Fusca Azul! Pow! Soc! Plaf!

Posted: 27th abril 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
27 de abril de 2014

por Vanessa Barbara

Nem todos conhecem a Brincadeira do Fusca Azul, tradição ancestral que consiste em socar vigorosamente o próximo ao avistar um automóvel da cor e marca supracitados.

Também chamada de “Punch Buggy” e “Beetle Bug”, a galhofa teve origem nos anos 60 como um inocente passatempo de estrada, e foi posteriormente capitalizada pela marca Volkswagen em comerciais de tevê. No livro The Official Rules of Punch-Buggy, Ian Finlayson e Michael Lockhart cogitam que a brincadeira tem raízes no Egito antigo, o que obviamente se trata de uma graçola.

A prática é regida por um único mandamento: “O primeiro a vislumbrar um fusca azul no caminho tem o direito de aplicar um soco no ombro de quem estiver nas redondezas, gritando com fervor: FUSCA AZUL!”. Ao perdedor é vedado retribuir o golpe, a menos que aviste outro VW de tom cerúleo.

Quanto à força utilizada, devem-se observar os preceitos de proporcionalidade, sendo, portanto, pouco recomendável nocautear uma velhinha frágil que atravessava a rua quando, no horizonte, surgiu um garboso “besouro” azul. Inimigos de longa data devem aceitar a brutalidade da pancada como uma dessas coisas da vida que não se pode contestar, como as saladas com rúcula e o time da Portuguesa.

É válido golpear desconhecidos e desafetos sob tal justificativa, embora não conste (ainda) uma cláusula no Código Penal que conceda ao avistamento de um fusca a condição de atenuante em casos de lesão dolosa, sobretudo na região escapular. Alguns juízes, porém, já legislaram a respeito, como no caso “Meirelles vs. Coutinho”, em que este foi acusado de agressão ao colega, mas uma testemunha corroborou o avistamento do fusquinha.

“Mas o senhor réu chegou a gritar: ‘Fusca Azul’?”

“Sim, meritíssimo.”

“Então o declaro inocente. Estão dispensados.”

Outras normas da modalidade dispõem sobre falsos avistamentos; nesse caso, há duas saídas: a vítima pode imediatamente conferir um soco duplo em seu carrasco ou contabilizar o dano sofrido como bônus para o próximo fusca que lhe escapar da vista.

Nas regiões mais abastadas de São Paulo, tem sido cada vez mais difícil vislumbrá-los, mas os fuscas azuis ainda abundam nos rincões da Zona Norte. (Outro dia vi um fusca azul ao lado de uma Kombi verde, e pensei que teria razão em dar uma voadora em alguém, coisa que só não fiz por falta de normatização a respeito.)

A verdade é que não há tristeza maior do que ver um fusca azul e não ter ninguém por perto a quem comunicar tal alegria. Ainda assim, sempre existe a opção de comprar um e passar bem devagar em frente a uma escola, só para ver a magia acontecer. 

Life as a Brazilian woman

Posted: 25th abril 2014 by Vanessa Barbara in New York Times, Reportagens
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The International New York Times
April 24th, 2014

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — Can a misogynistic country have a female president? Brazil proves that the answer is yes. More than three years into the administration of President Dilma Rousseff, not much has changed for Brazilian women. Feminism is still often viewed as ridiculous extremism. Misogyny is rationalized or dismissed as irony, while rape is trivialized, or even excused.

A few years ago, a famous Brazilian comedian joked about the ugliness of victims of rape he saw protesting on the streets. “Why are you complaining?” he asked. “The men who did this don’t deserve to be imprisoned, but hugged.”

Some claimed it was just a joke, but it clearly revealed what Brazilians think about that topic: Come on, men and women are equal now; there’s no need to make such a fuss.

Only that’s still very far from the truth. According to a recent survey by the Institute for Applied Economic Research, 26 percent of Brazilians agree that women who wear revealing clothes deserve to be assaulted. In the same poll, 59 percent said they thought that there would be fewer rapes if women knew how to behave.

Each year, Brazil sells a hyper-sexualized Carnival to tourists, treating women’s bodies as a national attraction. A news website called G1 recently presented its readers with a quiz: “Whose breast is this?” There were close-ups of nude or seminude breasts from the Carnival parade and readers had to guess to which celebrity they belonged. (I got four answers right out of 10. But then I looked at my own and got a little depressed.)

Ours is a nation obsessed by beauty and slenderness à la Gisele Bündchen. Brazil is second only to the United States in the use of plastic surgery, with 1.5 million operations a year. If you become slightly overweight, Brazilians will comment; you will feel bad about your body and start hesitating in the shadows around swimming pools, like a shy hippopotamus.

Lately there’s been an explosion of fitness bloggers whose jobs are — in theory — to give tips on health. But they face frequent accusations of actually being paid to advertise weight loss products like fat-burning supplements and diet shakes. Their websites tell us that a “negative” belly is the key to happiness.

But this pressure is largely directed at women, and men face much less criticism about their looks. Also their salaries are higher than ours; I earn 35 to 50 percent less than my male colleagues, although we cannot say for sure it is a gender issue. Maybe it’s just lack of talent.

