Brasil vs. Brasil (tradução)

Posted: 25th junho 2014 by Vanessa Barbara in Traduções
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The New York Times
27 de junho de 2014

by Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil — Em fevereiro, durante um protesto contra a Copa do Mundo, um grupo de manifestantes estava fugindo de balas de borracha e gás lacrimogêneo quando topou com um bloco de Carnaval de rua. O pessoal carnavalesco procurou abrigo num bar e passaram a aplaudir a repressão policial, com gritos de: “Parabéns! Parabéns!”. Um homem xingou uma manifestante. Ele estava rindo e batendo palmas, os olhos injetados de uma mistura de raiva e alegria.

Cenas parecidas se repetiram pelo país nas últimas semanas. Tem-se a impressão de que não existe apenas uma seleção representando o Brasil nesse período, mas duas: uma formada pelos que apoiam a Copa e outra composta pelos que a criticam.

O lado favorável inclui fãs de futebol apaixonados pelo torneio, bem como os brasileiros alinhados com o governo federal. Eles alegam que se trata de uma ótima oportunidade para a economia e uma boa forma de promover o Brasil no exterior. Também acreditam que nosso país tem recursos suficientes para sediar o torneio e continuar investindo em serviços públicos como saúde e educação. Para eles, não faz sentido culpar a Copa do Mundo pelos nossos problemas domésticos. Eles geralmente usam a palavra “legado”.

“Ninguém, quando voltar do Brasil, sairá daqui e levará na mala estádio, aeroporto, obras de mobilidade urbana”, disse a presidente Dilma Rousseff. Para ela, isso permanece como benefício para a população.

Os apoiadores da Copa dizem que os protestos deviam ter acontecido sete anos atrás; hoje seria tarde demais para reclamar. Os que insistem em expressar seu descontentamento são vistos como inimigos do governo de esquerda – logo, os manifestantes são considerados fascistas ou terroristas.

O time do contra é representado pelos ativistas nas ruas. Eles estão praticamente sozinhos nessa causa. Precisam enfrentar a desaprovação da mídia e a repressão policial; durante o protesto de fevereiro, foram 2.300 policiais para 1.500 manifestantes – mais de um policial por pessoa. Naquele dia, 262 foram detidos.

A principal justificativa usada para reprimir ou desdenhar os manifestantes é considerá-los vândalos e criminosos. Alguns deles de fato utilizam táticas Black Bloc – são em geral muito jovens, por vezes anarquistas, que se vestem de preto e cobrem os rostos. A tática originou-se no interior de movimentos anticapitalistas e antigovernistas na Itália e na Alemanha, no fim dos anos 70. Consiste em aplicar técnicas de defesa como formar uma linha de frente para proteger os manifestantes e erguer barricadas, mas também pode envolver ações ofensivas como engajar-se em confrontos de rua e vandalizar alvos simbólicos como bancos e prédios governamentais.

É claro que os Black Blocs representam uma pequena parcela dos protestos – eu diria que aproximadamente 10%. A maioria dos manifestantes é pacífica e apenas deseja expressar publicamente sua desaprovação com o gasto excessivo de dinheiro público num evento privado. Eles observam que, sete anos atrás, o governo prometeu que “nenhum centavo de dinheiro público” seria gasto na construção ou reforma de estádios. Hoje, quase 97% do investimento nas arenas veio dessa fonte. Dos 25,5 bilhões de dólares que foram gastos com a Copa do Mundo, 85,5% foi retirado dos cofres públicos. Os manifestantes também criticam as remoções forçadas, as mortes dos operários na construção dos estádios, a isenção de impostos e a corrupção.

Em 12 de junho, dia da abertura da Copa, um protesto em São Paulo foi brutalmente reprimido antes mesmo de poder começar. A polícia deteve 33 cidadãos para “averiguação”, ainda que isso seja ilegal conforme a nossa Constituição. Advogados foram proibidos de acompanhar seus clientes, enquanto socorristas e observadores legais também foram agredidos. Inúmeros policiais removeram suas tarjetas de identificação.

A despeito de tudo isso, nossa mídia está cobrindo política como se fosse um evento esportivo. “Residentes 3 x 1 Ativistas”, dizia a manchete recente de um jornal de grande circulação, após um protesto em São Paulo – como se a realidade fosse uma partida de futebol entre a polícia e os manifestantes, com pessoas assistindo das arquibancadas.

O jornal relatou que moradores hostilizaram os ativistas e, em uma cidade, jogaram ovos neles. “Mete bala”, gritou um morador para a polícia, na sacada de um prédio. “Passa por cima deles”, berrou uma senhora de 70 anos, alegando que os brasileiros estavam passando vergonha diante do mundo. Um vendedor aposentado disse ao repórter do New York Times: “Eu só quero que o Brasil vença a Copa e cale a boca desses palhaços que estão protestando”.

Chegamos, portanto, a uma situação de Brasil vs. Brasil, um cenário competitivo em que um lado comemora os danos infligidos ao outro. O que eu não entendo é como os entusiastas da Copa poderiam vencer quando os manifestantes são reprimidos, já que seus próprios direitos civis estão em jogo. Quanto mais eles aplaudem a violação de direitos básicos como a liberdade de expressão e de reunião, mais todos perdem.

Isso ficou claro para mim durante o protesto de fevereiro, quando o bando carnavalesco estava aplaudindo a polícia debaixo do toldo do bar. De repente, sem motivos, a polícia atirou uma bomba de efeito moral dentro do estabelecimento. O homem que, momentos antes, insultara uma manifestante foi o primeiro a ser brutalmente empurrado por um policial.

