Loucos de cinema

Posted: 5th março 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo

Folha de S.Paulo – Guia da Folha
28 de fevereiro de 2014

por Vanessa Barbara

Tem o sujeito que pensa que está em casa e faz questão de comentar o filme inteiro em voz alta, perguntando para a pessoa ao lado: “O que foi que ele disse?”, “Mas matou de verdade?” ou “Ela é prima daquele de óculos?”.

Geralmente é o mesmo cidadão que desembrulha uma bala com extrema lentidão, oferece para toda a fileira e por fim decide comê-la, e é quando descobrimos se tratar de um caramelo toffee que passará ao menos 15 minutos sendo mascado vitoriosamente pelo meliante.

Tem o cara que come salgadinho de cebola no cinema, o que exagerou no perfume, o que está gripado e não para de tossir. Sem falar naquele que não desgruda do celular e faz questão de emitir uma luz celestial desde o início dos trailers, amigo de outro que ri pelo nariz, soltando um discreto, porém irritante, ronquinho.

Há quem chore de soluçar e por pouco não se ponha a assoar o nariz num ombro desconhecido; dentre os espectadores solitários, são muitos os que esperam o final dos créditos e o acender das luzes para caçar um olhar de cumplicidade e então comentar: “Pesado, né?”. Alguns assistem ao filme com a concentração de quem resolve um cálculo diferencial.

Quem senta na minha frente costuma ser alguém de 1,84 m com o cabelo fofo e um tique nervoso; quem senta atrás é um jogador de vôlei que cutuca as minhas costas com o joelho pontudo. Do meu lado direito, um sujeito que não compreende a cordial divisão do espaço útil do braço da cadeira —trata-se de um conceito simples que implica em dividir a área longitudinalmente, o que pode acarretar em um incômodo roçar de braços, ou impor uma linha imaginária de latitude a partir da qual eu me apoie na parte dianteira e ele encoste atrás, ou vice-versa.

À minha esquerda, sobra um sujeito que obviamente tem um bebê em casa e só está ali para dormir.

Ventinho bom

Posted: 25th fevereiro 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
23 de fevereiro de 2014

por Vanessa Barbara

O pai estava postado de pé numa grade de saída de ventilação do metrô, na esquina da avenida Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio. Em plena tarde de domingo, aquele senhor de bermuda marrom e camiseta branca – com as pernas um pouco afastadas e o corpo inclinado para a frente – cuspia para baixo.

Ao lado do gradil, a mulher e o filho pequeno observavam. “Vem, Gabriel, vem com o pai aqui”, ele chamou.

O menino parecia receoso; a esposa não dava para saber o que estava pensando, mas incentivou o filho a ir até lá. E ficaram os dois de pernas afastadas, um do lado do outro, cuspindo no vazio.

Podem-se tirar inúmeras conclusões a partir dessa história; por exemplo, é cabível censurar o cuspe em família numa instalação pública ou filosofar sobre a natureza íntima do bafo que sai dos dutos de ventilação: suspiros e espirros de milhões de passageiros do transporte subterrâneo.

Mas meu objetivo aqui é outro. E para melhor ilustrá-lo, contarei uma segunda anedota: a de uma família inteira se divertindo numa dessas saídas de ar. A menina mal sabia andar e ainda assim tropeçava em círculos, maravilhada. O cachorro simplesmente estava sentado se refrescando, de olhos fechados. A mãe gostava de ver a saia inflar, como em “O Pecado Mora ao Lado”. Nisso, uma madame passa e prende o salto numa das frestas. Mas ela consegue se desvencilhar da armadilha e segue andando.

Nos gradis da estação Faria Lima, um dos mais violentos em termos eólicos, os taxistas estão cansados de ver moças desavisadas com a saia lá pelo pescoço. “Todo dia eu vejo muita calcinha”, afirmou um deles, em entrevista a um jornal.