Considering how much public attention is paid to the shapes of bellies and breasts here, and how much of the tourism industry is built on Brazilian beauty, the country is oddly sensitive when it comes to other countries objectifying Brazilian women in the very same way. For instance, it seemed a bit hypocritical when, recently, Brazil’s tourism board told Adidas to stop selling two World Cup T-shirts because of their sexual connotations. One of them had the message “I Heart Brazil,” where the heart was an upside-down buttocks of a woman wearing a thong. The other shirt displayed a girl in a bikini and the slogan “Lookin’ to Score.”

Back in 2002, the tourism board also complained when “The Simpsons” made fun of our country by portraying Brazilian TV shows for children as hosted by seminude women doing sexy moves. (It also portrayed taxis that changed their signs to “hostage” — which was considered an outrage, though I personally found it funny.) A few weeks ago, “The Simpsons” aired another episode about Brazil and the World Cup; it showed a lot of gangsters, corrupt officials and, again, seminude presenters of children’s shows. So far there hasn’t been an official statement, but I wouldn’t be surprised if there was.

But all this is a side note compared with matters of much more serious concern. At major tourist destinations like Rio de Janeiro and Salvador, sexual exploitation, trafficking of women and child prostitution are urgent problems. According to Unicef, there are 250,000 children forced into prostitution in Brazil.

Women struggle daily against sexual harassment, domestic violence and emotional abuse. Here in São Paulo, according to the United Nations, a woman is assaulted every 15 seconds. We’ve recently seen an outbreak of sexual harassment cases in the subway; a feminist group even handed out needles to female passengers, advising the women to defend themselves.

Furthermore, a 2011 government report found that 43 percent of all women have suffered some kind of violence in their own homes. Many victims, even those with higher education, are too afraid to report the abuse.

More than seven years ago, the government enacted a federal law increasing the punishment for domestic violence against women. Since then, the “Maria da Penha Law” — named for a woman whose husband shot her, leaving her a paraplegic, then tried to electrocute her when she returned from the hospital, and still remained a free man for two decades — has had positive results. But there’s still a lot to be done.

Here, as in other parts of the world, there’s nothing like the knot in the stomach women get when walking alone at night, when passing a group of men who suddenly stop talking. There’s nothing like being afraid of your own husband. These are the kinds of moments when Ms. Rousseff doesn’t do us any good.


De quem são esses peitos? (tradução)

Posted: 25th abril 2014 by Vanessa Barbara in Traduções
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International New York Times
24 de abril de 2014

SÃO PAULO, Brasil – Pode um país misógino ter uma mulher como presidente? O Brasil é a prova disso. Depois de quase três anos e meio de administração de Dilma Rousseff, pouca coisa mudou para a mulher brasileira. O feminismo ainda é visto como um extremismo ridículo; a misoginia é racionalizada ou descartada como ironia, enquanto o estupro é trivializado, ou mesmo justificado.

Anos atrás, um comediante brasileiro brincou sobre a feiura das vítimas de estupro que viu protestando nas ruas. “Por que estão reclamando?”, perguntou. “O homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço”.

Alguns afirmam que foi só uma piada, mas claramente revela o que os brasileiros pensam do assunto: Vamos lá, homens e mulheres são iguais; não precisa fazer tanto estardalhaço.

Só que isso está bem longe da verdade. De acordo com uma pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 26% dos brasileiros concordam que a mulher que usa roupas curtas merece ser atacada. Na mesma pesquisa, 59% disseram que haveria menos estupro se as mulheres soubessem se comportar.

Todos os anos, o Brasil vende um Carnaval hipersexualizado para os turistas estrangeiros, tratando os corpos femininos como atração nacional. Meses atrás, o site de notícias G1 publicou uma trívia aos leitores: “De quem são esses peitos?”. Havia fotos de seios nus e seminus do desfile de Carnaval e os leitores tinham de adivinhar a que celebridade pertenciam. (Eu acertei quatro de dez, ou melhor, oito de vinte. Depois olhei para os meus próprios e fiquei um pouco deprimida.)

Somos uma nação obcecada pela beleza e magreza feminina à la Gisele Bündchen. O Brasil é o segundo maior do mundo em cirurgia plástica, com 1,5 milhão de operações por ano, perdendo apenas para os Estados Unidos. Somos também o segundo lugar em academias de ginástica, com 23.400 unidades. Por aqui, se você engorda um pouco, as pessoas passam a comentar; você se sente mal com o seu corpo e começa a hesitar na sombra das piscinas, como um hipopótamo tímido.

Recentemente vimos uma explosão de blogueiras de fitness cujo trabalho seria – teoricamente – oferecer dicas de saúde. Mas com frequência elas são acusadas de serem pagas para divulgar produtos de emagrecimento, como termogênicos e diet shakes. Segundo seus blogs, uma barriga negativa é a chave para a felicidade.

Essa pressão é dirigida sobretudo às mulheres, e os homens enfrentam menos críticas à aparência. Também seus salários são maiores que os nossos; eu ganho de 35 a 50% menos que os meus colegas homens, embora não possamos dizer que se trata de uma questão de gênero. Talvez seja só falta de talento.