Mas, já que estamos falando de esportes, vamos ao placar final: desde o começo dos protestos em São Paulo, há seis meses, até o momento em que a seleção brasileira concluiu sua primeira partida, tivemos um total de dez bancos depredados (vidraças quebradas) e duas concessionárias vandalizadas. No mesmo período, 505 pessoas foram detidas e 89 feridas (de acordo com o GAPP, o Grupo de Apoio ao Protesto Popular), incluindo um atingido por munição letal.

Ninguém vai ganhar essa partida.


Este texto foi publicado em inglês no The International New York Times do dia 26 de junho de 2014. Tradução da autora.

Brazil vs. Brazil

Posted: 25th junho 2014 by Vanessa Barbara in New York Times, Reportagens
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The New York Times
27 de junho de 2014

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — In February, during a protest here against the World Cup, demonstrators were running away from rubber bullets and tear gas when they bumped into a group celebrating Carnival. The Carnival people took shelter inside a bar, while cheering the police repression with shouts of: “Well done! Well done!” One man insulted a female demonstrator. He was laughing and clapping, his eyes filled with a mixture of rage and joy.

Similar scenes have been repeated across the nation in the last few weeks. It seems Brazil doesn’t have just one national team representing it during this World Cup; it has two: those who support the tournament, and those who do not.

The pro side includes all soccer fans who are passionate about the World Cup, as well as Brazilians who are aligned with the federal government. They claim that it’s a huge economic opportunity and a good way to promote Brazil abroad. They also believe our country has sufficient resources to host the tournament while still investing in public services like health care and education. For them, it makes no sense blaming the World Cup for our domestic problems. They often use the word “legacy.”

“The airports, subways and stadiums will not go back with the tourists in their suitcases. They will stay here, benefiting us all,” said President Dilma Rousseff.

The supporters say that protests should have happened seven years ago; now it’s too late to complain. Those who continue in their opposition are seen as enemies of the left-wing government — hence, protesters are considered fascists or terrorists.

The other team is represented by the activists on the streets. They are almost alone in their struggle. They face the media’s disapproval and police repression; during one February protest, there were reportedly 2,300 police officers for 1,500 protesters — more than one officer for each demonstrator. That day, 262 people were arrested.

The main reason for repressing or dismissing the protesters is that they are seen as vandals and criminals. Some of them — usually young people, many of them anarchists, who dress in black and cover their faces — do use what are called “Black Bloc” tactics. These originated in anticapitalist and antigovernment movements in Italy and Germany in the late 1970s and early ’80s. They consist of defensive tactics like forming a front line to protect demonstrators and building barricades, as well as offensive actions such as street fighting and vandalizing symbolic targets like government buildings or banks.

Of course, the Black Blocs represent a small part of the rallies — I’d say roughly 10 percent. Most of the demonstrators are peaceful and just want to openly disapprove of the excessive spending of public money on a private event. They point out that, seven years ago, the government promised that “not a single cent of public funds” would be spent building or refurbishing stadiums. But almost 97 percent of the investment in the arenas has come from taxpayers’ money. Of the World Cup’s total cost of $11.5 billion, 85.5 percent has come from public funds. The protesters also speak out against forced evictions, deaths of construction workers, tax exemptions and corruption.

On June 12, the first day of the World Cup, a protest in São Paulo was brutally repressed before it could even start. The police detained 33 citizens for “verification purposes,” even though this is illegal under our Constitution. Lawyers were denied access to their clients, while first- aid workers and legal observers were also attacked. Several police officers removed their identification tags.

Despite these problems, our news media is covering politics as if it were a sporting event. “Residents 3 vs. Activists 1,” read a recent headline in one major newspaper, after a protest in São Paulo — as though it was a soccer match between police officers and protesters, with people watching from the stands.

The newspaper said that residents harassed protesters and, in one city, threw eggs at them. “Shoot them!” a man yelled to the police from his window. “Crush them!” shouted a 70-year-old woman, claiming that Brazilians were embarrassing themselves in front of the world. A retired salesman told a New York Times reporter, “I just want Brazil to win the cup in order to silence these clowns who are protesting.”

So we’ve reached a Brazil vs. Brazil situation, a competitive scenario in which one side celebrates the harms done to the other. What I don’t understand is how the pro-World Cup people could possibly win when the protesters are repressed, since their own civil rights are also at stake. The more they celebrate the violation of basic rights like freedom of expression and the right to assemble, the more everybody loses.

This became clear to me during that February protest, when the Carnival group was cheering on the police from the shelter of a bar. Suddenly, for no apparent reason, the police threw a percussion grenade inside the bar. The man who, moments before, had insulted a female demonstrator, was the first to be brutally pushed by a police officer.

But since we’re on the sports field, this is the score: From the beginning of the protests six months ago to the time Brazil’s team finished its first match, in São Paulo we’ve had a total of 10 banks vandalized (front glass shattered) and two car dealerships damaged. In the same period, 505 people were arrested here and 89 injured (according to GAPP, a group of first-aid volunteers), including one shot with real bullets.

No one is going to win this game.


Vanessa Barbara, a novelist and columnist for the Brazilian newspaper Folha de São Paulo, edits the literary website A Hortaliça.

Campeões do pior (tradução)

Posted: 24th junho 2014 by Vanessa Barbara in Reportagens
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Svenska Dagbladet


Jornal Svenska Dagbladet

11 de junho de 2014

por Vanessa Barbara

Sete anos atrás, quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo FIFA 2014, o ministro do Esporte Orlando Silva prometeu que “nenhum centavo de dinheiro público” seria gasto na construção ou na reforma dos estádios. Segundo ele, tudo viria da iniciativa privada.

Hoje, quase 97% dos investimentos nos doze estádios veio do dinheiro dos contribuintes. E isso incluindo as três arenas privadas.

