O Estado de S.Paulo – Caderno 2
18 de agosto de 2014

por Vanessa Barbara

Sofro de depressão há dez anos. É como estar deitado num colchão d’água e ir afundando, afundando, até não poder mais enxergar o próprio nariz. Há fases boas e fases piores, mas na maior parte do tempo a sensação é a de viver em cima desse colchão: um bocado mais difícil do que caminhar em terra firme, mas possível. E você acaba adquirindo uma técnica própria, um estilo. “É como tentar manter o equilíbrio enquanto dança com um bode”, definiu o jornalista Andrew Solomon, autor de O demônio do meio-dia, um clássico sobre o tema.

Quem tem depressão vive tentando esconder um segredo, como se os outros é que fossem sensíveis demais para absorver a notícia; é difícil falar sobre isso e mais difícil ainda assumir a doença, o que apenas faz reforçá-la.

Em seu recente epílogo à edição brasileira, Solomon afirma que o preconceito em torno da doença mental é uma das batalhas dos direitos civis da nossa geração, sendo associada a fraqueza moral, preguiça e frescura. Também o pesquisador Jonathan Rottenberg, em The Depths, afirma: “As pessoas ainda se sentem inclinadas a sussurrar quando se fala de depressão”.

Solomon confessa que, hoje em dia, acha fácil discorrer sobre o assunto – desde que seja com o verbo no passado. Quando está bem, é capaz de se expor e entrar em detalhes, mas, no meio de uma crise, tudo se torna subitamente vergonhoso. “Percebo o absurdo dessa reação. Este livro foi publicado em 25 idiomas; seria difícil ser ainda mais público a respeito da depressão do que fui. E, contudo, quando tenho de cancelar um plano por causa da minha saúde mental, invento um rosário de doenças somáticas, desculpando-me com casos míticos de gripe ou tornozelos torcidos fictícios.”

Seis semanas mais tarde, ele pode admitir para as pessoas a quem mentiu que estava tendo uma crise, mas, naquele momento em específico, parece impossível ser honesto. “Em parte, isso se deve ao fato implícito de que você tem que estar num estado de espírito vigoroso para se livrar do estigma da depressão.”

Além de injusto, é algo bem ilógico. E pode levar a um ciclo de disparates bastante conhecido pelos deprimidos: se você diz que não está bem e não vai poder fazer determinada coisa, podem chamá-lo de preguiçoso e falar que você só arruma desculpas, então você passa realmente a arrumar desculpas para não ferir a “sensibilidade” dos outros, como se uma otite ou uma pedra no rim fossem mais reais do que uma crise brava de depressão.

É mesmo necessário estar num estado de espírito vigoroso para enfrentar a falta de compreensão alheia.

P.s.: A propósito, recomendo “gripe” para os meninos e “cólica” para as meninas, pois são desculpas com excelente aceitação social. 

Valei-me, Zé da Cândida

Posted: 13th agosto 2014 by Vanessa Barbara in Caderno 2, Crônicas, O Estado de São Paulo
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O Estado de S. Paulo – Caderno 2
11 de agosto de 2014

por Vanessa Barbara

Encarregaram-me da missão de apresentar este novo espaço ao leitor, um terreno onde semanalmente serão cultivadas as mais viçosas crônicas para a apreciação do atilado visitante, seja este um regrado assinante do jornal ou uma alma curiosa em busca de distração; ocorre que sistematicamente me vejo suplantada em qualidade, estilo e retórica por uma figura bastante conhecida nas áreas residenciais da Zona Norte e em outros subúrbios: o Zé da Cândida.

Trata-se de um senhor que dirige pelas ruas um carro de produtos de limpeza com um alto-falante acoplado, através do qual uma gravação anuncia garbosamente “mercadorias da mais alta qualidade pelos menores preços. Aqui tem de tudo: tem cândida, Ajax, cloro, tem desinfetante com oito fragrâncias… Aqui tem tudo a preços de arrasar”, ele repete.

Gostaria de poder dizer, tal qual o Zé da Cândida, que “ninguém pode fazer concorrência à qualidade e aos preços que estamos oferecendo em nossos produtos”.

Mas estaria mentindo.