E mais: certa vez amarraram as pontas de um plástico grande numa dessas grades, de modo que, ao ser inflado, o volume ficava parecendo um cachorro. Nos idos de 2008, em Nova York, o artista Joshua Allen Harris utilizou sacos plásticos e fitas adesivas para inflar esculturas na tubulação do metrô – sua obra mais comentada foi um pequeno urso polar que denunciava o aquecimento global, mas eu gosto especialmente de um monstro feito de saco de lixo com mais de 4 metros de altura. E da girafa.

Quando eu era pequena, achava que no fundo do gradil vivia uma criatura misteriosa e ancestral, um Felino laranja que se alimentava de ver a cor das nossas calcinhas.

Estou contando tudo isso por motivos que nem eu poderia decifrar. Talvez porque, neste calor, meu cérebro esteja precisando de um sistema de ventilação mais eficiente.

Pity Brazil’s Military Police

Posted: 19th fevereiro 2014 by Vanessa Barbara in New York Times, Reportagens

International New York Times
February 20th, 2014

Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — In Brazil, police officers kill an average of five people every day. In 2012, according to a security report from the Brazilian Forum on Public Security, 1,890 Brazilians were killed by the police, 351 here in São Paulo. That was around 20 percent of all homicides in the city. At the same time, 11 police officers were killed on duty here and around 100 were executed off-duty, allegedly by organized crime. Police officers are three times more likely to be murdered than the average Brazilian.

Ilustração: David Plunkert

David Plunkert

I once complained about being a writer in Brazil, but it seems our police officers are in considerably worse shape. In São Paulo, lower ranked military police officers earn an annual salary of $15,248, including benefits and danger pay allowances. They work in 12-hour shifts, night and day, for an average of 42 hours a week. But only in theory. Officers claim the rules are often ignored, with extended overtime, short notice of scheduling changes and irregular or no lunch breaks. Some take on additional jobs to supplement their wages, not only as private security guards (which is illegal), but also in a program called “Atividade Delegada,” through which the city hires policemen in their spare time, offering the equivalent of $64 for eight extra hours patrolling the streets.

There are two main kinds of police in Brazil. The civilian police concentrate on criminal investigations, while the military police have the duty of maintaining public order and working to prevent crimes.

The military police are not part of the armed forces, and yet they operate according to military principles of rank and discipline. They cannot strike or unionize, and are subject to a military-style penal code (meaning transgressions at work can be treated as mutiny or treason, and officers are tried in a special court). They are prohibited from “revealing facts or documents that can discredit the police or disrupt hierarchy or discipline.”

They also can’t openly disapprove of the acts of civilian authorities from the executive, legislative or judicial branches of government, and are forbidden to express their personal political opinions. Last year, eight officers from Ceará, in northeastern Brazil, were discharged after taking part in a political meeting. Three others were arrested upon returning from a public meeting to discuss police demilitarization.

As if that weren’t enough, the same Brazilian Forum on Public Security report found that 70 percent of Brazilians distrusted the police. In other words, our police have lost their legitimacy.

“I love my job, I really do,” one member of the military police recently told me. “But our work goes unrecognized. Our errors are scrutinized. We have fractions of a second to decide between accelerating or braking, shooting or retreating; either way we are blamed.”

Another officer complained that the news media gave more attention to cases of police brutality than to the killings of officers. He noted that police officers were sometimes the only agents of the state stationed in poor neighborhoods dominated by organized crime. “Everything is on us.”

But their main complaint is the impunity of criminals. Many believe Brazil’s judicial institutions are too lenient and inefficient. Officers are tired of arresting the same suspects over and over.

According to Adilson Paes, a retired police lieutenant colonel who conducted a study on police brutality, some officers turn vigilante as a result. This was also the conclusion of an investigation into policing in Rio de Janeiro and São Paulo conducted by Human Rights Watch: Many deaths of civilians “resisting arrest” are in fact extrajudicial killings, the report found, and “some police officers are members of ‘death squads,”’ which are “responsible for hundreds of murders each year.”

This often leads to a cycle of retribution between the police and organized crime. Just a month ago, in Campinas, a city 60 miles from São Paulo, a policeman was killed in front of his wife during a robbery; within a few hours, 12 people were found executed — apparently by the police, as revenge. And sometimes corrupt police officers themselves are involved in organized crime.