A Copa do Mundo irá custar 25,5 bilhões de reais ao Brasil, dos quais 85,5% de recursos públicos, sejam de financiamento federal ou dos orçamentos municipal ou estadual. Isso sem contar o montante de 1,1 bilhão de reais em isenções fiscais concedidas pelo governo federal à FIFA e suas parceiras.

Oito anos atrás, na Alemanha, as instalações esportivas custaram 2,2 bilhões de dólares (4,8 bilhões de reais), mas os clubes e os investidores privados financiaram 60% do total. Mais tarde, na África do Sul, a construção e reforma dos estádios alcançou um montante de 2,7 bilhões de dólares (5,9 bilhões de reais), a maior parte de fontes públicas. O que o país africano gastou para sediar o evento chegou próximo a 25% do seu orçamento anual de educação, um patamar que veremos ser superado no Brasil, onde o total de recursos será igual a 27% do orçamento federal de educação. (Na conta não entram os orçamentos municipais e estaduais.)

A rigor, um terço do orçamento total foi investido em projetos de infraestrutura, como soluções de mobilidade urbana para as cidades-sede. Em São Paulo, de acordo com a última Matriz de Responsabilidades – publicada pelo governo federal em novembro do ano passado –, 548 milhões de reais foram utilizados para promover intervenções viárias no entorno do estádio. E só. Nada foi investido no nosso sistema metroviário superlotado ou em corredores de ônibus. O antigo projeto de um monotrilho ligando o aeroporto ao metrô foi abandonado devido à lentidão das obras e sucessivos adiamentos.

Ano passado, catorze projetos de mobilidade urbana foram cortados do orçamento da Copa, a maioria deles monotrilhos, VLTs (veículo leve sobre trilhos) e corredores de ônibus. Para a cidade de Manaus, por exemplo, não houve nenhum investimento nessa área. Os projetos remanescentes se restringem aos arredores dos estádios – em outras palavras, o importante agora é garantir o acesso às arenas, não melhorar a mobilidade urbana em geral.

E assim se foi um terço dos 25,5 bilhões de reais. Dos recursos restantes, 30% foi alocado para melhoria dos aeroportos e 7% para segurança (como dito antes, 30% foi empregado nos estádios). Os investimentos privados se concentraram nos aeroportos, enquanto os governos locais ficaram totalmente responsáveis pelos setores de telecomunicações (182 milhões de dólares) e segurança (860 milhões de dólares). Nos últimos anos, o orçamento oficial foi constantemente atualizado e continuou crescendo, a ponto de um consultor alemão afirmar a uma revista britânica que “dinheiro claramente não é um problema no Brasil. Eu não sei de onde eles tiram, mas estão gastando uma quantidade incrível na Copa do Mundo.”

E ainda assim, a maior parte do trabalho está longe de ser concluída.

Nosso estádio mais caro, o Mané Garrincha, localizado em Brasília, custou 1,4 bilhão de reais. Foi inteiramente construído usando o dinheiro dos contribuintes do Distrito Federal, a um custo de 22.644,96 reais por assento.

Menos de oito meses após a inauguração, o teto apresentou goteiras. Trabalhadores foram vistos enxugando o chão durante uma partida oficial da Copa das Confederações. Recentemente, o Tribunal de Contas do Distrito Federal encontrou evidências de 337 milhões em superfaturamento, que ainda estão sendo investigadas. A auditoria revelou inúmeras irregularidades na construção do estádio, como compras inadequadas de material, erros graves nos cálculos do custos de frete, além de dispensas em multas por atraso nas entregas e um prazo perdido no requerimento de isenção de impostos.

Da mesma forma, o projeto para um sistema de VLT em Brasília foi cortado em função de irregularidades no processo de licitação. (Suspeita-se que houve transferência de recursos entre os dois principais competidores na disputa.)

E não é só isso: ano passado, após um escândalo público, o governo de Brasília teve de cancelar a licitação para a compra de 17 mil capas de chuva, que seriam distribuídas à polícia – o custo total era de 5,35 milhões de reais. O preço de cada capa: 315 reais. Numa manobra quase marxista (Groucho, não Karl), tentaram até mesmo convencer a população da alta qualidade do produto: “É uma capa especial, com sistema reflexivo, que permite exercer a atividade policial, correr, pular muro, tem encaixe para painel balístico”, explicaram. Ninguém engoliu. Possivelmente porque a Copa será disputada num período de seca.

**

Em janeiro, o presidente da FIFA, Joseph Blatter, disse que o Brasil estava mais atrasado nos preparativos para a Copa do Mundo do que qualquer outra nação sede, mesmo tendo tido sete anos para se aprontar. Em março, o secretário-geral da FIFA Jérôme Valcke sugeriu que poderíamos ser “os piores organizadores do pior evento de todos os tempos”.

Concordo: até o momento, oito trabalhadores morreram na construção dos estádios. De acordo com a Coordenação Nacional dos Comitês Populares da Copa, ao todo 250 mil pessoas foram removidas à força de suas casas para dar espaço ao megaevento futebolístico. Esses despejos foram frequentemente marcados por violência policial e desrespeito aos direitos humanos.

Não que esperássemos algo diferente. Afinal, vivemos num país em que até as crianças sabem o significado de “fraude na licitação”, “caixa dois”, “sonegação”, “extorsão” e “corrupção”. Outro dia, meu sobrinho de quatro anos estava brincando na sala com seus bloquinhos de madeira e me perguntou o que eram “estádios superfaturados”. Juntos simulamos um colapso estrutural causado por materiais de péssima qualidade e planejamento malfeito.

Aqueles que levantam a voz contra o gasto excessivo, as remoções forçadas, a violência da polícia, a corrupção e a desigualdade não encontram muita ressonância. Ainda que os protestos  tenham aumentado, o governo acena com mais repressão policial, com medo de que alguém estrague a festa bilionária. Até mesmo manifestantes pacíficos têm sido tratados como terroristas, e o governo decidiu empregar o Exército para garantir a segurança durante a Copa.