A verdade é que a minha Kombi de mercadorias pretende fornecer ao leitor um sortimento generoso de advérbios de modo, hipérboles, epístrofes e anacolutos, enquanto a dele “tem sabão dínamo, tem amaciante, tem removedor, sabão de coco, tem limpa-pedras, sabão em pó, álcool perfumado, pasta de brilho também; aqui tem xampu para carros, tem inseticida: acabe com as formigas de sua casa, aqui nós temos de tudo”, exclama. “Estamos oferecendo vassouras de piaçava, vassouras de pelo, vassouras caipiras, rodos, panos de chão, flanelas, e muito mais”.

Donde é possível afirmar que já saio em desvantagem com relação ao Zé da Cândida, que além de tudo é modesto: outro dia me informou que o texto da propaganda não é realmente dele. A fita cassete com a gravação original tem quase dez anos e foi concebida por um locutor anônimo, que gozava de grande popularidade entre os vendedores itinerantes da capital e do interior, mas faleceu há alguns anos.

Sua obra, porém, continua reverberando pelas ruas – coisa que poucos de nós, cronistas, podemos garantir com relação aos nossos textos.

Imortal, sua voz firme segue ecoando pelos quarteirões: “À senhora que é dona de casa, responsável pela economia do lar: não é sempre que passa na sua rua e para pertinho de sua casa um carro lotadinho de produtos de limpeza da mais alta qualidade. Mas venha logo! Nós não podemos ficar muito tempo, outras freguesias estão nos esperando.”

E termina, tal qual um Demóstenes dos desinfetantes: “Mesmo que a senhora não precise de nada, compre para guardar.”

Rogo, portanto, ao senhor ou à senhora que é responsável pela ilustração do lar: dê uma olhada nestas crônicas que passarão na sua rua, pertinho de sua casa. Mesmo que não precise de nada, leia para guardar.

Aqui teremos de tudo.

Agosto de 2014

Aí você está numa festa em Paraty e conhece um amigo de um amigo que foi a Zagreb, na Croácia, e visitou o Museum of Broken Relationships (Museu dos Relacionamentos Malogrados). 

E ele te informa casualmente que o seu buquê de casamento entrou para o acervo do museu, junto com um texto bastante informativo das patéticas circunstâncias pelas quais o objeto virou uma peça digna de apreciação pública.

E você fica impossível de feliz. E quer compartilhar essa descoberta com todo mundo que você conhece e também com os desconhecidos, motivo pelo qual este post é mais público do que as fotos do bebê George.

Mais informações sobre o museu: http://www.hortifruti.org/2012/06/24/o-museu-amor-malogrado

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Um buquê de casamento feito de papel
24 de maio de 2006 – 23 de maio de 2011
São Paulo, Brasil

Sou escritora e me casei com meu editor favorito. Este buquê de tiras de papel foi confeccionado por uma das duas testemunhas (e padrinhos) do nosso casamento, que também é editor.

O relacionamento terminou na véspera do nosso 5o. aniversário, quando descobri que ele estava me traindo e descrevendo em detalhes o ocorrido para um grupo de outros escritores, que o apoiavam.

Um deles era o meu melhor amigo Emilio, que escreveu um romance comigo.

Acho que é isso o que significa machucar-se com um corte de papel.

 

 

As inacessíveis moradias brasileiras (tradução)

Posted: 1st agosto 2014 by Vanessa Barbara in Traduções

International New York Times
30 de julho de 2014

por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil – Moro no Mandaqui, um bairro localizado a onze quilômetros do centro. A estação de metrô mais próxima fica a quatro quilômetros de distância, ou cerca de 30 minutos de ônibus, já que estes são lentos e escassos. Não é o melhor lugar para se viver sem ter um carro. Ainda assim, o preço médio por metro quadrado recentemente aumentou para R$ 6.085. Imóveis em áreas mais nobres da cidade podem custar até R$ 11.179.