Considerando o grau de atenção que a opinião pública dá ao formato das barrigas e dos peitos, e o quanto da indústria do turismo é baseada na beleza da mulher brasileira, o país parece ficar estranhamente sensível quando os outros tratam nossas mulheres como objetos. Por exemplo, achei um tanto hipócrita quando, recentemente, o Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) pediu que a Adidas parasse de vender camisetas da Copa do Mundo com conotações sexuais. Uma delas tinha a mensagem “Eu amo o Brasil”, mas o coração foi substituído por um par de glúteos de ponta-cabeça vestindo um fio-dental. A outra camiseta retratava uma garota de biquíni e o slogan: “Lookin’ to Score” [trocadilho entre fazer um gol e pegar uma mulher].

Em 2002, a secretaria de turismo do Rio de Janeiro reclamou quando “Os Simpsons” fez troça do país, insinuando que os programas infantis de tevê eram apresentados por mulheres seminuas fazendo movimentos sensuais. (Também mostrou táxis que trocavam o letreiro para “refém” – o que foi considerado um ultraje, embora eu pessoalmente ache bem engraçado.) Semanas atrás, “Os Simpsons” exibiram outro episódio sobre a Copa do Mundo no Brasil; continha uma porção de traficantes, funcionários corruptos e, mais uma vez, apresentadoras seminuas de programas infantis. Até agora não houve nenhum pronunciamento oficial, mas não me surpreenderia se houvesse.

Tudo isso são notas de rodapé em comparação a temas de maior gravidade. Em destinações turísticas como Rio de Janeiro e Salvador, a exploração sexual, o tráfico de mulheres e a prostituição são assuntos urgentes.

Aqui as mulheres lutam diariamente contra o assédio sexual, a violência doméstica e o abuso emocional. Em São Paulo, segundo a ONU, uma mulher é atacada a cada 15 segundos. Nos últimos meses, houve uma onda de casos de assédio no metrô; um grupo feminista chegou a distribuir agulhas para as passageiras, aconselhando-as a se defenderem.

Além disso, um relatório governamental de 2011 afirmou que 43% das brasileiras sofreu violência em suas próprias casas. Muitas delas, mesmo as mais esclarecidas, têm medo de denunciar o abuso.

Há mais de sete anos, o governo lançou uma lei federal aumentando as penas para a violência contra a mulher. Desde então, a Lei Maria da Penha – batizada em homenagem a uma mulher que foi alvejada pelo marido, ficou paraplégica e depois, ao sair do hospital, quase foi eletrocutada por ele, que continuou fora da cadeia por duas décadas – tem apresentado bons resultados. Mas ainda há muito a ser feito.

Aqui, como em outras partes do mundo, não há nada que se compare ao nó no estômago que as mulheres têm andando sozinhas, à noite, ao passar por um grupo de homens que para de repente de falar. Não há nada como ter medo do próprio marido. Esses são os momentos em que Dilma Rousseff não faz muita diferença.


Este texto foi publicado em inglês no International New York Times do dia 24 de abril de 2014. Tradução da autora.

A coragem de amarelar

Posted: 15th abril 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Revista Viagem & Turismo
Abril de 2014

por Vanessa Barbara 

“Este certificado pertence a Vanessa Barbara, do Brasil, que acaba de enfrentar o medo e abraçar um estado de euforia pulando de bungee jump da ponte Kawarau, o primeiro ponto comercial de salto no mundo. Com a ajuda de uma corda de látex e uma dose de coragem, tal indivíduo realizou uma façanha e deixou de ser mais um zé-ninguém neste planeta.”

São esses os dizeres do diploma que ganhei após fazer um salto na Nova Zelândia, no mês passado. Ou seja: eu não passava de um zé das couves até aquele momento, quando deixei que amarrassem uma corda aos meus pés, subi numa plataforma estreita sobre o rio e mergulhei rumo ao estrelato. Naquele segundo, minha insignificância desapareceu e me enchi de glórias.

Só que a atividade me pareceu tão empolgante quanto comer um prato de mariscos.

O primeiro salto custa 180 dólares neozelandeses (R$ 350), o segundo R$ 90. Primeiro se deve assistir a um vídeo sobre a história do esporte – metade do grupo desistiu já nessa fase – e preencher os dados pessoais numa ficha amarela carinhosamente apelidada de toe-tag (nome das etiquetas de identificação amarradas ao dedão do pé dos cadáveres). Na sequência, há um processo duplo de pesagem. Ganhei um número vermelho na mão esquerda – meu peso, que me acompanhou pelo resto do dia e parecia aumentar quando eu comia demais; na mão direita, marcaram um número azul, que era o código para retirar as fotos após o salto.

Segundo a propaganda, 99% dos clientes afirmam que saltar foi a melhor experiência de suas vidas. É nisso em que eu tentava pensar deitada na plataforma, enquanto os funcionários atavam as minhas pernas e preparavam os equipamentos. Então pediram que me levantasse e chegasse bem perto da borda, o que só dá para fazer dando pequenos e ridículos saltinhos.

Os rapazes que coordenam a operação são chamados de jumpmasters. Eles me orientaram a olhar para a frente, onde havia uma câmera de filmagem, e depois para os meus amigos, que acenavam ao longe. Eu perguntei: “É só pular? É isso?”. Pediram que eu nunca olhasse para baixo, apenas para a frente. Naquele instante, tendo espiado com o canto do olho o rio que corria lá embaixo, todas as células do meu corpo sabiam que estavam fazendo pouquíssimo caso do próprio instinto evolucionário de autoconservação e perpetuação da espécie. À beira de um abismo de 43 metros, minha glândula suprarrenal implorava por clemência, meu sistema nervoso entrava em modo suicídio e o jumpmaster pedia: “Olhe para a frente. Respire fundo. Três, dois, um”.