Enquanto isso, os fãs do futebol lutam para comprar seus ingressos, que são caros e disputados. Um amigo só conseguiu o seu para Coreia do Sul vs. Bélgica (o menos desejado dos jogos que acontecem em São Paulo), e os meus foram para três partidas em lugares a até mil quilômetros de distância de casa. Cada ingresso me custou em média 380 reais, o que equivale a metade do nosso salário mínimo mensal. É virtualmente impossível conseguir ingressos para as partidas do Brasil.

A meu ver, já somos os campeões do pior.

 


Este texto foi publicado originalmente no jornal Svenska Dagbladet, da Suécia, no dia 11 de junho de 2014. Tradução do original em inglês: Giovane Salimena.

Champions of the worst

Posted: 23rd junho 2014 by Vanessa Barbara in Reportagens
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Svenska Dagbladet

Svenska Dagbladet (Sweden)
June 11, 2014

Text in Swedish:
http://www.svd.se/kultur/brasilien-redan-varldsmastare_3649296.svd
Translation: Clemens Poellinger

by Vanessa Barbara

Seven years ago, right after Brazil was chosen as host for the 2014 FIFA World Cup, the Minister of Sport Orlando Silva promised that “not a single cent of public funds” would be spent building or reforming stadiums. “All money will come from private sources”, he said.

Today, nearly a month from the event, almost 97% of the investment in the twelve stadiums has come from taxpayer’s money. And that’s including the three private arenas.

The next FIFA World Cup will cost around $12 billion to Brazil, of which 85,5 percent from public funds, either provided by city or state budgets, federal financing, or tax exemptions. The expenditure on stadiums corresponds to $4bn of the total bill.

Eight years ago, in Germany, sports venues had cost $2.2bn, but clubs and private investors financed 60 percent of the total. Later, in South Africa, the building and upgrading of stadiums had amounted to $2,7bn, mostly from public sources. What the African country had spent to host the event was close to 25 percent of its annual education budget, a figure we’ll see topped in Brazil, where total funds will be equivalent to 27 percent of the national education budget.

Officially one-third of the total bill has been invested in infrastructure projects, such as urban mobility solutions for the host cities. In São Paulo, according to the Responsibilities Matrix issued by the federal government, $250 million have been used to improve the roadways around the stadium. And that’s all. Nothing was invested in our overcrowded subway system or in bus corridors. The old project of a monorail connecting the city airport to the subway was abandoned due to the slow pace of work, after successive delays.

Last year, fourteen projects on urban mobility were cut from the World Cup budget, most of them monorails, light rails and bus corridors. The city of Manaus, Amazonas’ capital, for instance, was left without any investments in that field. The remaining projects are restricted to the stadium’s vicinities – in other words, the important now is to guarantee access to the arenas, not to improve general urban mobility.

And there goes roughly one-third of the $12bn. Of the remaining funds, 30 percent were allocated to improvements in airports, and 7 percent to security measures (as I said earlier, another 30 percent was employed in stadiums). Private investments concentrated in the airports, while local governments were fully responsible for telecommunications ($182mi) and security ($860mi). The official budget is constantly being updated and keeps growing, to the point that a German consultant confessed to a British magazine: “Money clearly is not an issue in Brazil. I don’t know where they get it from, but they are spending an incredible amount of money on the World Cup.”

And yet, most of the work is far from being done.

Our most expensive stadium, Mané Garrincha, located at the nation’s capital, Brasília, has cost $720mi. It was entirely built using the city’s taxpayer’s money, at a rate of $8,307 per seat. Less than eight months after its opening, it had a leaking roof. Employers had to mop up the floor during an official Confederations Cup match. Recently, the Court of Auditors of the Federal District found evidence of $185mi in over billing, which is still being investigated. The auditing revealed a lot of irregularities in the venue’s construction, such as improper purchases of equipment, serious shipping miscalculations, plus allowances for late delivery penalties and a delayed request for tax exemptions.

Likewise, the project of a light rail system in Brasília was cut due to alleged irregularities in the bidding process. (It is suspected that there has been a transfer of funds between the two main competitors in the tender.)

And there’s more: last year, after a public scandal, Brasília’s government had to cancel the bidding for the purchase of 17,000 raincoats, which would be distributed to the police – the total budget was $2,3mi. The price of each raincoat: $140. In a rather Marxist move (Groucho’s, not Karl’s), they even tried to convince the public of the product’s fine quality: “These raincoats, equipped with reflective high-performance strips of material, were labeled Safety Apparel with High Visibility, intended for traffic police and traffic aids”, they said. Nobody fell for it. Possibly because the tournament will be played in the dry season.

**

Last January, the president of FIFA, Joseph Blatter, said Brazil was further behind in their arrangements for the World Cup than any previous host nation, even though it had seven years to prepare. In March, FIFA’s secretary-general Jérôme Valcke implied we could be “the worst organizers of the worst event ever”.

I agree: until now, eight workers have died building the venues. According to the National Coordination of World Cup Popular Committees, a total of 250,000 people are threatened or have been forcibly removed from their homes to make way for the soccer mega-event. These evictions have been often marked by police brutality and disrespect for human rights.

Not that we would expect otherwise. After all, we live in a country where children of all ages know the meaning of “bid-rigging”, “slush-fund”, “tax evasion”, “extortion”, and “corruption”. Just the other day, my 4-year-old nephew was playing with his building blocks in the living room and asked me what was the meaning of “overpriced stadium”. Together we’ve enacted a collapse caused by poor construction materials and sloppy planning.