Nos últimos seis anos, o valor dos imóveis em São Paulo aumentou 208%, e o preço do aluguel cresceu em 97,5% na área metropolitana. De acordo com o site Numbeo, que compila dados fornecidos pelos usuários, um apartamento de 90 metros quadrados por aqui custa o equivalente a dezesseis anos de uma renda familiar padrão. A título de comparação, esse índice preço-renda é de oito em Nova York, 6,9 em Berlim e apenas três em Chicago. No Brasil, uma família que ganha um salário mínimo (R$ 724) consegue apenas bancar o aluguel de um barraco de três cômodos na Favela Paraisópolis (R$ 620), mas não sobra praticamente nada para viver.

Hoje o Brasil sofre de um déficit habitacional extremo. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, uma em cada três famílias vive em residências inadequadas. O país tem um déficit de 5,8 milhões de habitações, 90% concentrado nas classes mais baixas (famílias que ganham menos de três salários mínimos). Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, 442.710 famílias em São Paulo gastam 30% ou mais de seus salários com o aluguel. Essas famílias correm o risco de se juntar a 44.699 outras que vivem em habitações precárias e 83.011 nas quais pelo menos três membros da família se espremem no mesmo cômodo – uma solução de adensamento excessivo que tenta suprir uma situação sem saída.

Cada vez mais, os pobres são expulsos da cidade e forçados a viver em subúrbios distantes. Cada vez mais esses subúrbios também os expulsam. Em Capão Redondo, a 23 quilômetros do centro, o preço médio do imóvel aumentou 312% nos últimos cinco anos.

Não surpreende que sejamos o país das favelas, dos cortiços urbanos erguidos por cidadãos desesperados utilizando materiais de baixa qualidade como papelão e latão. Elas surgem em áreas sem infraestrutura ou saneamento básico, às vezes vulneráveis a deslizamentos, enchentes e incêndios.

No início de 2009, o governo reconheceu o problema e lançou um programa chamado Minha Casa, Minha Vida. A parceria público-privada almejava reduzir esse déficit facilitando o crédito imobiliário e financiando construções.

Mas, desde o início, o projeto favoreceu famílias que ganhavam mais do que três salários mínimos. Em 2012, após a primeira e a segunda fases do programa, apenas 40 a 45% de todos os contratos foram efetivamente destinados às famílias mais pobres. O projeto parecia ter mais o objetivo de impulsionar a economia do que de ajudar os mais desfavorecidos. Muitos críticos também reclamaram da qualidade das casas de 32 metros quadrados destinadas aos mais pobres, construídas em áreas remotas sem infraestrutura adequada.

Embora o governo tenha prometido corrigir essas deficiências no terceiro estágio do programa, qualquer tipo de reforma irá fatalmente tropeçar na influência do setor imobiliário e empreiteiro. De acordo com o site de jornalismo investigativo Publica, de 2002 a 2012 as quatro maiores empreiteiras do Brasil doaram R$ 479 milhões para campanhas políticas de todos os partidos. Nas últimas eleições municipais em São Paulo, segundo a ONG Repórter Brasil, empresas ligadas ao setor de construção civil e do ramo imobiliário foram responsáveis por 57% de todas as doações de campanha. Essas empresas têm grande interesse em sustentar o velho modelo de urbanização marcado pela segregação e pela desigualdade.

Uma das organizações mais fortes que tenta lidar com esse assunto é o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que alia táticas de negociação ao confronto direto com o governo em questões habitacionais. O grupo conta com 50 mil famílias no país inteiro e 20 mil só em São Paulo, onde, numa quinta-feira chuvosa pouco antes da Copa do Mundo, conseguiu reunir 15 mil pessoas num protesto contra as remoções e os gastos excessivos do evento da FIFA.

A organização defende a ocupação de áreas abandonadas ou mantidas vazias pelas grandes empresas (algumas delas falidas); a resistência às remoções forçadas; e a expropriação de habitações por “necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social”, conforme previsto na nossa Constituição. Seus líderes também citam a Constituição quando dizem que “a propriedade atenderá a sua função social”, e que a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

Por muitos anos, o MTST enfrentou a oposição feroz do público e da mídia. Mas, nos últimos meses, angariou vitórias importantes. Um mês antes da Copa, mais de 2 mil famílias ocuparam uma área abandonada havia anos, próxima ao estádio Itaquera, somando-se a outras oito ocupações em São Paulo. (A maior delas, Nova Palestina, tem aproximadamente 8 mil famílias acampadas desde novembro.) Em questão de semanas, os ativistas de Itaquera conseguiram convencer o governo a construir habitações populares no local, como extensão do programa Minha Casa, Minha Vida. 

