Um conto do 1756

Posted: 23rd setembro 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Caderno 2
22 de setembro de 2014

por Vanessa Barbara

Juro que aconteceu, mas não foi comigo. Quem me contou foi um cidadão de boa índole, e por sinal muito cioso dos detalhes, no qual os senhores leitores podem confiar. (Ok, confesso: foi a minha mãe.)

Um senhor subiu no ônibus quase vazio, lá pela altura do Imperatriz, com um volume qualquer enrolado numa blusa, e sentou num dos bancos da frente. O ônibus seguiu caminho, feliz e balouçante, até parar num engarrafamento a quinhentos metros dali.

Ninguém pareceu se abalar com o trânsito saturado de automóveis, algo bastante normal por aquelas bandas. Apenas aguardavam com a paciência de sempre, olhando pelo vidro e pensando na vida.

Foi quando um segundo elemento, tresloucado e esbaforido, trajado com elegância, materializou-se na calçada da direita. Falava ao celular e gesticulava para o senhor que estava sentado à janela, mas não deu para entender o que estava se passando. De dentro do ônibus, este apenas fazia “não” com o dedo, entre zombeteiro e seguro. “Não, não”, ele repetia, mudo.

O ônibus finalmente arrancou e virou uma rua, a galope. A cena já teria se esvaído da mente dos passageiros, catalogada na classe de “incidentes urbanos a esclarecer”, quando o camarada com a blusa na mão levantou-se de súbito e gritou para que o motorista parasse no ponto – como se a vida de sua blusa dependesse disso.

Julgando prudente obedecer ao passageiro, talvez detectando um certo nível de urgência naquela situação, o condutor estancou e o senhor da blusa desceu pela porta da frente. Saiu correndo.

Atônito, o motorista nem fechou a porta e continuou preso no tráfego – até que, surpresa!, o homem elegantemente trajado tornou a se materializar na calçada ao lado do ônibus, tal qual um justiceiro de faroeste. Houve quem cogitasse uma aparição sobrenatural.

Desta vez ele carregava um notebook. Da calçada, ainda ofegante, explicou ao motorista que havia sido assaltado no escritório, e que tinha visto o bandido subir no 1756. Munido de um furor reparatório, partiu ao encalço do meliante, talvez correndo e tomando táxis sucessivamente, até que conseguiu reconhecer o ladrão na janela e este se apavorou, descendo do coletivo em disparada.

Após curta perseguição, o homem conseguiu agarrá-lo na rua e recuperou o computador roubado.

Tudo isso o cobrador recontou aos passageiros mais distraídos, em meio a comentários gerais. O coletivo arrancou mais uma vez. Dobrou a esquina da avenida Cruzeiro do Sul e, nesse meio tempo, até chegar ao ponto final, o motorista ainda conseguiu entreter a plateia com uma peripécia de sua lavra, segundo a qual fora certa vez assaltado e, quando o infrator deu as costas, tascou uma ratoeira extragrande recém-comprada na cabeça do infeliz.

Nada mais emocionante do que um bom congestionamento.

E a Copa?

Posted: 16th setembro 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de S. Paulo – Caderno 2
15 de setembro de 2014

por Vanessa Barbara

Dois meses após o término da Copa do Mundo, o governo ainda não sabe dizer quanto custou o evento. Também não divulgou qual foi o impacto do torneio na economia brasileira, porém admitiu que a queda do PIB no segundo trimestre deveu-se à redução de dias úteis no calendário provocada pelos jogos.

A chamada Matriz de Responsabilidades da Copa, que é a tabela oficial de prestação de contas do governo, foi atualizada pela última vez em setembro de 2013 – ou seja, há um ano. Naquela época, previa-se um gasto total de R$ 25,5 bilhões, dos quais 85,5% de recursos públicos. Hoje não se sabe qual a verdadeira dimensão dessas despesas.

Em entrevista para o blog do jornalista Rodrigo Mattos, do Uol, o secretário executivo do Ministério do Esporte declarou que as contas só serão atualizadas em outubro – provavelmente depois das eleições. Ele não soube informar se o número deve subir ou descer, mas deu a entender que não pretende incluir novos itens, apenas revisar os existentes.

Naturalmente, o assunto não causou espanto.

Assim como não parece ser um problema o fato de que, segundo o portal Superesportes, das 32 obras de mobilidade urbana que restaram na lista, 23 não estão concluídas (Em Cuiabá, fala-se em uma constante “revitalização dos tapumes” da avenida do CPA).

A passividade com que muitos de nós assistem, do sofá, aos lances mais acintosos do cotidiano é um dos legados desta Copa, que contou com botinadas dignas de replay.

Tivemos o episódio das capas de chuva, no qual o governo de Brasília quase efetuou a compra de 17 mil impermeáveis a R$ 314 cada – ainda que a Copa fosse disputada em época de seca. Tivemos um estádio que custou R$ 1,4 bilhão e apresentou goteiras. Tivemos oito operários mortos durante a construção das arenas, e também a queda de um viaduto em Belo Horizonte com duas vítimas fatais.

Em São Paulo, as manifestações contra a Copa resultaram em 89 pessoas feridas e 508 detidas – a maioria para “averiguação”. Muitos protestos não puderam nem sair do lugar, em episódios de forte repressão que foram denunciados pela Anistia Internacional.