Those who speak up against excessive spending, forced evictions, police violence, corruption and inequality don’t have much resonance. Even though demonstrations are getting bigger, the government is waving with police repression, fearing that someone would spoil that billionaire party. Even pacific demonstrators have been treated as terrorists, and the government has settled on the use of the Army to ensure public security during the World Cup.

In the meantime, soccer fans struggle to buy their tickets, which are pricy and scarce. A friend of mine got one only for South Korea vs. Belgium (the least desired of the games occurring in São Paulo), and I managed to buy three for matches being held at locations as far as 1,000 kilometers from home. Each ticket has cost me an average of $170, which is half our monthly minimum wage. It’s virtually impossible to get tickets for Brazil’s matches.

As far as I’m concerned, we’re already champions of the worst World Cup ever.

Guia prático da Copa

Posted: 23rd junho 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
22 de junho de 2014

por Vanessa Barbara

Com vistas a complementar o Manual de Procedimentos elaborado pela prefeitura carioca e o Manual do Estrangeiro Assaltado, emitido pela Polícia Civil de São Paulo, aqui vão algumas medidas de precaução voltadas ao torcedor que deseja aproveitar melhor o Mundial no Brasil.

Primeiro: deve-se cogitar a instalação de um bunker caseiro, onde se possam armazenar víveres (amendoins), líquidos (cerveja), um gerador de energia, uma tevê sobressalente, um chinelo da sorte e um desfibrilador programado para agir de forma automática nas disputas de pênaltis. Pedir demissão do emprego é uma opção válida, porém custosa.

Caso o torcedor pretenda comparecer a uma partida no estádio, a estratégia deve ser a de guerrilha urbana. Munido de um capacete, cotoveleiras, vinagre e ingresso, o fã deve estar preparado para encarar não só os congestionamentos como também a equipe de “turismo receptivo” da Copa, que consiste em funcionários altamente treinados (e armados) para conter distúrbios.

Jamais saia de casa vestido de preto, a não ser que queira ser confundido com um torcedor de rúgbi neozelandês ou adepto da tática black bloc.

Se houver ação da polícia ou do Exército, cumpre-se observar uma recomendação dos tempos da Guerra Fria diante da ameaça de hecatombe nuclear: na dúvida, “duck and cover” (abaixe-se e proteja-se). Abstenha-se, portanto, de correr tresloucadamente das bombas, feito um morador depauperado das áreas de remoção da Copa; tampouco procure abrigo em locais fechados.

Prefira encostar nas laterais e se proteger atrás de postes ou bancas de jornal, de preferência com as mãos para cima a fim de parecer mais alto.

O torcedor precavido deve sair de casa com antecedência, dar comida para os peixes e conferir a localização do portão de entrada. Segundo o ex-presidente Lula, são três as opções oficiais de transporte: a pé (descalço), de bicicleta e de jegue.

Tome cuidado ao portar objetos ilegais como vuvuzela, caxirola e camisas falsificadas, mas não se esqueça da máscara de gás modelo GMC-2 com filtro para gases ácidos e vapores orgânicos, além do telefone de um advogado.

Lembrando que a organização do evento precisa de voluntários para efetuar a tradução simultânea dos gritos das ruas aos turistas estrangeiros. Uma proposta de cartilha a ser distribuída pela Fifa dá conta de alguns bordões, como: “Ei, Dilma, vai tomar no…”, que pode ser vertido para o idioma anglo-saxão de forma mais precisa e elegante: “They’re suggesting some curious and specific new hobbies to the President”.

O grito “Não, não, mais aumento não/ O Fernando Haddad é um cabeça de melão” dá espaço para liberdade poética e metrificação a gosto.

Já “Quem não pula quer a Fifa” será oficialmente traduzido da seguinte forma: “They’re exercising for the 2016 Olympics”.

Expressen

Jornal Expressen (Suécia)
1 de junho de 2014

por Vanessa Barbara

Se você pretende participar de uma manifestação no Brasil, é melhor trazer capacete, máscara de gás, óculos de proteção e uma dose extra de coragem na mochila. Você também vai precisar de um documento de identificação e do telefone de um advogado; é recomendável usar tênis de corrida, capa de chuva e roupas velhas – não vista nada preto ou poderá ser confundido com um black bloc. A não ser que você seja mesmo um black bloc: neste caso, esteja pronto para tomar uns socos.

Na verdade, mesmo que você seja um herdeiro pacifista de Mahatma Gandhi, distribuindo flores e tocando a mridanga, esteja preparado para tomar uns socos. Às vezes, nossos protestos se assemelham a guerras: alguém dispara insultos contra a polícia, eles respondem com uma bomba de gás, outro atira pedras nas tropas, e eles passam a atacar todo mundo que estiver em volta, prendendo igualmente cachorros e hidrantes. Muitas vezes um espirro mais forte parece suficiente para dar início à guerra.

Até o momento, em São Paulo, houve seis manifestações contra a Copa do Mundo da FIFA 2014 (além de outros protestos por melhores hospitais, escolas e transporte público). Cada uma delas reuniu em média mil pessoas escoltadas por dois mil policiais, cujo trabalho é manter a ordem a qualquer preço.

Mais manifestações são esperadas nas próximas semanas – contra o gasto abusivo nos estádios, os despejos forçados, a violência policial, a corrupção e a desigualdade. O governo está à beira de decretar estado de emergência, numa medida desesperada para proteger os turistas de cenas de violência e caos, sobretudo dos manifestantes, retratados num recente manual do Ministério da Defesa como “forças opositoras”.