“We are one of the most violent countries in the world, and the military police are part of that universe,” José Vicente da Silva Filho, a retired police colonel, told TV Folha. “So it would seem difficult to have a much better police force than we have now.”

In São Paulo, many attribute a recent drop in killings by the police to a new rule that forbids officers to transport wounded suspects to the hospital or offer them first aid. It turns out that police officers had been picking up people who had been wounded by the police officers themselves, and then executing them on the way to the hospital. Five months ago, a young man allegedly committed suicide in the back of a police car, after being arrested for robbery. If that’s true, he somehow managed to shoot himself in the head while his hands were cuffed behind his back.

Two years ago, the United Nations Human Rights Council recommended that Brazil abolish its military police; other international groups have criticized the force for beating and torturing detainees. But the discussion here has been polarized. Human rights organizations are often seen as apologists for criminals: “Some believe that investigating and prosecuting police abuses would weaken the hand of law enforcement, and thereby strengthen criminal gangs,” says Human Rights Watch.

But lately, more Brazilians have been taking notice, as police brutality is increasingly directed against journalists and political protesters (many from the middle class), instead of just the same old black and poor citizens who live in favelas.

As a regular attendee of the mass demonstrations that have swept the country since last June, I have witnessed acts of unnecessary violence against unarmed protesters. In that period, a student and a professional photojournalist were both blinded after being hit by flash bombs and rubber bullets. Three weeks ago, the police shot a man who was protesting against the World Cup. He allegedly threatened an officer with a box cutter.

Many officers at the protests work without identification tags and inhibit journalists from filming and taking pictures. It is wise to approach them with your hands in the air, speaking in a reassuring way. In a recent poll, 64 percent of police officers claimed to be unprepared to deal with mass demonstrations.

Now, with the World Cup fast approaching and more demonstrations on the way, there’s a lot of talk about demilitarizing the police. This would grant more labor rights to our officers, releasing them from a military code of conduct and discipline that often involves humiliation and training infused with a war mentality. It would also mean conferring on the civilian justice system the authority to judge all crimes committed by police officers.

This would be a step back from our military dictatorship years and a step toward creating a legitimate police force where officers deal with the civilians not as their enemies but as fellow citizens — even if they have broken the law.


Vanessa Barbara, a novelist, edits the literary Web site A Hortaliça and is a columnist for the newspaper Folha de São Paulo.

O drama da PM brasileira (tradução)

Posted: 19th fevereiro 2014 by Vanessa Barbara in Traduções

International New York Times
20 de fevereiro de 2014

por Vanessa Barbara

SÃO PAULO, Brazil – No Brasil, a polícia mata em média cinco pessoas por dia. Em 2012, de acordo com o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 1.890 pessoas foram mortas pela polícia, 351 em São Paulo. Isso representa 20% de todos os homicídios na cidade. Ao mesmo tempo, 11 policiais foram mortos em serviço e aproximadamente 100 foram executados em horário de folga, provavelmente a mando do crime organizado. Os policiais brasileiros têm três vezes mais chances de serem assassinados do que o cidadão comum.

Uma vez reclamei de como é difícil ser escritor no Brasil, mas parece que nossos policiais estão em uma situação bem mais delicada. Em São Paulo, soldados da PM ganham um salário mensal de R$ 3.023,29, incluindo benefícios e adicional de insalubridade. Trabalham em turnos de doze horas, começando por um período diurno (por exemplo: das 5h45 às 18h), seguido por uma folga de 24 horas, um plantão noturno (17h45 às 6h), e por fim uma folga de 48 horas. Isso resulta numa média de 42 horas de trabalho por semana.

Mas só em teoria. Os policiais reclamam que as regras são por vezes ignoradas, com muitas horas extras, mudanças bruscas na escala e pausas irregulares (ou inexistentes) para almoço. Alguns assumem trabalhos adicionais para cobrir as despesas, não só como seguranças privados (o que é ilegal), mas também num programa chamado “Atividade Delegada”, através do qual a prefeitura contrata policiais em seu tempo livre, oferecendo R$ 156 por um período de oito horas extras patrulhando as ruas.