Nada disso chegou a ser tão discutido quanto a contusão do Neymar, que adquiriu contornos de tragédia nacional – ainda que 45 dias depois ele tenha voltado a jogar -, e, por fim, o placar do jogo contra a Alemanha, que até hoje é considerado fonte de “vergonha” e “humilhação” para o povo.

A julgar pela sonora indiferença do público e da mídia com a Matriz de Responsabilidades da Copa, a corrupção e o superfaturamento estão absolutamente liberados para os próximos Jogos Olímpicos. O resultado no esporte nem precisa ser bom – e é quase certo que ninguém vai se interessar pela conta.

Alegria de pobre

Posted: 9th setembro 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo

O Estado de São Paulo
8 de setembro de 2014

por Vanessa Barbara

Matthew Killingsworth é psicólogo de Harvard e criador do Track Your Happiness (www.trackyourhappiness.org), um projeto que utiliza smartphones e e-mails para avaliar a felicidade em tempo real, ao longo do dia. Durante cerca de um mês, a cobaia responde perguntas sobre o que estava fazendo em determinado instante e qual o grau de bem-estar auferido. O resultado é uma série de gráficos que determina quais são as principais fontes individuais de felicidade em relação aos afazeres, o foco, as interações e a produtividade.

Meu relatório acaba de ficar pronto e fiz uma descoberta: sou mais feliz quando estou num ônibus. O aumento da minha satisfação pessoal é notável quando me encontro no interior de um coletivo, sendo comparável apenas à minha satisfação em restaurantes (média de 70%).

(É curioso perceber que minha alegria despenca para ridículos 25% quando estou em terminais ou pontos de ônibus aguardando a condução, e sobe uma infinidade de pontos percentuais conforme galgo os degraus.)

Realmente não há maior fonte de contentamento nesta vida do que vislumbrar um 971M vazio vindo na sua direção, conseguir sentar no banco alto e abrir a janela para receber vento no rosto – ainda que seja um bafo seco de poluição e escapamento. Nada mais feliz do que passar velozmente pelo corredor de ônibus, ultrapassando automóveis parados com motoristas tristes em seu interior.

Por outro lado, não há nada mais depressivo do que tomar ônibus na hora do rush e ficar 50 minutos preso no tráfego da rua Voluntários da Pátria, de pé, prensada entre dois idosos e um beliche. Nada pior do que fila tripla no ponto e o ônibus que não chega nunca.

Há algumas semanas experimentei o Paese (Plano de Apoio entre Empresas de Transporte em Situação de Emergência), que é acionado quando as estações de metrô da linha amarela fecham para obras. Nessas ocasiões, uma frota de ônibus atende aos passageiros no caminho entre as estações.

Naquele domingo, o Paese representou uma alta de 60% na minha alegria bruta: a fila era grande, mas corria rápido, pois havia inúmeros ônibus à disposição. Ninguém tinha de passar pela catraca nem pagar passagem. O esquema era eficiente: o coletivo abria as portas, pegava os passageiros e saía. Sem parar em nenhum ponto, o motorista singrou os corredores da avenida Rebouças como quem explora novos continentes; levou quinze minutos para ir do Largo da Batata até a Avenida Paulista.

A alegria, meus senhores, é um ônibus rápido e vazio, e isso foi comprovado por um cientista de Harvard em pesquisa com uma amostra representativa de mandaquienses (um).

Tanto que, agora, quando a tristeza começa a bater, meus entes queridos já não hesitam em agir em meu benefício: basta erguer o braço e acenar para o ônibus mais próximo.

Visigodos, bárbaros e ostrogodos

Posted: 2nd setembro 2014 by Vanessa Barbara in Reportagens
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IMG_9600Foto: Eli Simioni

Blog Posfácio
2 de setembro de 2014

por Vanessa Barbara

Nota preliminar: esta resenhista resolveu ater-se exclusivamente ao conteúdo do livro, abstendo-se de opinar sobre o assunto por questões óbvias, ainda que tétricas: na situação atual, não podemos contar com a garantia de direitos constitucionais básicos como liberdade de expressão e reunião – a julgar pelas prisões arbitrárias e pela prática de um certo “direito penal de autor”, que ocorre quando se investiga uma pessoa em busca de materialidade e autoria de condutas delituosas. Portanto, a resenha se limitará às ideias apresentadas pelo cientista político canadense Francis Dupuis-Déri, que não é brasileiro e não poderá ser alvo de investigação por formação de quadrilha armada, corrupção de menores e incitação à violência. (Pelo menos a princípio. Lembrem-se de Bakunin.)

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Escrito por Francis Dupuis-Déri, Black blocs [Les black blocs: la liberté et l’égalité se manifestent] foi publicado originalmente em 2003, e atualizado de forma sistemática até a edição atual, de 2014. O próprio autor revela, nas últimas páginas do livro, que de início julgava que a tática black bloc estava diminuindo em tamanho e importância, mas se mostrou equivocado na previsão: cada vez mais parece ser uma “imagem do futuro” que vem ganhando força e, portanto, merece análises mais detidas e responsáveis.

Ele explica que o chamado “bloco negro” surgiu no início da década de 80 no contexto do movimento autonomista alemão – os Autonomen, que pregavam a descentralização do poder, a autogestão e a colaboração em rede, praticando uma política igualitária e participativa. Para eles, a autonomia individual e a autonomia coletiva eram complementares e igualmente importantes. Da mesma forma, os black blocs atuam segundo princípios ligados à tradição política anarquista, como liberdade e igualdade, e podem possuir ideologias variadas: marxismo, feminismo radical, ambientalismo. A estrutura é sempre horizontal e sem hierarquia – Dupuis-Déri conta que, nesse cenário inicial, seis pessoas chegaram a ser acusadas de pertencer a uma “organização criminosa” conhecida como BB. Isso aconteceu em 1981, em Frankfurt. Mas o caso foi arquivado e as próprias autoridades admitiram que a organização nunca existira.