Dois deles já foram presos segundo a antiga e obsoleta Lei de Segurança Nacional, um ordenamento fabricado durante o regime militar. Embora alguns tenham de fato depredado agências bancárias, foram acusados de terrorismo, não de vandalismo. O Congresso Nacional está examinando uma nova lei anti-terrorismo para enquadrar aqueles que “provocarem ou infundirem terror ou pânico generalizado”, uma definição ampla o bastante para incriminar qualquer um nas ruas.

Cinco meses atrás, no primeiro ato contra a Copa do Mundo, houve 128 pessoas detidas. No ato seguinte, 230 pessoas foram levadas às delegacias – mais de 20% de todo o protesto. A lei brasileira proíbe a prisão arbitrária, restringindo as detenções aos que foram pegos em flagrante ou àqueles para os quais foi devidamente expedido um mandado. Mesmo assim, é comum a prática da detenção “para averiguação”. Caso o sujeito se oponha, poderá ser acusado por resistência ou desacato.

Não raro, as forças policiais impedem os advogados de acompanhar as detenções. Também proíbem jornalistas de filmá-los e bloqueiam o trajeto dos protestos com argumentos convincentes, tais como: “Se insistirem em continuar nesse rumo, vamos ‘envelopar’ todo mundo”. Alguns policiais trabalham sem identificação. Certa vez um capitão justificou a transgressão dizendo: “Nós conhecemos todo mundo na tropa, se tiver algum problema é só vir falar comigo”.

Na visão da polícia, tais medidas são necessárias para a proteção da própria tropa e dos “cidadãos de bem”, enquanto manifestantes denunciam abusos frequentes. E assim ambos se veem cada vez mais como inimigos. Cada marcha começa com dúzias de viaturas, motocicletas e helicópteros zunindo ao redor e intimidando de antemão os presentes. Tropas de choque se posicionam na frente, na retaguarda e ao redor das massas, cercando-as. Policiais inspecionam mochilas e fecham estações do metrô. O próprio ar parece belicoso, enquanto os desavisados buscam abrigo e os policiais erguem seus escudos e baixam suas viseiras. Os black blocs também cobrem seus rostos, protegendo assim suas identidades da polícia e seus pulmões das bombas de gás.

Em geral, os manifestantes concordam em marchar pacificamente, mas por vezes uma garrafa é arremessada ou um grupo começa a quebrar as vidraças de um banco, provocando assim uma reação policial indiscriminada. Os mais ferozes respondem com chutes ou atirando mais objetos na polícia, enquanto outros erguem as mãos de modo pacífico – todos são igual e democraticamente atacados com gás, espancados e presos, incluindo jornalistas e advogados. Aqueles que buscam abrigo nas estações do metrô ou dentro de hotéis, mesmo com o consentimento dos proprietários, veem-se muitas vezes encurralados e detidos. Todos são então colocados em ônibus e transferidos para alguma delegacia – nunca é divulgada exatamente qual. Lá os manifestantes são fichados e acusados de vandalismo, terrorismo, associação criminosa e/ou corrupção de menores. Às vezes lhes fazem perguntas sobre seus posicionamentos políticos e conexões com movimentos sociais. Alguns são obrigados a assinar um papel em branco, antes de serem liberados.

Meses atrás, manifestantes fichados em protestos anteriores foram convocados uma hora antes do novo ato, numa tentativa confessa de esvaziá-lo. Embora a polícia esteja oficialmente investigando aqueles que incendeiam lixeiras ou destroem propriedade privada, nenhum policial foi condenado por violência excessiva ou abuso de autoridade em manifestações no último ano. Nesse período, dois manifestantes ficaram cegos de um olho após repressão policial – um estudante de dezoito anos e um fotojornalista – e outro perdeu quatro dentes. (Ele afirmou que os policiais foram tão violentos que conseguiram torcer o pino de titânio de um de seus dentes.)

Intimidação e violência são as duas principais armas para a manutenção da disciplina nas ruas durante a Copa do Mundo. Então, se você pretende vir ao Brasil em breve, é melhor ter seu ingresso sempre à mão para mostrar aos policiais – fora isso, além do repelente, convém trazer máscaras, óculos e capacete. Só para garantir.


Este texto foi publicado originalmente no jornal Expressen, da Suécia, no dia 1 de junho de 2014. Tradução do original em inglês: Giovane Salimena.

New travel requirements to Brazil

Posted: 19th junho 2014 by Vanessa Barbara in Reportagens
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Expressen

Expressen (Sweden)
June 1, 2014

Text in Swedish:
http://www.expressen.se/debatt/overlevnadsguide-till-fotbolls-vm-i-brasilien/
Translation: Ylva Dark

by Vanessa Barbara

If you want to take part on a street demonstration in Brazil, it’s wise to bring a helmet, a gas mask, a pair of protection goggles and extra boldness in your bag. You’ll also need an ID card and a lawyer’s telephone number; it is advisable to wear running shoes, a raincoat, old trousers and t-shirts – don’t wear black or you could be mistaken as a supporter of the black bloc tactic. Unless you’re indeed a black bloc: in this case, be ready to take some punches.

As a matter of fact, even if you are a pacifist heir of Mahatma Gandhi, spreading flowers around and playing mridanga, be ready to take some punches. Sometimes our protests are similar to wars: a man shouts insults at the police, they answer with a gas bomb, another man throws a stone against the troops, and they begin strike everyone around, detaining dogs and hydrants likewise. At times one hard sneeze seems enough to start a war.

Until now, in São Paulo, we’ve had six mass demonstrations against the 2014 FIFA World Cup (besides other protests for better hospitals, schools and public transport). Each one gathered an average of 1,000 people escorted by 2,000 military policemen. Their job is to maintain order at any price.

More demonstrations are expected in the next few weeks – against excessive spending on stadiums, forced evictions, police violence, corruption, and inequality. The government is on the verge of imposing a state of emergency, in a desperate step to protect tourists from scenes of violence and chaos, especially from the protesters, depicted in a recent manual from the Defense Ministry as “opposing forces”.

