duas semanas pela colunista do Estadão Lúcia Guimarães, que expôs uma das ideias principais do autor: quanto mais as editoras restringem o conteúdo das obras com a tecnologia DRM, mais as plataformas de venda controlam o mercado editorial. Sempre que alguém põe um cadeado em algo que lhe pertence e esconde a chave, esse cadeado não está lá para o seu benefício. Tais barreiras não almejam proteger os direitos autorais, mas os direitos dos intermediários.

Na introdução do livro, a cantora e compositora americana Amanda Palmer argumenta que bloquear conteúdo na internet faz tanto sentido quanto obrigar artistas de rua a usar mordaças, até que um transeunte interessado feche contrato com um intermediário que tenha permissão para liberar o artista por alguns minutos, após os quais ele volta a ser amordaçado. Dessa forma, o controle é retirado das mãos dos criadores e do público e é cedido completamente a terceiros.

Como escritor de ficção científica, Cory Doctorow entende que passamos a viver em um novo mundo, no qual as regras mudaram de forma permanente. Nunca foi tão fácil copiar filmes, livros, fotografias e compartilhá-los na rede. Nenhum bloqueio eletrônico poderá mudar isso – quanto mais mecanismos de limitação forem inventados, mais fortes serão os esforços para quebrá-los. As travas de proteção dos livros não são apenas tentativas desesperadas de regular o mercado, mas também um retrocesso: sob essa lógica, não poderiam existir bibliotecas nem a possibilidade de comprar um livro e emprestá-lo para outras pessoas.

Doctorow defende uma política regulatória que faça distinção entre a atividade de distribuição em escala industrial e as manifestações culturais. Diz que só é possível regular de forma justa o mercado se o fizermos sem pensar apenas no lucro das editoras e grandes estúdios. É essencial ampliar o acesso à informação e assegurar que os benefícios se estendam a todos, o que apenas acontecerá se a infraestrutura for livre e equânime.

A mesma posição é defendida pelo professor de direito Lawrence Lessig, idealizador do Creative Commons, um sistema de copyright alternativo que dá mais liberdade aos criadores para distribuir suas obras. Ele alega que a Constituição americana pensou o copyright tradicional “para promover o progresso da ciência e das artes úteis”, ou seja, tudo o que serviria a outros propósitos não se encaixaria na lei.

Diante desse novo cenário, resta dar ouvidos a um autor de histórias de ficção científica: daqui pra frente, tudo aquilo que for feito para manter os privilégios de um setor distributivo e trancar para fora a grande maioria está fadado a fracassar.

Anedotas de passagem

Posted: 9th dezembro 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Caderno 2
8 de dezembro de 2014

por Vanessa Barbara

Outro dia ouvi uma história bizarra do motorista do 118C que eu não sei se é verdadeira, mas achei que devia compartilhar com os senhores:
Tinha um rapaz sentado no banco preferencial, aí uma galera que estava ao redor começou a criticá-lo porque havia uma idosa de pé. Alguém chamou o cara de folgado. Aí o sujeito desatarraxou a prótese da perna, levantou do assento e bradou: “Agora a senhora por favor segura a minha perna”.

*

Diálogo aleatório
Motorista: “Se eu tivesse dinheiro, eu compraria um guincho”.
Cobrador: “Sabe o que a gente devia fazer? Comprar uns duzentos bondinhos. Andar a 10 quilômetros por hora seria muito legal”.
(O espírito empreendedor desses dois mandaquienses passou de guincho a pizzaria e a loja de lençóis em apenas dez minutos.)

*

Passageira: “Este ônibus passa na Inajar de Souza?”
Cobrador (com ares filosóficos): “Olha, pode passar, pode não passar… A gente nunca sabe o futuro, não é?”