A roupa preta é inspirada na tradição anarcopunk e representaria a solidariedade em massa a uma causa ou a resistência conjunta à opressão. As máscaras teriam como objetivo proteger a identidade dos ativistas e, ao mesmo tempo, conferir-lhes uma identidade coletiva. (Além de resguardá-los contra gás lacrimogêneo e spray de pimenta.)

No contexto de uma manifestação de rua, os BB podem ajudar a dar voz aos ativistas, sobretudo por consistirem numa força de resistência à repressão policial. Em certas ocasiões, para além da postura defensiva, eles podem decidir pela ação direta. Praticam uma espécie de vandalismo performático: quebram vidraças de instituições financeiras ou governamentais como forma de chamar a atenção para sua oposição ao que consideram símbolos do capitalismo.

Segundo Dupuis-Déri, a ação direta “é uma reação a sentimentos de injustiça e situações de opressão, desigualdade e violência sistêmica”. Seria uma tentativa de mostrar que os bens materiais não são tão importantes – Dupuis-Déri conta que muitos dos participantes dessas ações ficam surpresos com a indignação das pessoas diante de vidraças quebradas, visto que a “propriedade não sente dor”, parafraseando uma pichação em Seattle. “Não machucamos pessoas. São as corporações que machucam as pessoas”, declarou um BB entrevistado pelo autor.

O filósofo suíço Nicolas Tavaglione defende que, ao atacar propriedades públicas e privadas, os adeptos da tática black bloc forçam as elites a admitir o que valorizam mais, os bens materiais ou a vida humana e a liberdade. “O protesto nos coloca diante de uma escolha social tão velha quanto a Europa: liberdade ou segurança. Por levantarem essa questão, os BB são os melhores filósofos políticos da atualidade”, afirma.

Contudo, o assunto não costuma ser discutido de forma séria pela imprensa ou pelos acadêmicos. Em vez disso, os BBs são associados de forma indiscriminada à anarquia e à irracionalidade destruidora. A imprensa os retrata como jovens sem convicções políticas que se deixam levar e acabam se envolvendo em manifestações “mais para queimar e quebrar do que para protestar ou contestar”. Nega-se o caráter político de suas ações diretas, que são relegadas para fora do campo e da racionalidade políticos. [1]

Desde o policial e o vereador até o comunista, passando pelo ideólogo capitalista, pelo “bom manifestante”, pelo porta-voz das forças progressistas e pelo editor de jornal, todos compartilham os mesmos sentimentos e chegam às mesmas conclusões. “Câncer”, “idiotas”, “bandidos irracionais”, “anarquistas”, “vagabundos”, “desprovidos de crenças políticas”, “ingênuos”, “massa de manobra”, “covardes”… Para Dupuis-Déri,

palavras como essas têm efeitos políticos muito reais, pois privam uma ação coletiva de toda a credibilidade, reduzindo-a à expressão única de uma violência supostamente brutal e irracional da juventude.

Perspectivas aparentemente pautadas no senso comum pedem que os manifestantes “rompam relações com os vândalos infiltrados”, pois estes tirariam todo o crédito dos protestos. A mídia repete isso ao infinito, argumentando que, por causa dos BBs, a maior parte da cobertura fala das vitrines quebradas, o que acaba desviando e ofuscando as questões que os manifestantes estão tentando suscitar. A despeito disso, ninguém discute que questões são essas. “As palhaçadas deles roubaram a cena de milhares de manifestantes pacíficos que podiam ter coisas sérias a dizer sobre a divisão cada vez maior entre ricos e pobres”, disse um repórter do Los Angeles Times, ignorando completamente o teor de tais “coisas sérias”. Dupuis-Déri retruca com firmeza: “A verdade é que a mídia não está disposta a falar dessas questões. E ninguém está disposto a levar a sério as preocupações dos manifestantes pacíficos”. [2]

Para o autor, existe uma ironia na postura assumida por esses profissionais de mídia: eles poderiam muito bem escolher não cobrir o vandalismo, mas se concentrar nas “verdadeiras questões”, caso estas realmente importassem para eles, em vez de censurar os “vândalos” por desviarem a atenção da mídia (inclusive a deles próprios).

O fato é que, na cobertura da grande imprensa, mesmo manifestações pacíficas são reduzidas a algumas poucas imagens anedóticas, usando adjetivos como “amigável” para salientar o aspecto inócuo desses eventos. São raras as vezes em que o significado político de manifestações, violentas ou não, é levado a sério pelos principais meios de comunicação. Para o autor, não há dúvida de que os jornalistas adoram cobrir o espetáculo proporcionado pelos BBs e dão mais destaque a uma manifestação violenta do que a uma passeata calma e “amigável”. [3]

Ainda no campo das críticas, Dupuis-Déri examina a postura de uma certa elite progressista ou esquerdista, que considera apenas o próprio trabalho como sendo verdadeiramente importante e prioritário; portanto seria melhor que os radicais ficassem calados, seguissem as regras e se comportassem. Muitos deles acusam a tática black bloc de ser antidemocrática. Dupuis-Déri pondera que os pressupostos por trás dessas críticas “vêm de uma visão dominante segundo a qual um movimento social deve ser unificado e avançar em uma única direção determinada por líderes esclarecidos confortavelmente instalados na chefia de organizações que são, em tese, responsáveis, democráticas e representativas da sociedade civil como um todo”.