Então obedeci e, durante a queda livre, tive a incômoda sensação de que o meu cérebro se descolava do crânio a uma velocidade de 80 km/h. Achei que fosse sofrer um aneurisma, senti um aumento brusco da pressão e tive uma forte dor de cabeça que durou o resto da tarde. Foi quando veio o primeiro puxão da corda, depois o segundo e o terceiro. No vídeo, pareço um desconjuntado boneco de posto, e me lembro de pensar: “Que bela ideia. Vou me fingir de morta e esperar que isso acabe logo”.

Então os funcionários vieram me resgatar num bote, eu me joguei no chão do barco feito um saco de batatas e eles perguntaram: “Primeira vez?”. Resposta: “Primeira e última”.

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Todo o marketing do bungee jump se concentra no mito da coragem. Na lojinha de Kawarau, há dezenas de produtos com os dizeres: “Eu consegui” e camisetas que exploram a covardia dos que não pularam: “I was too chicken”, diz uma delas (algo como “Fui um franguinho”, ou “Amarelei”).

Os jumpmasters são orientados a não empurrar ninguém, pois a atividade é sobre “decidir por conta própria”, segundo Henry van Asch, cofundador do AJ Hackett Bungy. “É uma aventura menos física e mais emocional e intelectual. Não chamamos de esporte, mas de desafio pessoal”, ele sublinha, em entrevista a um site. Alguns falam em “inspiração para a vida”.

Segundo antropólogos, o bungee jump surgiu numa tribo de Vanuatu como ritual de iniciação masculina, uma forma de impressionar e desafiar as mulheres. Só os homens pulavam, e quem não conseguia era tachado de covarde.

Na raiz do esporte, o bullying permanece até hoje, disfarçado de audácia.

No meu grupo havia um rapaz que não quis pular e estava confiante e tranquilo dessa decisão; foi o mais corajoso de todos porque enfrentou o julgamento alheio e não se deixou abalar. Não via grande interesse na atividade e contentou-se em fotografar os outros.

Na área de turismo, damos uma ênfase excessiva ao valor da experiência, embora a vida seja feita sobretudo de não experiências, de coisas que optamos por deixar de lado porque não queremos ou não podemos fazer: hipertensos e epilépticos não podem saltar de bungee jump, assim como diabéticos não podem se entupir de doces. Há uma série de aspectos da existência que independem do nosso arbítrio, ao contrário do que acontece dentro do ambiente controlado dos esportes radicais, onde nos sentimos super-heróis capazes de tudo. (Animado, meu guia declarou: “É uma sensação incrível! Você sai de lá achando que é capaz de tudo, tipo… tipo suicídio!”.)

A verdade é que esportes radicais podem ser empolgantes para alguns, mas decepcionantes para outros. Por isso não há lógica em constranger as pessoas, nem em relacionar tais práticas à tenacidade mental do indivíduo.

Pelo contrário: alguns psicólogos sustentam que, ao assumir riscos compulsivamente, as pessoas fogem dos verdadeiros riscos da vida; a ideia é produzir um falso senso de bem-estar e audácia ao encarar apenas perigos artificiais e voluntários. Numa situação de risco verdadeiro que exige coragem ­– posicionar-se diante de uma injustiça, por exemplo –, muitos agem com notável covardia.

São eles que praticam o bullying e precisam rebaixar os outros para se sentir melhores, brandindo um certificado que atesta a relevância existencial de alguém que pagou R$ 350 para mergulhar no vazio com uma corda nos pés.

Folha de S.Paulo – Revista sãopaulo
13 de abril de 2014

por Vanessa Barbara

Há poucas semanas, a revista sãopaulo publicou uma matéria sobre tartarugas abandonadas no lago do parque Piqueri. Seriam cerca de 150 animais que cresceram demais e foram despachados por seus donos, o que configura grave crime ambiental.

Não se pode abandonar uma tartaruga na natureza por vários motivos: primeiro porque, se ela foi criada em cativeiro, terá problemas em se adaptar à vida selvagem e pode morrer. Segundo porque irá desequilibrar o ecossistema local, sobretudo se for um tigre d’água americano, tartaruga nativa do sul dos Estados Unidos, com listras vermelhas abaixo dos olhos.

Muito populares no Brasil, as “orelhas vermelhas” são consideradas pela União Internacional de Conservação da Natureza uma das cem maiores espécies invasoras do mundo. Em matéria publicada no New York Times do dia 22/3, falo da caçada internacional a essa espécie, bem mais esperta e agressiva do que as nativas.

Algumas coisas que aprendi após a pesquisa, sendo dona de duas tartarugas legalizadas (e muito garbosas):

1. Não comprem tartarugas aquáticas como animais de estimação. Legais ou ilegais. São animais que dão trabalho, crescem rapidamente e fazem sujeira; é preciso ter um aquário de 100 litros para que elas tenham uma vida minimamente aceitável. Embora eu goste muitíssimo de Napoleão e Jacinto, não recomendo a compra e sou cada vez mais contrária à comercialização.