O MTST também conquistou mudanças no próprio programa: persuadiu o governo a destinar uma parcela maior de contratos de financiamento habitacional a organizações sociais, em vez de mantê-los quase que inteiramente nas mãos das construtoras, garantindo maior autonomia e, talvez, casas melhores em regiões mais centrais. O MTST também entrou no debate sobre o recém-aprovado Plano Diretor de São Paulo, que irá implementar mais mecanismos de controle da especulação imobiliária, previstos originalmente no Estatuto das Cidades, e irá duplicar o número de Zonas Especiais de Interesse Social na cidade.

Para o grupo, ter uma moradia adequada é um direito humano que não deveria ser ditado unicamente pela lógica de mercado. O argumento é convincente, sobretudo quando se analisam os números: há mais de 6 milhões de habitações vazias no Brasil – mais do que o suficiente para sanar o nosso déficit.


Este texto foi publicado em inglês no The International New York Times do dia 30 de julho de 2014. Tradução da autora.

Brazil’s Unaffordable Homes

Posted: 30th julho 2014 by Vanessa Barbara in New York Times, Reportagens
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International New York Times
July 30, 2014

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — I live in Mandaqui, a district six miles from downtown. The nearest subway station is roughly two miles away, or about 30 minutes by bus, since they’re slow and scarce. It’s not the best place to live if you don’t have a car. Even so, the average price per square foot here recently soared to $250. Real estate in prime areas of the city can now cost as much as $465 per square foot.

In the last six years, housing prices in São Paulo have increased by 208 percent, and the cost of rent has increased 97.5 percent in the metro area. According to the website Numbeo, which compiles user-generated data, a 970-square-foot apartment here costs the equivalent of 16 years of an average family’s total income. By comparison, this cost-to-income ratio is eight in New York, 6.9 in Berlin and only three in Chicago. Someone making the minimum wage in Brazil ($325 a month) can afford to rent only a three-room shack in the crime-ridden Favela Paraisópolis ($280), leaving him practically nothing left over to live on.

Brazil is experiencing a severe housing shortage. According to the Inter-American Development Bank, one in three families lives in inadequate housing. The country has an estimated shortage of 5.8 million units, of which 90 percent is concentrated on lower-income families. According to research by the João Pinheiro Foundation, 442,710 households in São Paulo spend 30 percent or more of their income on rent. These families are in danger of joining 44,699 other households living in precarious conditions and 83,011 in which more than three family members are squeezed into the same bedroom — an overcrowding solution to a dead-end situation.

More and more, the poor are pushed away from the city and forced to live in the far suburbs. And more and more, those suburbs also expel them. In Capão Redondo, 14 miles from downtown, the average housing price increased 312 percent in the last five years.

It’s no wonder we’re the country of favelas, urban slums built by desperate people using poor materials such as cardboard and tin. They pop up in areas without basic infrastructure or sanitation, and are sometimes vulnerable to landslides, floods and fires.

In early 2009, the government took note and began a program called Minha Casa, Minha Vida (My House, My Life). The public-private partnership aimed to reduce this deficit by facilitating credit and financing construction.

But from the beginning, it favored families that earned three times the minimum wage or more. As of 2012, after the first and second stages of the program, only 40 to 45 percent of all contracts were assigned to the poorest families. The program appeared to be more about improving the economy than helping the poor. Many critics also complained about the quality of the 344-square-foot houses destined for the poorest, which were built in remote areas without adequate infrastructure.

Although the government has promised to correct those deficiencies in the third stage of the program, any reforms will most likely be hobbled by the influence of the housing industry. According to the investigative news website Publica, from 2002 to 2012 Brazil’s four biggest construction companies donated $215 million to the political campaigns of all major parties. In the last municipal elections in São Paulo, construction and real estate companies were responsible for 57 percent of donations. These companies have deep interests in sustaining the old urbanization model marked by segregation and inequality.