Tais críticas derivam de uma concepção diferente de democracia – fundamentalmente representativa. Para essas pessoas, alguém deve falar por todo um movimento, do qual se excluem os elementos que desviam dos padrões. Os BBs seriam considerados produtos de um desvio cultural combinado a uma patologia psicológica. Seriam como um refugo para os líderes de grupos institucionalizados que, ao se dissociarem dos “vândalos”, desejam projetar uma imagem calma, respeitável e homogênea de um movimento capaz de falar com uma única voz: a da sua elite.

Os BBs, por sua vez, veem um movimento social como algo heterogêneo, e defendem que a multidão não pode ser representada sem que seu desejo seja excessivamente simplificado pela elite que a representa. Em outras palavras, que a delegação de autoridade destrói os princípios de igualdade e liberdade, sendo indesejável se comparada ao pluralismo e à autonomia de escolha.

Em troca de recriminar os BB publicamente, os porta-vozes de movimentos progressistas esperam ser recompensados politicamente. O que pode suscitar a questão: que tipo de relação política estaria sendo instaurada quando a elite progressista pede permissão às autoridades para se manifestar, discute a rota da passeata com eles e supervisiona seus manifestantes com um conjunto de líderes? Outra questão: sempre se faz referência a grupos não controlados. Mas por quem? Pela polícia? Ou pelos organizadores e porta-vozes do movimento?

Existe a ideia de que tudo ficaria bem se os manifestantes agissem de maneira dócil e controlada. Ao que os BBs retrucam: “Não estamos aqui tentando aterrorizar o público. Nós somos o público”.

**

Durante boa parte do livro, Dupuis-Déri ressalta que é perfeitamente possível considerar a ideologia anarquista desinteressante e preferir o liberalismo, ou o pacifismo a qualquer forma de vandalismo. É possível discordar de análises e motivações políticas dos black blocs, mas a discordância não pode servir de desculpa para se recusar a examinar seriamente as ideias e a lógica dos adeptos da tática.

Dizer que eles são jovens meramente apolíticos e irracionais é, na melhor das hipóteses, preguiça intelectual e, na pior, uma mentira política.

 O autor se põe a desconstruir certas ideias preconcebidas com relação aos exemplos de Mahatma Gandhi e Martin Luther King. “A história oficial atribui grande sabedoria política e moral a esses famosos defensores da ação direta não violenta. Com frequência, descreve-se que eles venceram apenas através de práticas não violentas. No entanto, tanto um quanto o outro faziam parte de movimentos amplos que incluíam atores políticos que recorriam à força e conduziam ataques armados contra a polícia e contra as Forças Armadas. Será que teriam triunfado sozinhos sem a violência de seus aliados?”, questiona.

Para ele, a história oficial dos Estados liberais modernos está repleta de ações diretas violentas, conduzidas por pessoas que hoje são aclamadas como heróis da liberdade, da igualdade e da justiça. Dá como exemplos a Festa do Chá de Boston e a Queda da Bastilha. Na queda do Muro de Berlim, destruído por jovens com martelos e marretas, “nenhum jornalista ocidental tentou minimizar a importância política desses atos violentos representando os homens e mulheres que os realizaram como jovens arruaceiros ou bandidos bêbados em busca de emoção”, observa. Ele também usa como exemplo as lendárias suffragettes, que lutaram pelo voto feminino no início do século. Uma de suas líderes, Emmeline Pankhurst, declarou que “o argumento de uma vidraça quebrada é o mais valioso na política moderna”.

Teóricos anarquistas como Emma Goldman e Peter Kropotkin mudaram de posição diversas vezes, mas sempre frisaram que a violência anarquista é muito menos letal que a do Estado. O autor parece concordar, lembrando que “as únicas pessoas que já chegaram a dar a ordem de lançar bombas atômicas em cidades eram liberais”.

Para a antropóloga Sian Sullivan, citada no livro, o uso da força e a destruição de propriedade estariam ligados à raiva contra um sistema desigual e explorador. Ele neutralizaria com eficácia algumas reações mais comuns, porém inócuas, ao sistema: primeiro, a apatia social, a passividade e o isolamento voluntário; segundo, a conclusão a priori de que a não violência é racional e eficiente, ao passo que a força militante é irracional e ineficaz.

Nesta época de pensamento único, o pluralismo de ideias apresentado por Dupuis-Déri é notável. Ele advoga pelo respeito à diversidade de táticas, citando o depoimento de um anônimo: “Sei muito bem que não tenho todas as respostas sobre o tema da escolha entre violência e não violência, então não vou impedir as pessoas de fazer o que elas querem; não quero esse tipo de poder”. Outro pondera: “Normalmente acho que quebrar janelas e lutar contra policiais é contraprodutivo, mas os participantes dos BB são meus companheiros e aliados nessa luta, e precisamos de espaço nesse movimento para a raiva, a impaciência e o fervor militante”.