Demonstrators have already been arrested under the old and disused National Security Law, a rule forged during the military regime. Though some of them actually damaged bank branches, they were charged with terrorism rather than vandalism. National Congress is considering a new anti-terrorist law to impute those who “cause or spread terror and panic”, a definition broad enough to incriminate everyone at the streets.

Five months ago, in the first World Cup demonstration, police detained 128 protesters. In the next one, 230 were taken to the precincts – more than 20 percent of the whole demonstration. Brazilian law prohibits arbitrary detention, limiting arrests to those caught in the act of committing a crime or those for whom a warrant was properly issued. And yet it is common practice for our police to detain “for verification”. If the subject complains, he’s charged for disrespect or resistance.

Brazilian police forces usually prevent lawyers from monitoring the arrests. They forbid journalists from filming them, and obstruct the way for protests with persuasive arguments like: “If you insist on marching this way, we’re going to beat the hell out of you”. Some officers work without identification tags. Once a captain justified this transgression by saying: “We know everybody at the troop, if you have any problem just come to me”.

According to the police, these measures are needed in order to protect themselves and “the good citizens”, while protesters denounce frequent abuses. And so they progressively see one another as enemies. Every march begins with dozens of police cars, motorcycles and helicopters zooming around, causing people to feel already intimidated. Riot troops position themselves in front, behind and at all sides of the masses, trapping them. Security guards inspect the bags and shut off subway stations. The air itself goes belligerent as unwary people look for shelters and officers raise their shields, lowering their helmets. Black blocs also cover their faces, thus protecting their identity from the police and their lungs from the gas bombs.

Demonstrators usually agree on marching peacefully, but sometimes a glass bottle is shattered or a group starts to hammer the windows of a bank, thus prompting an indiscriminate police reaction. Rageful protesters respond by kicking or throwing more objects at the police, while others just raise their hands in a reassuring way – all of them are equally and democratically beaten, gassed and arrested, including journalists and lawyers. Those who seek shelter at subway stations or inside hotels, even with the consent of their proprietors, usually see themselves trapped and detained. All of the detainees are then put on buses and transferred to some police precinct – it’s never divulged which one exactly. There the protesters are filed and accused of vandalism, terrorism, criminal association and/or corruption of minors. Sometimes investigators inquiry about their political views and connections. People may be asked to sign a blank paper before being dismissed.

Two months ago, people filed on previous protests were summoned an hour before the newly scheduled demonstration, in an admitted attempt to disband it. Although the police is officially trying to investigate those who put fire on garbage bins or destroy public and private properties, on the other hand no officer was charged on excessive violence or abuse of authority in the past year. In this period, two protesters became blind of one eye after police repression – one 18-year-old student and one photojournalist – and another one lost four teeth. (He said the policemen were so brutal that they twisted the titanium pin inserted in one of his teeth.)

Intimidation and violence are the two main weapons to maintain discipline at the streets during the World Cup. So if you’re coming to Brazil soon, you’d better have your game tickets ready to show the officers – furthermore, besides the insect repellent, it’s also wise to bring some gas masks, goggles and helmets. Just in case.

Os turistas de Eliézer

Posted: 17th junho 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – Folha na Copa
17 de junho de 2014

por Vanessa Barbara

Ninguém trata os turistas como Eliézer, motorista do ônibus executivo que sai do aeroporto de Salvador, passa por hotéis ao longo da orla e chega à Praça da Sé, depois de aproximadamente 34 km de percurso.

Já na saída, Eliézer pergunta a cada um dos passageiros qual o destino desejado – como não fala inglês, pede ajuda a outros turistas.

No meu caso, chegou a telefonar para o hotel usando o próprio celular: “Boa noite, meu nome é Eliézer, sou motorista da empresa Transalvador, estou transportando uma hóspede de vocês e vou deixá-la no Largo da Piedade”, disse ele, com a clareza e a circunspecção de um lorde. “Gostaria de pedir um ponto de referência do hotel. É próximo ao Bradesco? Ali no Campo da Pólvora? Pronto… perfeito.”

Ele não só indica o caminho como também dá conselhos firmes, tal qual um pai postiço soteropolitano. Quando um rapaz perguntou se poderia caminhar até o hotel em vez de tomar um táxi, ele reagiu com preocupação e me explicou: “É melhor que ele não faça isso. Ali tem muito ladrão”.

Num trajeto que demorou cerca de uma hora e meia, na véspera da partida entre Alemanha e Portugal, Eliézer despachou ao conforto de seus hotéis um total de quinze turistas, entre mexicanos, ingleses e alemães, revisando de vez em quando o trajeto: “Pituba, depois Rio Vermelho… Mar Hotel, Ondina… O senhor vai ficar onde mesmo?”.

A certa altura, chegou a descer do ônibus, atravessar a rua e pedir informações sobre a localização de um albergue.

Aos estrangeiros que desceriam no Pelourinho, rogou que não pedissem indicações a estranhos, mas recorressem a policiais ou taxistas. A um turista apressado, insistiu: “Tenha paciência… Por favor, tenha paciência”.

A linha S10, que opera apenas durante o período da Copa, tem uma tarifa de 28 reais e passa de vinte em vinte minutos. É uma alternativa razoável aos táxis, que, nos quiosques localizados dentro do aeroporto, cobram 130 reais pelo trajeto.

É uma opção também ao metrô de Salvador, que, depois de catorze anos em obras, finalmente foi inaugurado. Por enquanto, o sistema possui 6,6 km de extensão e consumiu 1 bilhão de reais, entre denúncias de superfaturamento e paralisações sucessivas. Nos dias de jogos, será exclusivo para torcedores com ingresso.