2. Embora os criadouros autorizados pelo Ibama façam um bom trabalho na comercialização de tigres d’água brasileiros, pregando o discurso de que assim estariam combatendo o tráfico de espécies invasoras, melhor seria se parassem de se dedicar ao negócio. Porque tartaruga não é pra ser bicho de estimação. Elas merecem viver em seu hábitat de origem.

3. Por último, sobre as infames orelhas vermelhas: que culpa tem a espécie de ter sido exportada? Sei que elas podem destruir um ecossistema, mas precisa decapitá-las, como fazem na Austrália? E depois esmagar o cérebro ainda ativo do animal, que segue consciente e demora para morrer? Precisa congelar as tartarugas até a morte, como no Japão, numa eutanásia considerada cruel, já que elas têm metabolismo lento e sentem as próprias células explodindo? Precisa executá-las com um tiro na cabeça?

As tartarugas, enfim, não têm culpa. Não deviam pagar pela estultice dos seres humanos.

Ps. Se você tem uma orelha vermelha, deve entregá-la ao Ibama ou a um CRAS (Centro de Recuperação de Animais Silvestres), como o do Parque Ecológico do Tietê (tel.: 2958-1477 ramal 226). Se não tem mais condições de criar sua tartaruga nativa, procure alguém que possa adotá-la ou a devolva ao criadouro de origem. Se quiser mesmo ter uma tartaruga, adote (http://mundodastartarugas.forumpratodos.com).

Revista são paulo
30 de março de 2014

por Vanessa Barbara

O trem mal havia deixado a estação Armênia quando um sujeito no vagão informou em voz alta: “Estação Tiradentes”.

Os passageiros se voltaram para ver o que estava havendo. O sujeito continuava impávido, fitando o vazio, como se nada tivesse ocorrido. Alguns se entreolharam e uma mulher trocou de lugar. Em poucos segundos, o trem parou na estação. Três pessoas saíram, as portas se fecharam e a composição seguiu.

“Estação Luz”, anunciou o anônimo, e tornou a calar-se.

Dessa vez, houve menos olhares e alguns suspiros de enfado. Um senhor de meia-idade ergueu os olhos do jornal com uma expressão de vaga curiosidade. O sujeito permanecia impassível, embora transparecesse um leve desconforto. Quando o metrô passou de São Joaquim, porém, ele já bradava o nome das estações vindouras com gosto e desenvoltura, e ninguém mais fazia caso.

O “exercício das estações de metrô” foi prescrito originalmente pelo psicólogo Albert Ellis para seus pacientes nova-iorquinos. O objetivo era demonstrar, na prática, como lidamos de forma irracional até com experiências apenas vagamente incômodas, e como podemos encontrar benefícios surpreendentes quando as enfrentamos.

O desafio é simples: bradar em voz alta o nome da estação seguinte antes do anúncio nos alto-falantes. Só de pensar, a maioria das pessoas experimenta um visível mal-estar ou um medo paralisante do julgamento alheio. Mesmo ao descrever a cena acima, que é fictícia, senti um leve constrangimento.

Contudo, não há nada na tarefa que seja em si apavorante: dentro de um vagão de metrô ninguém se conhece, e todos costumam ignorar comportamentos esquisitos. “Quando há um sem-teto no vagão gritando que Pat Sajak é a segunda vinda do Cristo, um homem lendo uma enorme enciclopédia com inscrições douradas na lombada não chama tanto a atenção”, observou certa vez o jornalista A. J. Jacobs, que optou por ler a Britannica no trem.

Além disso, anunciar as estações até pode até ser considerado algo útil, ainda que francamente idiota. Então para que tanto drama?

“Nada é tão ruim quanto nós antecipamos. Algumas estações mais tarde, eu me levantei e saí do trem, sorrindo para mim mesmo, repleto de serenidade estoica”, declarou Oliver Burkeman, repórter britânico que desempenhou vitoriosamente a missão. “Ninguém no vagão se interessou por isso também.”

É que, em geral, o que de pior pode acontecer em qualquer ocasião é a nossa crença exagerada de como ela vai ser terrível. Só encarando as coisas é que notamos o tamanho dessa distorção.

Para a ciência, passar vergonha faz muito bem.

(Fica a sugestão para o fim de semana.)

Celeste Byers

Celeste Byers


The New York Times

March 22th, 2014

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — AMERICANS are predatory. They invade other countries, prey on native populations and exploit their resources. They are typically voracious, opportunistic and highly adaptive. It is said they are filthy; they can tolerate living in polluted areas and can carry diseases to which locals have no immunity. As we speak, they are causing global ecological damage.

We are talking, obviously, about American red-eared sliders — semiaquatic turtles originally from the southern United States. Over the last few decades, these turtles (officially Trachemys scripta elegans) have spread around the world, prompting some to label the species the reptilian Norway rat (for biologists, this is practically an obscenity). It is listed by the International Union for the Conservation of Nature as one of the 100 worst invasive species in the world. The turtles can be found on every continent but Antarctica, in more than 70 countries and several islands, and in my São Paulo neighborhood.

(There are five of them living on my block. My favorite is a sweet one named Turtle Moses; for reasons that will soon become obvious, their owners will remain anonymous.)

The importation of red-eared sliders is prohibited in Brazil, the European Union and elsewhere. In Australia, people who keep them can face fines of up to $110,000 or five years in jail.