Dupuis-Déri fala sobre um certo éthos da tática BB, que é de solidariedade e cuidado coletivo. E conta que existe, sim, uma atmosfera ética permeando as redes anarquistas, a exemplo do que ocorreu em 1978 em Boston, durante um protesto antinuclear. “Frente a frente com o poder quase infinito de uma usina nuclear e a força repressora da polícia com a missão de protegê-la, militantes passaram horas debatendo se o uso de alicates para abrir a cerca constituiria ou não um ato de violência. Os defensores de outras ideologias não costumam ter reservas contra o uso de equipamentos muito mais destrutivos do que alicates”, ironiza.

Dupuis-Déri considera que uma tática mais direta pode trazer benefícios, tais como: incentivar mudanças culturais em vez de apenas políticas ou econômicas; definir a direção das mudanças em vez de instaurar meros objetivos específicos; reclamar o espaço público; modificar a ênfase das questões no debate público; definir uma “ameaça crível” às autoridades instituídas. “Fundamental para o projeto de uma nova sociedade é criar novas maneiras de ser, interagir e se organizar uns com os outros”, ele completa.

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Apenas após conhecer as origens da tática black bloc, suas motivações políticas e seu modo de atuação é que podemos avaliar com seriedade – e sem histeria – os pontos negativos e positivos desse modo de ação, além de seus efeitos nas mobilizações sociais. Só assim se tornará possível compreender o impacto político da demonização a que os BB são cotidianamente expostos – e perceber como as críticas mais irrefletidas estimulam a repressão policial.

Um exemplo disso está nos estudos do sociólogo canadense Patrick Rafail, que, analisando protestos ocorridos em seu país, afirmou que o que os manifestantes fazem ou deixam de fazer não é o fator principal para a brutalidade da polícia durante um evento. O que determina a truculência é quem seriam os manifestantes aos olhos da polícia.

Dupuis-Déri explica que, ao longo dos anos, conseguiu-se construir publicamente a imagem do “anarquista criminoso” como uma ameaça à segurança e à ordem, como se este fosse um prototerrorista. A mídia ajuda a ampliar essa percepção, influenciando diretamente na intensidade da repressão. Isso serviria inclusive para justificar as operações “preventivas” da polícia contra os ativistas, que podem atingir um grau de criminalização absolutamente desproporcional às ações dos BBs.

A título de exemplo, ele menciona a famigerada mesa sobre a qual a polícia dispõe, para o deleite da imprensa, uma variedade de equipamentos apreendidos com os manifestantes. “Qualquer um pode notar que os objetos em exibição são em sua maioria inócuos: grampeadores e tesouras (para fazer cartazes), chocalhos, panelas, potes e baquetas (para tocar música), pedaços de pau para erguer cartazes e bandeiras, alto-falantes e garrafas de água.” Segundo ele, a polícia se esforça para ampliar a ameaça representada pelos manifestantes em geral e pelos BB em particular. Ela comparece a protestos munida com capacetes, escudos, uniformes à prova de chamas, balas de borracha, bombas de fumaça, gás lacrimogêneo, espadas e armas de fogo, e não raro apoiada por cães, cavalos, viaturas blindadas, helicópteros. Exagera essa ameaça para justificar a repressão e as prisões em massa.

Ou seja: ao repetir o mantra de que os “vândalos” não passam de jovens irracionais que entram na luta por puro desejo de quebrar tudo, os jornalistas e porta-vozes de organizações, mesmo de esquerda, não fazem mais do que incitar a histeria pública e alimentar a demanda de maior violência policial. Da mesma forma, ao procurar se dissociar dos “baderneiros” a todo custo e negar-lhes qualquer relevância política, os líderes dos movimentos progressistas criam um vácuo político em torno desses “jovens vândalos” e reforçam sua identificação social como elementos marginais, fora dos padrões. Dessa forma, os policiais pressupõem que estão livres para agir como bem entenderem, e, com frequência, são levados pelo entusiasmo da repressão, atacando BBs não violentos ou brutalizando e prendendo um grande número de manifestantes pacíficos.

Isso não vai acabar enquanto não houver mais análises sérias e aprofundadas da tática black bloc, que não se limitem a repetir a mesma ladainha: “vândalos”, “bandidos” e “baderneiros”.

Vândalos


Notas

[1] Segundo Dupuis-Déri, as poucas críticas que estimam o valor ideológico de ações diretas usam critérios alheios a tais gestos, comparando-os, por exemplo, a tratados de filosofia política e social. Para muitos de seus adeptos, a tática black bloc possibilita que eles expressem uma visão de mundo e uma rejeição radical ao sistema político e econômico, mas nem por isso são ingênuos a ponto de achar que essa ação possa desenvolver uma teoria geral da sociedade e da globalização capitalista.

[2] Ele também acha inacreditável que meia dúzia de black blocs tenham o poder de, quebrando algumas vidraças, desviar a atenção dos políticos de questões importantes sobre política.

[3] Para o autor, a postura dos jornalistas em relação à violência depende muito de quem a emprega. Eles costumam ser bem tolerantes quando a violência é usada por forças policiais ou por manifestantes “cultos” de países estrangeiros. Mas condenam a violência dos “outros” e a expressam com rótulos pejorativos: extremistas, irracionais, bandidos, vândalos, sem quase nenhuma referência a suas motivações políticas. 

Você Mais Feliz

Posted: 1st setembro 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de São Paulo – Caderno 2
1 de setembro de 2014

por Vanessa Barbara

Interrompemos nossa programação normal para transmitir o horário gratuito obrigatório de propaganda eleitoral. Dentro de uma semana, voltaremos a temas mais agradáveis.