*

Em Fernando de Noronha, a passagem de ônibus custa 3 reais – como em São Paulo. Há somente uma linha com a gigantesca frota de dois micro-ônibus que vão e vêm do Porto até a praia do Sueste, num total de 7 quilômetros percorridos. Ao contrário do que se imagina, esse preço vale para todos – não há bilhete com desconto para os moradores da ilha.

Como, ainda por cima, o coletivo só passa de meia em meia hora, os nativos às vezes optam por pegar carona com os amigos ou nas caminhonetes de transporte gratuito de dois restaurantes localizados na Vila do Boldró.

Na eventualidade de uma carona, todo mundo que está no ponto é convidado a subir na boleia, instaurando-se uma oportunidade valiosa de socialização. Foi na traseira de uma dessas caminhonetes que um noronhense de 64 anos me contou que os hospitais da ilha não fazem partos – todas as mulheres grávidas têm que ir para o Recife ao completar seis ou oito meses de gestação. Outro rapaz me confidenciou o boato da vez: de que o cachê pago aos integrantes da Banda Calypso por um show na ilha, no réveillon de 2013, teria saído da verba destinada a uma escola local.

Apesar de haver apenas duas vans, os motoristas nunca eram os mesmos. Em Sueste, encontrei um sujeito que estava aprendendo a lidar com as marchas do veículo, tomando lições de um amigo com o ar de quem havia se voluntariado para a tarefa.

*

Comentário de uma passageira: “Se o Marcos comer meu miojo de tomate, eu mato ele”.

*

(Colaboração do leitor Bruno Scomparin)
Frase ouvida de uma jovem, em um ônibus de Fortaleza: “Como assim, você não sabe o que é anacoluto?!”.

Ninguém

Posted: 5th dezembro 2014 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários

The International New York Times
4 de dezembro de 2014

Por Vanessa Barbara

No mês passado, mais de 142 mil brasileiros assinaram uma petição no site da Casa Branca. Eles cobram um posicionamento de Barack Obama quanto ao “avanço do comunismo bolivariano promovido pela administração de Dilma Rousseff”.

Ela acaba de ser reeleita com uma margem estreita de votos: 51,4% contra 48,5% para o candidato mais conservador, Aécio Neves. Os signatários da petição alegam que a eleição não foi completamente democrática, pois as urnas eletrônicas não seriam confiáveis. Eles também afirmam que os pobres votaram em Dilma apenas porque são altamente dependentes dos programas sociais do governo, como o Bolsa Família, um subsídio mensal criado para reduzir os índices de pobreza. Aqueles que exigem a intervenção de Obama temem que nosso país se torne uma nova Venezuela, e se consideram “os defensores da democracia e da liberdade no Brasil”, a despeito de um pequeno detalhe: alguns querem a ditadura militar de volta.

De acordo com uma pesquisa recente do Datafolha, em comparação ao ano passado, mais brasileiros se identificam com ideais de direita, como a diminuição das restrições para porte de arma. Embora 58% acreditem que a pobreza está ligada à falta de oportunidades, 37% insistem que a preguiça é a principal raiz do problema. Esse foi um ponto crucial do debate na última eleição: um lado defendia a meritocracia e a redução dos subsídios do governo; o outro, mais investimentos para diminuir a desigualdade.

A nova direita argumenta que o governo do PT é corrupto, em referência a uma série de escândalos de suborno e compra de votos ocorridos na última década. Por esse motivo pedem pelo impeachment de Dilma. Ela seria substituída pelo vice Michel Temer, de um partido de centro-direita chamado PMDB.

Há quem defenda que é preciso depor à força esse governo corrupto. Embora a ideia seja eventualmente devolver o poder aos civis e convocar novas eleições, essas pessoas falam nostalgicamente sobre a época da ditadura, quando, nas palavras de um deputado federal, “não se ensinava sobre homofobia e sexo seguro, se ensinava português e matemática”.

Ambos os grupos pró-impeachment organizaram protestos em São Paulo. Em 1 de novembro, 1,2 mil pessoas se reuniram no Masp; mais de 5 mil compareceram no segundo protesto, duas semanas depois. O mais recente, ocorrido no sábado passado, atraiu 500 manifestantes.