Há dois tipos principais de polícia no Brasil. A civil se concentra na investigação de crimes, enquanto a militar tem o dever de manter a ordem pública e trabalhar na prevenção de crimes.

A polícia militar não faz parte do Exército, mas opera de acordo com princípios militares de hierarquia e disciplina. Eles não têm direito a fazer greve e formar sindicato, e estão sujeitos a um código penal de aspecto militar (isso quer dizer que transgressões no trabalho podem ser tratadas como motim ou traição, e são julgadas por um tribunal específico). Os policiais não estão autorizados a “publicar, divulgar ou contribuir para a divulgação irrestrita de fatos e documentos que possam concorrer para o desprestígio da Polícia Militar, ferir a hierarquia ou a disciplina”.

Também não podem desconsiderar ou desrespeitar, em público ou pela imprensa, os atos ou decisões das autoridades civis ou dos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, e estão impedidos de expressar suas opiniões políticas. Ano passado, oito policiais do Ceará foram exonerados por participar de uma reunião. Outros três foram presos ao retornar de um debate público sobre a desmilitarização da polícia.

Como se não bastasse, o mesmo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que 70% dos brasileiros não confiavam na polícia. Em outras palavras, a instituição perdeu a legitimidade.

“Eu amo o meu trabalho, de verdade”, um soldado me confessou recentemente. “Mas o reconhecimento é zero. Nossos erros são esmiuçados. Temos frações de segundo para tomar a decisão de acelerar ou brecar, atirar ou recuar; em ambos os casos somos criticados.”

Outro tenente reclamou de que a mídia dá mais atenção para os casos de brutalidade do que para a morte de policiais. Ele lembrou que os policiais são muitas vezes os únicos agentes do Estado presentes nos subúrbios dominados pelo crime organizado. Às vezes se sentem acuados por todos os lados: imprensa, comandantes, políticos, juízes e cidadãos. “Tudo fica nas nossas costas.”

Mas a principal reclamação é a impunidade criminal. Muitos acreditam que o poder judiciário brasileiro é leniente e ineficaz. Os policiais estão cansados de prender os mesmos suspeitos dia após dia.

De acordo com Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado que conduziu um estudo sobre a brutalidade policial, o resultado é que alguns policiais podem decidir virar justiceiros. A mesma conclusão foi obtida num estudo sobre as práticas policiais no Rio e em São Paulo promovido pela organização de direitos humanos Human Rights Watch: segundo o relatório, muitas mortes de cidadãos que “resistiram à prisão” foram, na realidade, execuções extrajudiciais. Além disso, alguns policiais fazem parte de esquadrões de extermínio, “responsáveis por centenas de assassinatos todos os anos”.

Isso incorre, muitas vezes, num ciclo vicioso de vingança entre a polícia e o crime organizado. Mês passado, em Campinas, um policial foi morto na frente da esposa, durante um assalto; em poucas horas, doze pessoas foram executadas – aparentemente como vingança. Às vezes há casos de corrupção e envolvimento da própria polícia no crime organizado.

“Somos um dos países mais violentos do mundo, e a polícia faz parte desse conjunto descontrolado”, declarou o coronel da PM aposentado José Vicente da Silva Filho, em entrevista para a TV Folha. “Então é difícil ter uma polícia tão melhor do que nós temos”.

Em São Paulo, muitos atribuem uma queda recente nas mortes cometidas por policiais a uma lei que proíbe os agentes de transportar suspeitos feridos para o hospital e prestar serviços de primeiros socorros. Ao que parece, os policiais aproveitavam para transportar os suspeitos que eles mesmos feriram e então executá-los a caminho do hospital. Cinco meses atrás, um jovem supostamente cometeu suicídio dentro de uma viatura, após ter sido preso por roubo. Se isso é verdade, ele de algum modo conseguiu atirar na própria cabeça enquanto estava com as mãos algemadas nas costas.

Há dois anos, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas recomendou que o Brasil extinguisse sua polícia militar; outros grupos internacionais criticaram a corporação por espancar e torturar cidadãos sob sua custódia. Mas a discussão permanece polarizada. As organizações de direitos humanos são muitas vezes vistas como apologistas do crime: “Alguns acreditam que investigar e punir abusos policiais enfraqueceria o braço da lei, fortalecendo os criminosos”, declarou o Human Rights Watch.