*

Primeiro entra a vinheta colorida do partido, seguida de uma breve introdução ao candidato. Alguns cumprimentam o eleitorado com um “oi, lindinhos” ou apresentam a relevantíssima informação de que Fulana de Tal é “casada, três filhos”. Uma postulante a senadora é vista jantando com a família, e há depoimentos elogiosos dos pais, da sobrinha, das irmãs e da copeira.

Dois candidatos aparecem com cachorros no colo – os nomes dos animais são Bigodinho e Chupisca, e nenhum deles parece estar muito à vontade. Chupisca dá uma festiva lambida na cara da candidata, que diz estar “cansada de enxugar gelo e blá-blá-blá”.

Outra propaganda fala do Senado em primeira pessoa: “Tenho 190 anos de história, posso ser bem melhor nos próximos oito”.

Inúmeros pretendentes a deputado adotam a alcunha pela qual são conhecidos, como João Zelador, Cidão do Sindicato, Adalberto dos Colchões, Alex da Academia, Gê Guarda Noturno, Marquinho do Lixão e o Professor Fláudio, que deve ter sofrido muito bullying dos alunos. Há representantes dos dentistas e das domésticas. Um deles pede: “Aposentados, votem em aposentado”, que é um argumento contraditório para quem pretende deixar a aposentadoria. O outro diz: “Vote em gente que gosta de gente”.

Uma quantidade desproporcional de candidatos se apresenta como baluarte da renovação, incluindo Dilma e Kassab. Alguns não temem a contradição, prometendo “mudança com tradição” e “renovação com experiência”. Uma política declara que “desde 1989, o país caminha para o abismo”. Outro argumenta: “Recentemente perdemos a Copa e estamos quase perdendo a Petrobras”.

Numa produção tosca, um candidato e seu “raio privatizador” prometem exterminar comunistas, maconheiros e grevistas. Seu bordão é: “Magoe um socialista, vote no Batista”.

Em clara oposição a evangélicos como Clark Crente, do Paraná, o postulante a deputado Toninho do Diabo tem como bordão: “A coisa tá feia, a coisa tá preta, o negócio é votar no capeta”.

Temos um Barack Obama no Rio e um Bin Laden em São Paulo. Em Pernambuco, dá pra votar em Jesus.

Carrancudos, os candidatos a governador fazem críticas e acrescentam, abrindo o semblante: “Mas isso está prestes a mudar com o programa Você Mais Feliz [ou qualquer outro nome de efeito], que vai trazer mais contentamento ao cidadão [ou qualquer outra promessa vaga]. Por meio dos Centros Integrados de Entusiasmo Direcionado, nós levaremos…”.

Em todo caso, a campanha mais instigante começa com a seguinte pergunta, que deixo em aberto para a reflexão dos leitores: “O que você mais deseja para aquela sua amiga que acabou de ficar grávida ou para o seu avô que acabou de fazer 80 anos?”.

Minha resposta: felicidades ao casal.

Duas bandeiras que não deram certo

Posted: 1st setembro 2014 by Vanessa Barbara in Sem categoria

International New York Times
28 de agosto de 2014

por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil – De acordo com a CNN, não há introvertidos no Brasil. “É uma cultura animada que pode fazê-lo sair da sua concha, ajudá-lo a relaxar e ter os melhores dias da sua vida”, diz um artigo sobre turismo no Brasil, que também destaca nossas conversas barulhentas, buzinas escandalosas e “carros de som que berram propagandas pela vizinhança com a ajuda de dezesseis amplificadores”.

Como qualquer tentativa de reduzir uma cultura inteira em poucos tópicos, trata-se de um retrato preguiçoso e estereotipado do Brasil. Mas existe alguma verdade nele. Aqui, como em outras partes do mundo, os extrovertidos fazem tanto barulho que ninguém mais tem a chance de ser ouvido.

Em O poder dos quietos, a escritora americana Susan Cain afirma que a introversão “é, hoje, um traço de personalidade de segunda classe, classificada em algum lugar entre uma decepção e uma patologia”, enquanto a extroversão “tornou-se um padrão opressivo que a maioria de nós acha que deve seguir”. Os extrovertidos estabelecem suas regras e nos forçam a segui-las; dessa forma, todos os brasileiros têm de ser empolgados e sociáveis, beijando estranhos o tanto quanto possível e dançando forró como se não houvesse amanhã.

Isso é especialmente contraditório quando se aplica à minha carreira. Se você, como eu, escolheu ser um escritor, isso provavelmente quer dizer que gosta de ficar sozinho e se expressar por escrito. É claro que não implica necessariamente que você é um ermitão, mas significa, sem dúvida, que a socialização deveria ser opcional. Não uma parte indissociável da sua carreira.

Ano após ano, escuto exatamente o contrário. Então me deixe ser clara a esse respeito: dar palestras, participar de eventos literários e promover livros em turnês não é o meu trabalho. Meu trabalho é sentar e escrever. Todo o resto pode ser benéfico para a minha “imagem pública” ou a venda dos meus livros, mas não é obrigatório. (Pergunte a J.D. Salinger, Harper Lee, Thomas Pynchon, Marcel Proust e Gustave Flaubert.)

E ainda assim, a internet está repleta de dicas de networking, alertando que “talento literário e ideias originais não são o suficiente para garantir o sucesso nessa área. Você também precisa de habilidades de marketing matadoras”. Outros falam das “demandas promocionais de uma carreira literária bem-sucedida”.