The problem goes back to the late 1950s and ’60s, when turtle farms in the United States started selling red-eared sliders. They seem very appealing as pets: Newborns are bright green little creatures barely larger than coins, with distinctive red stripes behind their eyes. They are cute, lively and easy to handle. However, in a year they double in size, reaching up to 12 inches in diameter. And they can live for 40 years.

They’re called “sliders” for their eagerness to slip off rocks and logs into water when approached. The owner’s required paraphernalia includes a large tank with a dry area, a heater, a powerful filter (turtles make a lot of waste, and their water has to be partially changed every week), two kinds of ultraviolet lamps and many bags of food pellets. That’s more work than many people signed up for, and the pets are often released to the wild.

In 1975 the United States Food and Drug Administration banned the sale of small turtles in hopes of preventing salmonella infections in children. Turtles of all sizes can carry the bacteria, but hatchlings are much more likely to be purchased. As a result, domestic sales dropped, and farms shifted their focus to international markets.

Sales boomed in the late 1980s, after the release of the cartoon comic “Teenage Mutant Ninja Turtles,” starring four brave (and pizza-loving) red-eared sliders. From 1989 to 1997, more than 52 million of the turtles were exported from the United States to foreign markets. When they reached adulthood, the pets were often abandoned at nearby lakes and ponds, introducing American red-eared sliders into other ecosystems.

Today, Australians may be considered the red-eared slider’s biggest predators. “They are tough as old boots,” Scott O’Keeffe, a biosecurity expert, told an Australian newspaper. “They can live in poor water quality and they’ll eat just about anything.” The Department of Agriculture and Food runs a fierce eradication campaign against those the news media calls “illegal immigrants,” “menaces” and “pests.” The official policy is to kill every red-eared slider they find.

Years ago, a newspaper celebrated the capture of a turtle on Christmas Eve: “Having eluded authorities since being smuggled into Australia, the ‘large and exotic’ offender was captured by a Melbourne housewife and will be put down.” By that point, the government had spent five years setting traps for this specific individual and even hired an expert to help take it into custody. “It is believed there is another, smaller red-eared slider turtle in Blackburn Lake,” the article warned. (I’d say “slider” is a suitable name for a notorious outlaw.)

American sliders are considered environmental pests outside their natural range because they compete against native turtles for food, mates, nesting areas and basking sites. They are way smarter and more aggressive than other species, like Trachemys dorbignyi, the Brazilian sliders.

Here in Brazil, owners can face fines of around $210 and up to one year in jail, but it is possible to hand them over and avoid prosecution. In theory, these proscribed turtles would be relocated to zoos or conservationist facilities, although everybody knows they’re full — no vacancies for Americans. According to a biologist from the Brazilian Institute of Environment and Renewable Natural Resources, euthanasia is not the standard policy here, but in a broader sense, it would be preferable to kill these turtles than to let them destroy a whole ecosystem. “In matters of ecological balance, individuals aren’t important,” he said to me.

Even in most of the United States their sales are banned, and in many places, euthanasia is the rule. The standard procedure for putting turtles to sleep, devised by the American Veterinary Medical Association, is rather gruesome: First you sedate the animal, then you decapitate it. Then the humane thing to do is to scramble its still-active brains, for they’re tenacious, stubborn, slow animals to die.

Run, Turtle Moses, run. And find yourself a better P.R. agent.


Vanessa Barbara, a contributing opinion writer, is a novelist and a columnist for the newspaper Folha de São Paulo.

A version of this op-ed appears in print on March 22, 2014, on page A21 of the New York edition with the headline: Beware of Cold-Blooded Americans.

The New York Times
22 de março de 2014

por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brasil ­­— AMERICANOS são predadores. Invadem outros países, aproveitam-se das populações locais e exploram seus recursos. São tipicamente vorazes, oportunistas e altamente adaptáveis. Dizem que são sujos; podem tolerar a vida em áreas poluídas e por vezes carregam doenças às quais os nativos não têm imunidade. Agora mesmo estão causando um grave dano ecológico ao mundo.

Estamos falando obviamente dos tigres d’água americanos, ou orelhas vermelhas – tartarugas semiaquáticas originárias do sul dos Estados Unidos. Nas últimas décadas, esses animais (Trachemys scripta elegans) espalharam-se ao redor do globo, incentivando alguns biólogos a apelidá-los de ratazanas do mundo réptil (o que é praticamente um insulto). Essas tartarugas são listadas pela União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) como uma das cem maiores espécies invasoras do mundo. Hoje são encontradas em todos os continentes, exceto na Antártida, em mais de 70 países e ilhas, e no meu remoto bairro paulistano.

(Há cinco delas vivendo ilegalmente no meu quarteirão. A minha favorita é a doce Tartaruga Moisés; por motivos que logo ficarão óbvios, a identidade de seus donos permanecerá anônima.)

A importação de orelhas vermelhas é proibida no Brasil, na União Europeia e por toda parte. Na Austrália, quem tem o animal em casa está sujeito a multa de até US$ 110 mil ou cinco anos de prisão.