One of the strongest groups fighting these issues is Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto — the Homeless Workers Movement — which combines negotiation with the government and direct confrontation on housing issues. The group has 50,000 families enrolled as members nationwide and 20,000 in São Paulo, where, on a rainy Thursday just before the World Cup, it led 15,000 people in a protest against evictions and overspending on the event.

The organization also advocates the occupation of abandoned buildings or areas that are kept vacant by real estate companies (some of them bankrupt); the resistance of forced evictions; and the government expropriation of housing for, as written in our Constitution, “public necessity.” Its leaders also quote our Constitution when saying that “property shall observe its social function,” and that the economic order is “intended to ensure everyone a life with dignity, in accordance with the dictates of social justice.”

For many years, the Homeless Workers Movement has endured fierce opposition from the public and the news media. But in the last few months, it has amassed some important victories. A month before the World Cup, more than 2,000 families squatted in an area that had been abandoned for years, near the Itaquera stadium, one of nine occupations in São Paulo. (The biggest of them, Nova Palestina, has had roughly 8,000 families camped out since November.) In a matter of weeks, the protesters near Itaquera got the government to agree to build low-income housing on the site as an extension of the My House, My Life program.

The movement has also effected some changes in the program itself: It has persuaded the government to assign a greater share of the contracts to nonprofit organizations instead of private contractors, which could mean more autonomy and better houses in better neighborhoods. It has also stepped into the debate around the recently approved São Paulo City Plan, which will increase the regulation of land speculation and duplicate the number of Special Zones of Social Interest — areas devoted to low-income housing — in the city.

The group claims that adequate housing is a human right and shouldn’t be ruled by market logic alone. That argument is convincing, especially when you look at the numbers: There are more than six million vacant housing units in Brazil — more than enough to cover our shortage.


A version of this op-ed appears in print on July 31, 2014, in The International New York Times. 

Do Tucuruvi para o mundo

Posted: 20th julho 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
20 de julho de 2014

por Vanessa Barbara

Todos os verões, a Prefeitura de Paris organiza uma caça ao tesouro pelas ruas da cidade. A brincadeira acontece num domingo de manhã e tem a duração total de cinco horas e meia. Há percursos distintos em 14 bairros selecionados, com o apoio de comerciantes, artesãos e personalidades locais, que entregam pistas aos competidores.

Participei da edição de 2012 no 6o. Arrondissement. Era um dia frio e chuvoso, mas havia muita gente fazendo fila na subprefeitura para se inscrever.

O tema da vez era uma carta de amor encontrada ao acaso. Havia versões do jogo em francês e em inglês, com um pequeno mapa anexado.

Minha caça ao tesouro tinha início em frente à igreja de Saint-Sulpice, e as instruções que recebi num folheto pomposo envolviam passar por três pequenas livrarias, entrar pelos portões do jardim de Luxemburgo, dar umas voltas e sair por ruas laterais até o cinema Arlequin.

Desisti logo no começo, após ser bombardeada por textos caramelosos como: “Isto dá uma ideia do buraco que você deixaria no meu coração, caso fosse embora”. Ou: “Você consegue ouvir os pássaros cantando e o vento soprando por entre as folhas das árvores?.”


As pistas oscilavam entre o óbvio e o truncado e eram, por vezes, totalmente desprovidas de interesse. Não havia mistério nem clima de empolgação; muitos seguiram o meu exemplo e abandonaram a busca em favor de um chocolate quente.

(Afinal, o início da carta, em fonte cursiva, dizia que a amada estava escondida nas ruas de Paris e esperaria toda a eternidade; portanto não havia motivo para pressa.)


Não sei se as outras edições foram tão decepcionantes; em todo caso, a caça ao tesouro de Paris me pareceu uma atividade protocolar e insossa que se beneficiaria muito de uma consultoria escoteira ou bandeirante.

Na infância e na adolescência, e depois mais tarde, como voluntária dessas organizações, participei de jogos urbanos muito mais longos e difíceis de se decifrar, com um altíssimo potencial de enurese nas botas, que é a minha medida particular de empolgação de uma boa caça ao tesouro. (Muitas crianças chegam a fazer xixi de tanto medo, outras têm crises coletivas de riso.)

Com uma verba muito menor, nossos especialistas em jogos formulariam um roteiro enxuto e sem afetação, com pistas mais objetivas e intrigantes.