Mesmo Susan Cain, a mais ferrenha advogada da causa introvertida, teve de convencer seu editor de que era suficientemente pseudoextrovertida para promover O poder dos quietos. Ela se sujeitou a um ano de aulas de oratória antes de sair em turnê para promover o livro e de apresentar uma palestra no TED. Na obra, ela menciona um sentimento bastante comum entre os introvertidos: no caminho para apresentar um seminário, ela se viu “rezando por um desastre – uma enchente ou talvez um pequeno terremoto –, qualquer coisa que me impeça de passar por aquilo”.

Sei do que ela está falando. Às vezes digo a mim mesma que posso morrer antes do meu próximo compromisso de falar em público, e isso é um pensamento reconfortante.

Eu sempre fui tímida. Nunca gostei de festas barulhentas com crianças demais. Na hora do recreio, preferia ler e escutar música. Desde a pré-escola, me disseram que isso era um problema e que eu precisava mudar. No ensino médio, uma orientadora educacional me disse que eu nunca teria sucesso na vida se não olhasse as pessoas nos olhos. (Ela era claramente um alien mutante que pretendia se alimentar da minha alma, e eu não ia cair nessa.) Uma vez estava jogando vôlei e ela me tirou da quadra para me dar uma advertência por escrito, dizendo que, se a minha conduta antissocial continuasse, eu seria suspensa por dois dias. Aparentemente, participar de esportes coletivos não contava.

Tive a minha vingança ao escrever uma graphic novel inspirada nela, cujo enredo envolve inocentes máquinas de Goldberg.

É provável que eu sempre tenha sido assim. De acordo com uma pesquisa efetuada por Jeremy Kagan, então um psicólogo de Harvard, o temperamento humano é detectável muito cedo e possivelmente herdado. Dessa forma, a introversão é melhor descrita como uma espécie de alta sensibilidade. Segundo a pesquisa, bebês que chutavam e choravam diante de estímulos externos – ou que, em outras palavras, eram altamente sensíveis a eles – tinham mais chances de se tornar adultos introvertidos. Os bebês menos reativos, que precisavam de mais estímulos para se interessar e se envolver, tinham inclinação a se tornar extrovertidos. É a “longa sombra do temperamento”, como Kagan intitulou seu livro de 2004, escrito em parceria com Nancy Snidman.

A introversão não é uma doença nem uma falha de caráter que precisa ser curada ou disfarçada. Apesar de ainda não olhar as pessoas nos olhos, consegui viver e trabalhar como bem entendi. Apenas presumia que as demandas sociais para interagir e socializar a qualquer custo eram inconvenientes que eu devia encarar como fatos da vida. 

Até que, no mês passado, após aceitar fazer palestras na Feira Literária de Gotemburgo e me ver desejando ardentemente quebrar uma perna ou romper uma ou duas artérias cerebrais, percebi uma coisa: eu nunca diria a um extrovertido o que ele deve fazer com sua vida. Nunca diria: “Você precisa socializar menos. Vá para casa e fique lá por alguns dias, leia uns livros e passe algum tempo de qualidade consigo mesmo. Apenas pare de interagir o tempo inteiro”.

Sei que isso seria absurdo. Então por que os extrovertidos se sentem tão livres para impor seus valores aos outros?


Este texto foi publicado em inglês no International New York Times do dia 28 de agosto de 2014. Tradução da autora.

The International New York Times
August 28th, 2014

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — According to CNN, there are no introverts in Brazil. “It’s a vivacious culture that can bring you out of your shell, help you unwind and have the best time of your life,” reads an article about visiting Brazil, which also highlights our country’s loud conversations, blaring car horns and “sound trucks blasting advertisements through the neighborhood from 16 speakers.”

This is, of course, like any attempt to reduce a whole culture to a few lines, a stereotypical and lazy portrait of us. But there’s some truth in it. Here, as in other parts of the world, extroverts make so much noise that nobody else has the chance to be heard.

In “Quiet: The Power of Introverts in a World That Can’t Stop Talking,” the American writer Susan Cain says that introversion “is now a second-class personality trait, somewhere between a disappointment and a pathology,” while extroversion is “turned into an oppressive standard to which most of us feel we must conform.” Extroverts have set up their rules and asked us to follow; therefore all Brazilians must be vivacious and friendly, kissing strangers as much as possible and dancing forró like there’s no tomorrow.

This is especially contradictory when applied to my career. If you’ve chosen to be a writer, as I have, it probably means you enjoy being alone and expressing yourself in writing. Of course it doesn’t necessarily imply that you are a hermit, but it means, for sure, that socializing should be optional. Not an integral part of your career.

But I’m told exactly the opposite, year after year. So let’s be clear about this: Giving lectures, engaging in literary events and going on book tours are not my job. My job is sitting on a chair and writing. All the rest may be beneficial to my “public image” or my books’ sales, but it’s not obligatory. (Ask J.D. Salinger, Harper Lee, Thomas Pynchon, Marcel Proust or Gustave Flaubert.)

And yet the Internet is full of networking tips, warning that “good writing skills and original ideas aren’t enough to make you a success in this business. You need kick-ass marketing skills, too.” Others talk about the “promotional demands of a successful writing career.”

Even Ms. Cain, the ultimate advocate for introverts, had to convince her publisher that she was pseudo-extrovert enough to promote “Quiet.” She endured a year of public-speaking classes before going on her book tour and giving a lecture at a TED conference. In her book, she mentions a very common feeling among introverts: While driving to present a seminar, she found herself “praying for calamity — a flood or a small earthquake, maybe — anything so I don’t have to go through with this.”