A corrupção não é o principal motivo de preocupação do grupo. Assim como nos anos 60, nossas classes média e alta temem a ameaça comunista. Alguns dizem que esta é a mesma atmosfera que levou ao golpe militar de março de 1964, quando um presidente de esquerda foi tachado de socialista, deposto e substituído por uma ditadura militar que durou mais de vinte anos.

Em uma das marchas, os participantes entoaram fanaticamente o Hino Nacional, alegando representar o único patriotismo de verdade. Havia até neonazistas no meio, e um skinhead portando um soco inglês. Transeuntes desavisados eram hostilizados só por vestirem roupas vermelhas. Um deles, um advogado de 33 anos, vestia uma camiseta com os rostos de Marx, Lênin, Fidel, Mao e Stálin bebendo alegremente. Alguém lhe gritou, de forma um tanto quanto nonsense: “Você está num país livre, vai pra Cuba”.

Em outro incidente, um político do PCB estava num bar usando uma camiseta com a foice e o martelo estampadas quando o protesto passou. Um homem começou a xingá-lo e perguntou se ele tinha recebido um sanduíche de mortadela do governo. “Paga um lanchinho de mortadela que ele já passa para o lado de cá”, disse o homem sarcasticamente, chamando o político de “comedor de mortadela”. (No Brasil, a mortadela é considerada uma comida de pobre.) Outro homem gritou: “Dá o seu apartamento pra mim, cara! Você não quer dividir as coisas?”.

A verdade é que o PT de Dilma está no poder há mais de onze anos e até agora falhou em estabelecer um mero vislumbre da temida ditadura do proletariado. Pelo contrário: o partido, outrora radical, tem se tornado cada vez mais centrista, adotando muitas das práticas de seus rivais neoliberais. Empregou políticas econômicas ortodoxas para manter a estabilidade do mercado; não chegou a estatizar coisa alguma e inclusive favoreceu a privatização e concessão de portos, estradas e aeroportos; entre os ministros nomeados para o ano que vem há uma lobista do agronegócio e inimiga dos ambientalistas, Katia Abreu, na pasta da Agricultura, e um banqueiro conservador, Joaquim Levy, no Ministério da Fazenda. Este ano, o lucro dos bancos privados aumentou 26,9%. De acordo com o ranking “Top 1.000 World Banks”, o Brasil está em sétimo lugar em lucros bancários.

Sendo assim, seria mais seguro acusar Dilma de centrista, em vez de bolchevique.

Apesar disso, muitos ainda temem o bicho-papão comunista e estão dispostos a tomar providências, seja participando de protestos de rua, recorrendo às Forças Armadas, organizando petições aos Estados Unidos ou mesmo mudando de país. “O povo brasileiro está descrente”, disse um ator durante um evento meses atrás. “Todos os dias eu vejo gente querendo se mudar para Miami.”

Se Obama não vai até eles, eles irão até Obama.


Este texto foi publicado em inglês no International New York Times do dia 4 de dezembro de 2014. Tradução da autora.

The International New York Times
Dec 4th, 2014

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — Last month, more than 142,000 Brazilians signed a petition on the White House website. They asked President Obama to take a stand against the “Bolivarian Communist expansion in Brazil promoted by the administration of Dilma Rousseff.”

She had just been re-elected president by a narrow margin: 51.4 percent against 48.5 percent for the more conservative candidate, Aécio Neves. The petitioners claim that the election wasn’t fully democratic, since electronic voting machines aren’t reliable. They also say that poor people voted for Ms. Rousseff only because of their heavy dependence on social welfare programs, such as Bolsa Família, a monthly family allowance designed to reduce poverty. Those who demand Mr. Obama’s intervention fear that our country will soon become a new Venezuela and call themselves “the promoters of democracy and freedom in Brazil” though, in a slight contradiction, some of them want the military dictatorship back.