Se conseguíamos fazer isso nas inebriantes ruelas do Tucuruvi, fico só imaginando o estrago realizado no Boulevard Saint-Germain.

**

Aproveito este espaço para deixar agora a minha última pista, um tanto óbvia e desprovida de interesse: paro de escrever hoje esta coluna, em busca de outras aventuras pelas ruelas inebriantes do Tucuruvi e do mundo. Foi um prazer participar dessa caça ao tesouro quinzenal com vocês. 

Importante

Posted: 16th julho 2014 by Vanessa Barbara in Sem categoria

A vida enquanto caça ao tesouro

Posted: 6th julho 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
6 de julho de 2014

por Vanessa Barbara

Na rue de Charenton, número 442, próximo à place de la Bastille, a intrépida locatária se dirigiu ao interfone e digitou o código 7214, que abria a porta. Na entressala, localizou nervosamente a caixa de correios com o nome LEFEBVRE (no bloco da direita, lado inferior esquerdo). A caixa estava trancada, mas metendo a mão por baixo e forçando uma aba no fundo foi possível retirar de dentro um bipe eletrônico verde para abrir a segunda porta.

Atrás da segunda porta, ela seguiu até o fim do corredor de pedra, onde existia uma escada oculta de acesso aos andares superiores.

O apartamento que aluguei pelo site Airbnb se localizava no terceiro andar, à esquerda de quem sobe. A chave estava escondida no vaso inferior da floreira mais próxima da janela, dissimulada sob uma folha de palmeira. Todas essas instruções me foram passadas por e-mail, e eu me senti verdadeiramente merecedora da honraria de abrir a porta.

E fiquei a matutar por que na vida não se fazem mais jogos de caça ao tesouro, daqueles bem intrincados e compridos, de preferência com moedas de chocolate no final.

Por isso utilizo este espaço para exigir das autoridades a promulgação imediata de uma lei garantindo a universalização de acesso à caça ao tesouro, um direito inalienável de todo cidadão, sobretudo nesses tempos em que direitos mais básicos estão sendo desrespeitados.

Vejam: se é para prender sem motivos, que ao menos forneçam uma pista da delegacia de destino em forma de mímica.

Se é para ceder à burocracia sem sentido, que o façam de modo divertido: o cidadão vai protocolar uma coisa qualquer e, no guichê amarelo, recebe um mapa. Precisa decifrá-lo com uma bússola e disparar em direção a outro guichê numa outra repartição, onde um funcionário vestido de mago lhe dará uma tarefa a ser executada em oito minutos. O cidadão é obrigado a fazer um curativo num morador de rua ou doar sangue, por exemplo, e o beneficiário da boa ação lhe entregará o formulário C65-F.

Já um paciente do SUS em emergência médica deverá seguir as seguintes instruções, com vistas a ser atendido:

1. Primeiro, no térreo do pronto-socorro, digitar no interfone a sequência de Fibonacci.

2. Depois, no corredor, procurar um capacho onde está escrito: “chipotle”. Haverá um número na porta levemente solto, atrás do qual se encontra um engenhoso grampo de cabelo que destrancará um alçapão.

3. Entrar pelo alçapão, descer cinco lances de escada e, no 48o. degrau, haverá um ovo.

4. Dentro desse ovo, um filhote de dragão.

5. Dentro do filhote de dragão, uma chave.

6. Dentro da chave, outra chave.

7. A chave dourada abrirá a porta de um consultório médico, mas só os puros de coração poderão ter acesso à terceira porta, esta realmente a entrada da UTI. 

Um placar macabro

Posted: 3rd julho 2014 by Vanessa Barbara in Sem categoria
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GAPP (Grupo de Apoio ao Protesto Popular)
30 de junho de 2014

por Vanessa Barbara

Gostaria de compartilhar os resultados de um levantamento que fiz para o The New York Times sobre as manifestações contra a Copa do Mundo ocorridas em São Paulo desde o começo do ano. Este é o saldo estatístico dos onze atos “Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter Copa”:

– No quesito “coisas quebradas”, foram 10 vidraças de banco, 2 concessionárias, 1 ônibus, 1 viatura policial, 1 guarita da PM e 1 fachada de McDonald’s.