I know what she means. I sometimes tell myself that I may die before my next public speaking appointment, and this is a soothing thought.

I’ve always been shy. I never enjoyed attending loud parties with too many children. During class breaks, I preferred reading and listening to music. Since kindergarten, I’ve been told that this was a problem and that I needed to change. In high school, I was told by a counselor that I would never succeed in life unless I looked people in the eye. (She was clearly a mutant alien who wanted to feed on my soul, and I wasn’t falling for it.) Once I was playing volleyball and she took me aside just to give me a harsh written warning, saying that if my “antisocial” behavior continued, I’d be suspended for two days. I suppose being able to play team sports didn’t count.

I got my revenge when I wrote a graphic novel, inspired by her, whose plot employed some innocent Rube Goldberg machines.

It’s likely that I’ve always been this way. According to research by Jerome Kagan, then a Harvard psychologist, people’s temperament is detectable very early in life and is likely to be partly inherited. In this sense, introversion is best understood as a kind of hypersensitivity. Babies who kicked and screamed more in the face of outside stimulation — those who, in other words, were highly sensitive to it — were likely to grow up to be introverts, he found. Less reactive babies, who needed more stimulation to get them interested and involved, had a bias toward becoming extroverts. This is “the long shadow of temperament,” as he titled his 2004 book, written with Nancy Snidman.

Introversion is not an illness, a social flaw that demands to be cured or concealed. Despite still not looking people in the eye, I’ve managed to live and work as I please. I’ve just assumed that society’s demands for mingling and socializing at all costs were annoyances that I must regard as facts of life.

But last month, after scheduling some lectures for the Goteborg Book Fair in Sweden and finding myself strongly wishing to break a leg or rupture a cerebral artery or two, I had a realization: I would never tell an extrovert what he should do with his life. I would never say: “You need to socialize less. Go home and stay there for a few days, read some books and spend some quality time with yourself. Just stop interacting all the time.”

I know this would be absurd. So why do extroverts feel so free to impose their values on others?


Vanessa Barbara, a novelist and columnist for the Brazilian newspaper O Estado de São Paulo, edits the literary website A Hortaliça.

Alerta de saúde pública

Posted: 25th agosto 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de S.Paulo – Caderno 2
25 de agosto de 2014

por Vanessa Barbara

Há vinte anos, sofro de uma afecção curiosa, uma moléstia pouco estudada que se caracteriza por uma intensa coceira nas mãos ao avistar um objeto redondo (Em casos mais graves, pode se manifestar diante de objetos ovais, cilíndricos e até mesmo quadrados, circunstância na qual se recomenda a internação imediata).

Apesar de ausente dos manuais médicos, a doença faz, todos os dias, centenas de vítimas: são pobres infelizes que vagam com o olhar perdido em torno de quadras de vôlei, ávidos por uma oportunidade de entrar em campo e participar de duas ou três jogadas, mesmo que à custa de roubar a bola alheia e perder o ponto.

Não importam a falta de habilidade, a baixa estatura ou a comorbidade com outras patologias; o vício pelo esporte arrasta consigo hordas de inocentes em busca de alívio temporário, ainda que estes acabem invariavelmente em clínicas de ortopedia, onde também buscam a alegria do tratamento com uma bola medicinal.

De fato, é possível identificar qual a etiologia e a natureza da afecção ortopédica do sujeito apenas olhando para seu estilo de jogo: se ele salta para atacar e se esborracha no chão, pode apostar que tem um problema nos joelhos. Se ele salta para bloquear e, quando cai, leva a mão às costas, é hérnia lombar. Se ele não tem força para atacar e começa subitamente a usar o braço esquerdo, se torcendo inteiro para golpear a bola, é bursite. Levantadores de longa data podem agir de forma a acusar uma retificação cervical grave.

Nada disso é motivo para abandonar o vício; pelo contrário, apenas serve para alimentá-lo. É por isso que os Sescs estão lotados de gente no banco do “próximo”, e por isso há quem acorde cedo e atravesse a cidade para bater uma bolinha inocente que pode se estender até a hora do almoço. Lembro nitidamente de partidas com gente semimorta se arrastando tarde afora, até bem depois de escurecer; lembro de uma vez em que acabou a luz na quadra e nós tentamos continuar a jogar. É com certa vergonha que me recordo de uma proposta coletiva feita ao porteiro do Macabi, que, exausto, implorou que fôssemos embora – se ele nos deixasse jogar só mais um pouquinho ganharia uma carona pra casa, veja só a cara desses infelizes, tenha piedade dessas almas adictas.

O anúncio de “último saque” é o cigarro derradeiro de um condenado à morte, e é por isso que nos arremessamos ao chão e defendemos o ponto final como se a nossa vida dependesse disso. Aliás, fazemos isso com todos os pontos, mesmo quando não está valendo nada e o nosso adversário é um trio de crianças de dez anos. “Café com leite” não existe. E o detalhe de estarmos jogando há vinte anos sem evoluir é praticamente irrelevante.

Consta que, um dia, existiram clínicas de tratamento para o vício, mas alguém teve a ideia de esticar um barbante entre dois postes e a coisa facilmente desandou. 

A vida. Cada vez mais impraticável.

Posted: 21st agosto 2014 by Vanessa Barbara in Sem categoria