According to a recent poll by Datafolha, more Brazilians identify with right-wing ideas, like looser gun restrictions, than they did last year. Although 58 percent of Brazilians believe that poverty relates to a lack of opportunities, 37 percent insist that laziness is the main cause of it. This was a major point of debate during the election: One side argued for meritocracy and less government aid; the other, for more public spending to reduce inequality.

The new right wing is now arguing that Ms. Rousseff’s government is corrupt, pointing to a number of vote-buying and bribery scandals over the last decade. As a result, some call for Ms. Rousseff’s impeachment. She would then be replaced by Vice President Michel Temer, from a center-right party called PMDB (Brazilian Democratic Movement Party).

Others say we need to remove our corrupt government by force. Although the idea is eventually to hand the power back to civilians and hold a new election, they talk nostalgically about the military period, when schools “didn’t teach about homophobia and safe sex, they taught Portuguese and math,” as one congressman said.

Both groups have organized street rallies in São Paulo. On Nov. 1, 2,500 people gathered, and 5,000 showed up for a second rally two weeks later. The most recent, last weekend, had only about 500.

Corruption is not what the right wing fears most. Just as in the ’60s, the Brazilian middle and upper classes are intensely afraid of the Communist threat. Some say this was the same atmosphere that led to the military coup in March 1964, when a left-wing president was labeled a Socialist, deposed and replaced by a military dictatorship that lasted more than 20 years.

At one rally, people fanatically chanted the national anthem, calling themselves the only true patriots. There were even some neo-Nazis in the mix, and a skinhead with brass knuckles. Unwary passers-by were yelled at just for wearing red clothes. One bystander, a 33-year-old lawyer, had a T-shirt that portrayed Marx, Lenin, Castro, Mao and Stalin merrily drinking. Someone told him, rather nonsensically, “You’re in a free country, go to Cuba.”

In another incident, a politician from the Brazilian Communist Party stood in a bar wearing a hammer and sickle T-shirt when the rally passed by. A man started shouting to him and asked if he had a mortadella sandwich from the government. “Just give him a mortadella sandwich and he will turn to our side,” said the man sarcastically, calling the politician a “mortadella-eater.” (In Brazil, mortadella is regarded as a poor man’s food.) Another one yelled: “Give me your apartment! Don’t you want to share things?”

The truth is that Ms. Rousseff’s Workers Party has been in power for more than 11 years and has so far failed to establish even a hint of the dreaded dictatorship of the proletariat. On the contrary: The once radical party has come to look increasingly centrist, adopting many of the practices of its neoliberal rivals. It has employed orthodox economic policies in order to maintain market stability; it hasn’t nationalized any assets but rather favored the privatization of ports, highways and airports; and Ms. Rousseff’s new ministers include an ally of agribusiness and nemesis of environmentalists, Katia Abreu, as agriculture minister, and a fiscally conservative banker, Joaquim Levy, as finance minister. This year, the profits of Brazilian private banks increased 26.9 percent. According to the “Top 1,000 World Banks” survey, Brazil is ranked seventh in banking profits.

So it’s safer to say that Ms. Rousseff is more of a centrist than a Bolshevik.

In spite of that, lots of people keep on fearing the Communist boogeymen and are ready to take action on this matter, either through street rallies, pleas to the army, petitions to the United States or even by moving out of the country. “Brazilian people are feeling hopeless,” said an actor at an event a while ago. “Every day I see people wanting to move to Miami.”

If Mr. Obama won’t come to them, they will go to Mr. Obama.


O Estado de S. Paulo – Caderno 2
1 de dezembro de 2014

por Vanessa Barbara

Na semana passada, a Companhia do Metropolitano de São Paulo vetou a propaganda do livro “Mascarados” (Geração Editorial), escrito pela pesquisadora da Unifesp Esther Solano e pelos jornalistas Bruno Paes Manso e Willian Novaes. A obra faz uma análise crítica das origens e motivações da tática black bloc no Brasil.