Na véspera da partida de ontem, de forma irônica, Eliézer acabou trabalhando até tarde e não sabia como ele próprio voltaria para casa. Talvez precisasse chamar um táxi e pedir reembolso da firma.

Ninguém trata os turistas como Eliézer. Resta saber como ele está sendo tratado. 

Não vai ter clima

Posted: 13th junho 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – Folha na Copa
13 de junho de 2014

por Vanessa Barbara

Hoje, pela primeira vez em seis meses, deixei meus amigos na rua e fui ao estádio. Pela primeira vez, abri mão de cobrir os protestos contra o gasto excessivo de dinheiro público num evento privado, contra as remoções violentas, a repressão, os desmandos da FIFA, e fui sem meu capacete para o lado de lá – o lado de quem não apanha, o de quem tem sempre passagem livre e mais direitos do que estou acostumada a ver.

Torci moderadamente, me arrepiei na hora do hino e pedi pênalti quando alguém caiu um pouco longe da área, quase na marca central do campo. Posso ter questionado, em voz alta, a reputação ilibada do árbitro, e até envolvido a senhora mãe dele em alguma atividade de cunho duvidoso na área do entretenimento íntimo.

Mas não houve jeito: algo em mim morreu da última Copa pra cá.

Talvez porque, há sete anos, tenham nos prometido um evento “sem um centavo de dinheiro público”, e hoje o resultado é 85% do orçamento saído do erário. Talvez por causa da isenção de impostos oferecida cordialmente pelo governo à FIFA, que afinal é uma entidade sem fins lucrativos, quase filantrópica.

Talvez por ter visto a resposta oficial das autoridades a cidadãos que protestavam pacificamente, talvez por haver inalado uma quantidade excessiva de gás lacrimogêneo enquanto exercia o meu direito básico de discordar; enfim, talvez foi por isso que torci hoje com o ânimo de quem está gripado, os ombros caídos, o pensamento lá longe.

De manhã, enquanto eu comia canapés e papeava despreocupadamente com executivos de empresas, 50 dos meus amigos ficaram feridos num protesto que não pôde sequer começar, uma manifestação legítima que se uniu aos metroviários recém-demitidos e contou com a participação de um povo do contra que insiste em sair na rua para apanhar.

Sei que dei uma risada alta e com gosto quando, no início do jogo, falou-se em “um aperto de mão pela paz”, e quando três pombas foram soltas em nome da “tolerância e respeito aos direitos humanos”.

As aves alçaram voo, mas ficaram se debatendo nas paredes do estádio e dentro dos camarotes, procurando saída, a um só tempo desesperadas e cegas.

Temi pelo destino e pela integridade física daquelas três pombas, porque todos nós sabemos o tratamento dado a quem se desvia da rota ou não está mais nos planos oficiais.

Felizmente, desta vez a artilharia antiterrorista não precisou ser acionada. 

Folha de S.Paulo – Revista sãopaulo
8 de junho de 2014

por Vanessa Barbara

Já na entrada do restaurante, um garçom de avental encardido passa carregando um balde d’água, de onde um peixe vivo dá saltos vigorosos no ar. Os clientes fumam sem parar, falam alto e sugam alegremente o macarrão. No corredor há uma parede de aquários ocupados por criaturas supostamente comestíveis – de cara não dá para saber se estamos num restaurante ou num pet shop.

O nome do local é Baoluo Jiulou, um enorme estabelecimento em Xangai frequentado por expatriados e locais. Dizem que o apelido do lugar é “Tardis” (a máquina do tempo da série “Doctor Who”), porque, de fora, não dá para adivinhar a magnitude do salão, com capacidade para trezentos comensais.

Para os ignorantes que não falam xangainês, cantonês ou mandarim, um bom restaurante na China deve possuir duas características: um cardápio em inglês e um garçom bem disposto. Ajuda muito se o menu for ilustrado, mas nenhum desses atrativos pode ser suficiente para garantir que você saiba exatamente o que está comendo.

Os restaurantes costumam servir uma miríade de criaturas pertencentes a todos os reinos, filos e classes animais, vegetais e minerais, como sopa de pepino-do-mar e gônadas frescas de ouriço-do-mar.

Até hoje não sei ao certo tudo o que meu estômago teve de processar durante minhas duas temporadas na China. Lembro em específico de um banquete oferecido pelo reitor da Universidade de Nanquim, no qual foram dispostos dezenove pratos numa mesa circular, que iam desde língua de porco defumada a ovos pretos e tiras de enguia. Dizem que, nessas refeições oficiais, é preciso alternar entre amargo, azedo, picante, doce e salgado.

Eu fechava os olhos e, em nome das relações diplomáticas e da amizade entre as nações, mandava ver.

Comer longe de casa é sempre uma aventura. Na China, os cardápios são muitas vezes traduzidos para o “Chinglish”, um idioma híbrido e enigmático com toques esotéricos. Vi uma sopa chamada “Buddha saltando a muralha” e um prato de nome “O templo explode o cubo de frango”.

A foto parecia interessante, mas acabei declinando da “Cebola explodindo o senado distante”.

Há que se agir com prudência diante de um certo “macarrão avantajado”, e também diante de um “espetinho de criança frita ao molho tártaro”. Deve-se consumir com desconfiança uma tal “fatia de presunto com arteriosclerose em conserva”, uma tigela de “crack com chili” e um “pepino bivalve infectado”. Evite-se igualmente o “dumpling recheado com glândulas digestivas e ovário de crustáceo”.

Na carta de bebidas, as opções podem ser: “suco de laranja”, “suco de limão”, “suco de repolho roxo”, “suco de pepino” e “suco estranho”.

Na dúvida, peça sempre “a mesma coisa que eles estão comendo, só que sem as ventosas”.