– No quesito “gente quebrada”, foram 508 pessoas detidas e 89 feridas (de acordo com o GAPP, Grupo de Apoio ao Protesto Popular), incluindo um rapaz atingido por munição letal.

Todos os jornais pesquisados souberam informar com precisão o número de bancos vandalizados, bem como o total de detidos. A maioria não se deu ao trabalho de relatar o número de feridos, a não ser de policiais (foram cinco ao todo).

Os veículos também utilizaram as estimativas da Polícia Militar quanto ao número de manifestantes presentes, ainda que esses números fossem visivelmente menores do que se podia verificar no ato. Em muitas ocasiões, a polícia não informou o contingente destacado para o local, mas um cálculo realizado quando essas informações estavam disponíveis indica que houve, em média, uma quantidade bem maior de policiais em relação à de manifestantes – em torno de 20%. E esses são dados conservadores, utilizando apenas os números oficiais.

Em todo caso, o que se pode concluir a partir desses dados é o seguinte:

– Mesmo a polícia estando em maior número e excessivamente paramentada, não é capaz de agir de forma a preservar a integridade física dos manifestantes. Pelo contrário: os números provam que a violência é muito desproporcional aos danos cometidos.

– Se considerarmos o total de 508 detidos para 10 bancos depredados, temos uma fila indiana bastante comprida de vândalos ansiosos para dar sua contribuição ao quebra-quebra. São 50,8 detidos por agência bancária.

– Se, como disse o jogador Ronaldo, “tem que baixar o cacete nos vândalos”, já temos uma proporção de 8,9 feridos por vidraça quebrada. Entre esses feridos se encontram jornalistas, uma grávida e até um padre. 

O missário da torcida

Posted: 3rd julho 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – Especial Copa
1 de julho de 2014

por Vanessa Barbara

No estádio Mané Garrincha, durante a partida entre França e Nigéria, uma dúzia de franceses gritava tresloucadamente. Não diziam apenas “Allez les Bleus” (Avante, Azuis), mas “Qui ne saute pas n’est pas Français” (Quem não pula não é francês), o que muitos julgaram se tratar de um insulto.

Na dúvida, brasileiros puxaram vaias e o grito: “Ni-gé-ria, Ni-gé-ria”. Destituídos de outras ideias, se calaram.

Vez ou outra, os nativos aproveitavam para entoar aquele hino de 1979 que ninguém aguenta mais (“Sou brasileiro”), ainda que ninguém lhes tivesse indagado sua nacionalidade, e ainda que muitos se mostrassem incomodados com essa demonstração de patriotismo coxinha. “O gancho!”, alguém pediu, lembrando que se tratava de uma partida entre França e Nigéria.

A atuação da torcida brasileira tem sido triste. Não estou me referindo apenas a quem acha patriótico vaiar a escalação completa do adversário, assim como seu hino nacional, como aconteceu na partida contra o Chile.

Também não me refiro à pesquisa do Datafolha que mostrou que, nessa mesma partida, 67% dos detentores de ingressos eram brancos e 90% pertenciam à elite.

Estou me concentrando aqui no fato de a Brahma (um dos patrocinadores da seleção) ter decidido contratar animadores profissionais de torcida, com o intuito de combater o desânimo e a falta de criatividade do público pagante. Como numa missa, chegaram a distribuir folhetos com sugestões de gritos diferentes, e houve quem esperasse alguém anunciar ao microfone: “Todos de pé para entoar o cântico n. 44”.

No missário da elite branca nos estádios, começaríamos com os ritos iniciais, quando a comunidade, de pé, seria orientada a não vaiar a entrada da bandeira rival e respeitar o hino alheio. Depois valeria tudo: um cântico de repreensão ao árbitro, um hino de louvor à catimba, um momento de confraternização entre dizimistas.

Os missários seriam impressos em papel pólen de alta gramatura, teriam aroma de semente amazônica de murumuru e custariam um dinheirão ao erário.

Para muitos, melhor seria destituir os atuais proprietários de seus ingressos e promover uma ocupação maciça do estádio pela torcida do Flamengo, do Corinthians ou equivalente.

Ou, vá lá, pelo MTST.