O departamento de vendas do Metrô barrou o anúncio sob o argumento de que o livro poderia “incitar a violência”.

A recusa se apoiou no Regulamento para Exploração de Mídias em Áreas e Equipamentos de Propriedade da companhia, que proíbe a veiculação de mensagens publicitárias “que infrinjam a legislação vigente, atentem contra a moral e os bons costumes […] ou que possam suscitar comportamentos inadequados”.

O problema é que não se trata de um libelo em favor dos black blocs, mas de uma obra analítica alicerçada em entrevistas e em uma extensa pesquisa de campo realizada por uma socióloga. Segue a tradição do livro “Black Blocs” (Veneta), do cientista político canadense Francis Dupuis-Déri, considerado um dos primeiros estudos sérios sobre o assunto.

Em “Mascarados”, Solano diz que o objetivo do livro é justamente se contrapor a uma sociedade que não escuta e prefere reproduzir estereótipos, deixando-se arrastar pelo argumento fácil, a intolerância, a histeria e a trivialidade. “Um dos erros mais grotescos de nossa sociedade é proclamar que o outro não tem nada a dizer”, escreve Solano, que, aliás, afirmou que pessoalmente não concorda com a tática. Mas isso não a impede de refletir sobre o tema.

Ao longo do livro, a pesquisadora se mostra preocupada com a falta de diálogo entre os diversos atores das manifestações populares (mídia, policiais, políticos, manifestantes). “Se o sujeito não participa de meu modo de vida”, ela declara, reproduzindo um pensamento corrente, a saída é “esvaziá-lo de conteúdo, como se fosse um robô que, no caso do black bloc, só sabe depredar, e no caso da Polícia Militar, só sabe bater.” Sua principal preocupação é ouvir sem preconceitos, tentar compreender outros pontos de vista e, dessa forma, enriquecer o debate.

O canadense Dupuis-Déri, que esteve recentemente em São Paulo para um debate na Bienal Internacional do Livro, também defende a importância de examinar a sério as ideias e a lógica dos black blocs, em vez de associá-los de forma indiscriminada à baderna e à irracionalidade destruidora. “Dizer que eles são jovens meramente apolíticos e irracionais é, na melhor das hipóteses, preguiça intelectual e, na pior, uma mentira política”, afirmou.

Curioso é que um livro desses, que convida ao diálogo e à exposição de pontos de vista divergentes à maioria, seja julgado e censurado de antemão – como se a própria obra antecipasse o preconceito de quem se recusa a abri-la.

Não percebem que, nas palavras de Solano, “impor um padrão imutável de entender a vida é mais uma forma de violência”.

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Posted: 30th novembro 2014 by Vanessa Barbara in Sem categoria

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O Estado de São Paulo – Caderno 2
24 de novembro de 2014

por Vanessa Barbara

“Esse pouso do robô Philae num cometa a 500 milhões de quilômetros da Terra é a coisa mais incrível que a humanidade produziu desde o gol olímpico do Marcos Assunção contra o Atlético Mineiro em 2010”, declarou, no Facebook, o jornalista Matheus Pichonelli.

E eu diria mais: fazer a baliza e estacionar uma geringonça do tamanho de uma máquina de lavar num cometa de verdade me parece algo tão inacreditável quanto a existência da pasta de dente com listras refrescantes. Pertence ao reino dos ornitorrincos, do catupiri, das auroras boreais, do Louis Armstrong. E da Muralha da China.

De vez em quando acontecem essas coisas: a gente acha que já viu de tudo, que está velho demais para se surpreender com a vida desde que assistiu àquele vídeo do indiano subindo no teto de um ônibus com uma moto na cabeça, aí vem uma sonda e pousa num cometa. E você se sente uma criança de quatro anos diante de uma girafa. (O que diabos está havendo? Que tipo de feitiçaria é essa?)