Hoje em dia, porém, mais e mais brasileiros estão prestando atenção no assunto, conforme a brutalidade policial é dirigida contra jornalistas e manifestantes políticos (muitos da classe média), em vez de atingir os pobres e negros de sempre.

Como participante assídua das manifestações que tomaram o país desde junho, testemunhei inúmeros atos de violência desnecessária contra manifestantes desarmados. Nesse período, um estudante e um fotojornalista profissional ficaram cegos de um olho após serem atingidos por bombas de efeito moral e balas de borracha. Três semanas atrás, a polícia deu dois tiros num rapaz que estava protestando contra a realização da Copa do Mundo. Ele teria ameaçado um policial com um estilete.

Nos protestos, muitos policiais trabalham sem tarjetas de identificação e inibem os jornalistas de filmarem e fotografarem. É recomendável aproximar-se deles com as mãos para o alto, falando de modo calmo e reconfortante. Numa pesquisa recente promovida pela Fundação Getúlio Vargas, 64% dos policiais confessaram estar despreparados para agir em manifestações.

Hoje, com a Copa do Mundo se aproximando e mais manifestações a caminho, há grande discussão sobre a desmilitarização da polícia. Isso poderia garantir mais direitos trabalhistas aos nossos profissionais, libertando-os de um código militar de conduta e disciplina que muitas vezes pressupõe um treinamento humilhante e marcado pela mentalidade de guerra. Também significaria conferir ao sistema comum de justiça a autoridade para julgar os crimes cometidos pelos policiais.

Isso pode ser uma importante tomada de distância do período da ditadura militar e um passo adiante rumo à criação de uma força policial legítima em que os policiais possam lidar com os civis não como seus inimigos, mas como cidadãos iguais a eles – ainda que tenham infringido a lei.


Este texto foi publicado em inglês no International New York Times do dia 20 de fevereiro de 2014. Tradução da autora.

Deixe a direita livre

Posted: 9th fevereiro 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
9 de fevereiro de 2013

por Vanessa Barbara

Uma das maneiras mais fáceis de identificar gente pobre em um shopping de luxo é analisar a conduta na escada rolante: se o sujeito encostar à direita, dando passagem para quem tem pressa, pode contar que é ralé.

Tal comportamento, praticado de forma automática por esta colunista, é indicativo do desagradável hábito de frequentar trens e metrôs (onde o procedimento é manter a esquerda livre para circulação), podendo ser tomado como um sinal de que o meliante estaria ali para participar de rolezinhos, causar tumulto e incomodar gente de bem.

Outra maneira segura de apontar desajuste social em locais chiques é postar um informante no banheiro. Quem vem da periferia pode ir direto para o reservado a fim de lavar o rosto, aliviar a bexiga, pentear o cabelo, fazer a toalete e encher a garrafa de água no bebedouro.

Gente diferenciada também costuma matutar como faz para abrir a torneira; hoje em dia, o ato de lavar as mãos exige muito insight para não passar vergonha, enquanto abanamos em desespero as mãos em busca de um sensor que ative o jato de água ou de sabonete líquido. Às vezes há dissimuladas alavancas, pedais ou botões.

Em suma, qualquer pessoa que demonstre incerteza diante da pia deve ser detida para averiguações.

(Até no âmbito mais privado pode haver armadilhas para o populacho; basta deixar registrado que, no banheiro de um hotel, em Londres, puxei uma cordinha vermelha achando que era a descarga. E disparei um alarme.)

Nas lojas, é altamente suspeito aquele que demonstra surpresa diante do preço de um produto, ou mesmo que não entende quando o vendedor diz que um vestido custa “sete quatro cinco”. (Em tempo: não é R$ 7,45, e sim R$ 745,00, mas você pode pagar em seis vezes no cartão.)

Aliás, quando o vendedor faz uma breve análise visual do cliente e começa a falar em crediário e promoção, pode apostar que alguém no balcão já apertou um botão vermelho para chamar a segurança. O fato de haver um homem de terno com walkie-talkie na mão atrás de você o tempo inteiro também não é bom sinal.