O problema remonta ao fim dos anos 50 e começo dos anos 60, quando criadores americanos passaram a vender as tartarugas da espécie. Elas são bastante atraentes como animais de estimação: os filhotes são criaturas muito verdes do tamanho de moedinhas, com faixas vermelhas perto dos olhos. São fofas, espertas e fáceis de manejar. Contudo, dobram de tamanho no período de um ano, atingindo até 30 centímetros de diâmetro (o tamanho de uma folha de papel A4). E podem viver por 40 anos.

Em inglês, são chamadas de “sliders” (escorregadias) por causa da avidez com que mergulham do alto de pedras e troncos em direção à água quando alguém se aproxima. A parafernália obrigatória do proprietário inclui um aquário grande (mais de 100 litros) com uma área seca, um termostato, um filtro potente (tartarugas fazem uma sujeira atroz e a água tem de ser trocada parcialmente toda semana), dois tipos de lâmpadas ultravioleta e muitos pacotes de ração. É muito mais trabalhoso do que a maioria dos compradores imaginava, e por isso os animais são abandonados na natureza.

Em 1975, a FDA americana proibiu a venda de tartarugas pequenas (com menos de 10 centímetros de casco) no país, numa tentativa de evitar a contaminação por salmonela em crianças. Tartarugas de todos os tamanhos podem carregar a bactéria, mas filhotes são mais populares no mercado de animais de estimação. Como resultado, as vendas domésticas caíram e os criadores mudaram de foco para o mercado estrangeiro.

As vendas dispararam no fim dos anos 80, após o lançamento do desenho animado “Tartarugas Ninja”, cujas protagonistas são quatro orelhas vermelhas corajosas e comedoras de pizza. De 1989 a 1997, mais de 52 milhões de indivíduos foram exportados dos Estados Unidos para o mercado estrangeiro. Quando atingem a idade adulta, as tartarugas são às vezes abandonadas em lagos e rios próximos, introduzindo a espécie em outros ecossistemas.

Hoje os australianos podem ser considerados os maiores predadores das orelhas vermelhas. “Elas são tão resistentes quanto botas velhas”, disse Scott O’Keeffe, especialista em biossegurança, a um jornal local. “Podem viver em águas de péssima qualidade e comem praticamente de tudo.” O Departamento de Agricultura e Alimentação do país empreende uma feroz campanha de erradicação daquelas que a mídia chama de “imigrantes ilegais”, “ameaças”, “impostoras” e “pestes”. A política oficial é matar todas as que forem encontradas.

Anos atrás, um jornal celebrou a captura de uma tartaruga na véspera de Natal: “Tendo logrado escapar das autoridades desde que foi contrabandeada para a Austrália, a ‘grande e exótica’ criminosa foi capturada por uma dona de casa de Melbourne e será sacrificada.” Naquela altura, o governo já tinha passado cinco anos montando armadilhas para esse indivíduo específico, e chegara a contratar um especialista para ajudar a enquadrá-la. “É provável que exista outra tartaruga de orelhas vermelhas, menor, no lago Blackburn”, alertou o artigo. (Eu diria que “slider” é um nome apropriado para foragidas tão notórias.)

As orelhas vermelhas são consideradas pestes ambientais fora de seu habitat natural porque competem com as tartarugas nativas por comida, parceiros, áreas de postura de ovos e lugares ao sol. São muito mais espertas e agressivas que as demais espécies, como o tigre d’água brasileiro (Trachemys dorbignyi).

Aqui no Brasil, os donos de tartarugas ilegais estão sujeitos a multa de 500 reais e até um ano de cadeia, mas é possível entregá-las sem ônus. Em teoria, os quelônios proscritos são transferidos para zoológicos ou criadouros credenciados pelo Ibama, embora todos saibam que esses locais estão lotados – não há mais vagas para americanas. De acordo com um biólogo do Ibama, a eutanásia não é a prática oficial por aqui, mas, do ponto de vista ambiental, é preferível o animal ser abatido do que causar desequilíbrio a todo um ecossistema. “Em matéria de equilíbrio ecológico, o indivíduo não tem importância”, afirmou.

Mesmo na maior parte dos Estados Unidos é proibida a comercialização de orelhas vermelhas e, em vários estados, a eutanásia é a regra. O procedimento padrão para sacrificar tartarugas, de acordo com a Associação Veterinária Americana, é bem atroz: primeiro o animal é sedado, depois decapitado. Então, na sequência, é preciso destruir seu cérebro ainda ativo, pois as tartarugas americanas são animais obstinados, teimosos e difíceis de morrer.

Corra, Tartaruga Moisés, corra. E arrume uma assessoria de imprensa mais decente.


Este texto foi publicado em inglês no New York Times do dia 22 de março de 2014. Tradução da autora.

Síntese de paulistano

Posted: 17th março 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista

Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
16 de março de 2014

por Vanessa Barbara

São Paulo é muito mais do que um homem xingando da janela do carro e estacionando na vaga para deficientes só por cinco minutos para buscar o filho no judô. É mais do que motoristas levantando o vidro blindado quando aparece um vendedor de balas e boatos histéricos repassados pela internet de que bandidos jogam ácido no para-brisas dos carros e sequestram seus filhos e sua bolsa só porque você usa um óculos da Prada.