A primeira reação ao receber uma notícia desse porte é declarar peremptoriamente: “É montagem”. Ainda que existam fotos do pouso do Philae, não há dúvidas de que se trata de uma espetacular lorota, tal qual a primeira caminhada de Neil Armstrong e a enurese de Buzz Aldrin na Lua. (Dizem que ele foi o primeiro homem a fazer xixi na superfície lunar, dentro do traje espacial e diante de uma plateia de 600 milhões de espectadores.) Conheci um sujeito que, apresentado a fatos assombrosos de natureza diversa, não hesitava em proclamar: “Isso aí é grupo”. Tudo fazia parte de uma conspiração para desmoralizá-lo. E é bom não acreditar em nada porque vão é rir da sua cara.

Sondas não pousam em cometas, assim como eletricidade é bruxaria e não existe mofo milagroso que cura infecções. Eu, se vivesse na Idade das Trevas, passaria os dias excomungando os ímpios e fazendo troça de quem garante que a Terra gira em torno do Sol – e por falar nisso, ninguém ainda conseguiu me convencer de que as estrelas não estão realmente grudadas no firmamento como numa pintura. Se o nosso sol é mais brilhante que Antares, é porque evidentemente é maior, e ponto.

A verdade é que até hoje fico muitíssimo espantada com espetáculos de mágica, sendo absolutamente incapaz de entender como são feitos, mesmo quando se tratam de truques com baralhos falsos ou moedas com duas caras – eu me levanto e aplaudo com gosto, olhando feio para as criancinhas entediadas.

Mesmo sabendo que a sonda quicou antes de pousar, depois ficou sem bateria e talvez não volte mais a funcionar, as notícias da Philae podem ser resumidas num adjetivo que as nossas mães usavam quando tomávamos um susto: “Não foi nada, você só está impressionada”.

Pois bem, Agência Espacial Europeia: estou impressionada. Você é tão lendária quanto o gol do Marcos Assunção – e olha que eu nem sou palmeirense.

O Estado de São Paulo – Caderno 2
17 de novembro de 2014

por Vanessa Barbara

Existem muitos estudos científicos relevantes na academia, como aquele que usou o magnetismo para levitar um sapo e um outro que estudou os índices de fricção entre sapatos e cascas de banana – ambos ganharam o IgNobel –, mas meu preferido foi conduzido pelo psicólogo social Paul Piff, da Universidade da Califórnia, em meados de 2012. Gerou uma das palestras mais populares do circuito TED: “Does money make you mean?” [O dinheiro te torna mau?].

Piff projetou uma partida manipulada de Banco Imobiliário em que certos jogadores, escolhidos aleatoriamente, começavam com uma série de vantagens: o dobro do dinheiro inicial, jogar dois dados em vez de um só e a certeza de ganhar duzentos dinheiros ao passar pelo ponto de partida (em vez de cem).

Por meio de câmeras ocultas, Piff notou que os jogadores “ricos” se tornavam cada vez mais agressivos e ostentatórios, e menos sensíveis à condição do oponente depauperado. Pior: após o término da partida, chegavam a atribuir a vitória a suas habilidades pessoais, mesmo sabendo que o jogo havia sido manipulado desde o início para que eles tivessem mais oportunidades de ganhar.

O objetivo do experimento era mostrar como a mente processa o conceito de vantagem numa sociedade hierárquica como a nossa – na qual poucos têm acesso à maioria dos recursos e por isso tendem a perpetuar seus privilégios.

Em cerca de trinta estudos conduzidos ao longo de sete anos, Piff e sua equipe mostraram que os mais pobres costumam ser mais generosos com desconhecidos e que os mais ricos são três ou quatro vezes mais propensos a trapacear. Motoristas de carros chiques estariam mais inclinados a infringir leis de trânsito e a desrespeitar pedestres, talvez numa tentativa de proteger seu patrimônio. Ricos mentiriam mais em negociações e aprovariam condutas de trabalho antiéticas. Piff chegou a comprovar que, na comparação, os mais abastados tendem a literalmente tirar mais doces de crianças, surrupiando guloseimas de uma jarra.