São Paulo é muito mais do que o ódio por flanelinhas, viciados e “black blocs”, é muito mais do que “bandido bom é bandido morto” e “Gostou? Leva pra casa”. É mais do que linchamento, briga de torcida e morte de ciclistas, é mais do que ônibus incendiados, criminalidade e o Datena gritando: “Onde é que estão os direitos humanos agora?”. É mais do que violência, desigualdade, injustiça.

A cidade que abriga eventos pomposos como Fashion Week, Boat Show e Salão do Automóvel é muito mais do que os 54 shoppings coalhados de seguranças e decorações de Natal que aparecem em outubro.

Também é mais do que uma noiva que gasta R$ 10 mil num vestido e R$ 500 num bolo de isopor, é mais do que um rei do camarote pedindo para trazerem a bebida que pisca. É mais do que universitárias bêbadas que passeiam pela avenida Paulista de limusine e encomendam suas monografias de conclusão de curso por quatro vezes de R$ 600; é mais do que faculdades ruins, alunos indiferentes e professores cansados. Sem contar os livros de autoajuda que prometem enriquecimento rápido e sem rugas.

São Paulo é mais do que subcelebridades do fitness, socialites, maquiagem definitiva e novas tinturas de cabelo; é mais do que Higienópolis, Jardins e Berrini.

É a cidade dos vendedores de picolé e dos carteiros que cantam, dos velhinhos que esperam o supermercado abrir de manhã e saem correndo para entrar na fila do pão; dos barbeiros antigos que cumprimentam os passantes e abrigam desconhecidos quando a chuva aperta. Onde às vezes se divide um guarda-chuva com uma senhora comendo canjica num prato de plástico. É a cidade de gente que adota animais abandonados e conta piadas no aperto do trem.

São Paulo é muito mais do que ódio e intolerância, muito mais do que rotular os outros de fascistas, comunistas, fanáticos, veados ou carolas —é uma cidade com crianças de 4 anos, vira-latas, dançarinos, equilibristas e gente que não dá as costas quando vê algo injusto acontecer.

Ou pelo menos é assim que devia ser.

Diferentes conceitos de êxito

Posted: 14th março 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – online
14 de março de 2014

por Vanessa Barbara

Há menos de três semanas, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o comando da Polícia Militar de São Paulo classificaram como um “sucesso” a operação que terminou com 20% dos manifestantes detidos num protesto contra a Copa do Mundo.

No dia 22 de fevereiro, tropas cercaram e imobilizaram uma grande parcela do ato, sob a alegação de que havia “iminente e grave probabilidade” de vandalismo. De um total de mil participantes, 262 foram para a delegacia. Outros tantos acabaram perseguidos pelas ruas do centro, e houve ao menos uma dezena de feridos. O motivo do propalado êxito? Apenas duas agências bancárias foram depredadas.

Ontem à noite, durante a terceira edição do ato “Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter Copa”, houve só um ferido – um rapaz com um corte na cabeça que disse ter sido agredido por policiais na rua Vergueiro. Durante mais de quatro horas, em torno de 1,5 mil pessoas (segundo estimativas da PM) caminharam pela cidade criticando os gastos com a Copa e pedindo melhorias no transporte público. No trajeto de 10 km, foram escoltados por 2,3 mil policiais, motos, helicópteros e dezenas de viaturas. Praticamente nenhum tumulto foi registrado. Agora, sim, podemos dizer: a operação policial foi um sucesso.

Quem já contabiliza mais de uma dúzia de manifestações desde junho sabe de algumas coisas: primeiro, que há sempre uma forte tensão no ar, um equilíbrio muito frágil que pode explodir a qualquer momento por conta de uma cadeira tombada ou de um sujeito que espirra com desnecessária contundência. Segundo, que o final da manifestação é em grande parte ditado pela polícia. (Os black blocs representam uma parte pequena do conjunto, eu diria que uns 5%.)

Um exemplo: em dezembro do ano passado, o comando da PM informou que o ato não poderia ir até a avenida Paulista por causa da decoração de Natal, e que todos os que descumprissem a ordem seriam “envelopados” (cercados e detidos). Alguns conseguiram ir para o local de metrô e, após o reagrupamento, foram devida (e violentamente) envelopados. Em outra ocasião, a polícia formou uma barreira e impediu a golpes de cassetete o avanço da passeata. Em fevereiro, houve o infame cerco antecipado e a dispersão dos manifestantes com gás lacrimogêneo.

Desta vez, não houve cerceamento. Por volta das 21h, a manifestação, que subia a avenida Rebouças, chegou à Paulista, numa comoção vitoriosa de quem achava que não ia durar nem três quadras. Meia hora depois, em frente ao Masp, o momento que definiu o ato: uma linha de frente formada por jovens (mascarados e não mascarados) decidiu caminhar em direção ao bloqueio da Tropa de Choque. Alguns entoavam “uh, uh, uh”, um conhecido grito dos black blocs. A carnificina já era dada como certa, mas não desta vez: por algum motivo, a barreira policial cedeu e deixou a manifestação passar.

E assim foi: uma caminhada predominantemente pacífica até a praça da Sé, com buzinadas de apoio e incidentes pontuais. O vidro de uma agência bancária foi quebrado e cinco pessoas foram detidas. A polícia também acusou o lançamento de um rojão e um sinalizador. No meio de tudo, alguém perdeu um óculos de grau.

E, pela primeira vez em nove meses, a manifestação terminou, não foi “terminada”.