A principal conclusão da pesquisa é: conforme cresce a riqueza material de um indivíduo, seus sentimentos de compaixão e empatia diminuem, ao passo que aumenta seu egoísmo. Quanto mais rico, mais merecedor dessa riqueza você se sente. Piff fala em uma “ideologia de interesse próprio” e de pessoas que se colocam acima das demais, considerando ética a busca de sucesso pessoal mesmo em detrimento dos outros.

Em certos círculos, os achados de Piff foram considerados – desculpem! – pífios, sobretudo por atenderem a uma agenda esquerdista; no entanto, a arrogância com que alguns dos detratores se expressaram serviu para confirmar a premissa.

É algo que F. Scott Fitzgerald já havia notado em O Grande Gatsby, quando falou em vozes cheias de dinheiro e pessoas que esmagavam “coisas e criaturas e depois se protegiam atrás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração”.

Histórias de perder

Posted: 10th novembro 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo

O Estado de São Paulo – Caderno 2
10 de novembro de 2014

por Vanessa Barbara

Semana passada fiquei me gabando das coisas que consegui encontrar nesta vida, numa comprovação empírica de que “vergonha na cara” não constava da lista, e falhei em informar todas as coisas que acabei perdendo.

Uma pasta de dente em miniatura sabor hortelã, durante uma viagem a Porto Alegre em 2003. Uma toalhinha de rosto azul num acampamento em 1991. Uma meia. Um comprimido de zolpidem. Uma bolinha transparente de futebol de botão. Algumas lentes de contato. As chaves de casa – mas estavam dentro da cestinha da bicicleta, o que eu só descobri depois de trocar todas as fechaduras.

Lá se vão quase dez anos e não me lembro de onde vem a frase: “Não quero morrer em Cordeirópolis”, que, por alguma razão, está anotada à margem de um caderno de francês. Com a minha letra.

Outra coisa que jamais consegui confirmar é uma história que alguém me contou sobre um casal que, a título de experimento, ocultou do filho a palavra “maçã” até que ele tivesse uns seis anos de idade.

Ou a identidade do escritor famoso que se divertia com os amigos dublando programas de tevê enfadonhos – sua única regra era que todos os personagens discorressem sobre pastéis.

Se é verdade que a timidez me dotou de inúmeras qualidades detetivescas, também foi responsável pela minha incapacidade de descer de um carro durante um congestionamento, num dia comum, e entrevistar um cidadão que, diante de semáforos quebrados, resolveu ele mesmo coordenar o trânsito. Chaves na mão, o mambembe controlador de tráfego se postou num dos cruzamentos da avenida Brasil e organizou o fluxo de automóveis como um maestro. Nunca fiquei sabendo qual era a sua história.

Também não pude apurar com esmero a saga de amor e ódio por trás de uma colisão de embarcações numas férias de janeiro em Ilha Grande; conta-se que o barco de um rapaz bateu em cheio na escuna do próprio sogro, com quem mantinha uma inimizade histórica. A fofoca alastrou-se por telefone entre os donos das pousadas e foi crescendo com o passar dos dias. Um esfaqueamento em pleno convés não estava mais fora de questão.

Também foram inúmeras as reportagens que deixei de fazer, por motivos diversos. Na mais antológica delas, propus-me a tecer uma comparação entre a Casa do Saber e a Casa das Cuecas. O trabalho se mostrou muito acima das minhas capacidades e acabei fracassando por pura falta de ambição.

Já perdi muitas partidas de vôlei, duas tartarugas, meia dúzia de sinônimos, alguns entes queridos e a vontade de andar de patins.

Agora faço questão de perder o fio da meada.

(Há algo de nobre em perder alguma coisa e simplesmente parar de buscá-la.)