Outras atitudes suspeitas: perguntar se tem algo mais “em conta”, trazer a própria sacola de casa, rir do preço achando que é piada. Por experiência própria, não ajuda bradar: “É noventa? Pois eu pago quinze”.

Não é fino andar de mochila, usar boné de aba reta, fazer chacota das blusas na vitrine e apontar uma costura malfeita, dizendo que “isso aqui virou o Brás”.

Grande indicativo de pobreza é pedir para passar dez reais no crédito – sobretudo se, na hora de sacar o cartão, você tirar sem querer da bolsa o Bilhete Único. 

As melhores caçambas da cidade

Posted: 26th janeiro 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
26 de janeiro de 2013

por Vanessa Barbara

É na alameda Lorena que se encontram as caçambas mais disputadas da cidade. Flanando pelas ruas dos Jardins, o munícipe mais atento pode topar com belíssimas cadeiras de escritório, cristaleiras, pias, colchões, estrados de madeira, carpetes, pisos, escorredores de louça, tábuas de passar e até um box para cama de casal em perfeito estado de conservação e olor.

A quantidade de bons itens descartados em caçambas é notável, sobretudo nas regiões mais chiques. Pode-se mobiliar apartamentos inteiros usando o lixo dos moradores de Pinheiros, Higienópolis e Jardins.

No bairro de Santa Cecília, um grupo de sem-teto que vive num posto de gasolina abandonado angariou mobiliário completo nas caçambas da área (mesa, poltrona, cama, armários e uma pequena oficina de marcenaria – em atividade). Na semana passada, eles mesmos abandonaram um sofá na esquina da alameda Glete com a Barão de Campinas, decerto por terem arrumado um melhor (vermelho, de três lugares).

Com a ajuda do leitor Roberto Bencz Jr., esta reportagem esquadrinhou a metrópole inventariando (e confiscando) objetos dignos de alarde, entre eles: uma estante para biblioteca dupla flex de aço, abandonada numa caçamba em Pinheiros; uma mesa de manicure na alameda Barão de Campinas; uma escada de alumínio, um armarinho e um varal de teto na rua São Carlos do Pinhal; uma caixa de som Aiwa na avenida Higienópolis; uma gigantesca letra “e” de plástico azul, na rua Camaragibe, na Barra Funda.

Duas cadeiras de vime que estavam numa caçamba da rua Frederico Abranches, em Santa Cecília, foram confiscadas pelos sem-teto da rua Sebastião Pereira e, no dia seguinte, passaram a compor uma espécie de sala de estar coberta por um toldo.

Nesta época, muitos pinheiros de Natal são casualmente descartados, como se privadas fossem. Registramos, aliás, uma ótima privada (sem tampa) na rua dr. Fernandes Coelho, e uma tampa sem privada na rua Bianchi Bertoldi, a poucos metros dali.

O leitor Eduardo Lemos recomenda as caçambas de Higienópolis, onde, certa vez, viu uma série de quadros que retratavam a mesma mulher.

Outro informante garantiu que, no Texas, existe uma espécie de “Furniture Hunting Season Around the Block”, quando, no período entre mudanças de semestres, é comum despejar e colher mobília das calçadas.

Por aqui, porteiros bem relacionados e com tino comercial negociam os melhores itens com carroceiros.

Eu, de minha parte, aposto que existe um grupo de senhoras num prédio da Peixoto Gomide que compra móveis novos na Tok&Stok só para abastecer as caçambas. “Temos as melhores da rua”, diriam, orgulhosas.

Billy Wilder – filmografia completa

Posted: 21st janeiro 2014 by Vanessa Barbara in Sem categoria
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Clique aqui para acessar a filmografia completa do diretor Billy Wilder, redigida com exclusividade para os leitores dest’A Hortaliça. 

Billy Wilder dirigiu 26 filmes e escreveu cerca de setenta. Assim como os diretores que mais admirava (e com quem trabalhou), Howard Hawks e Ernest Lubitsch, passeou por todos os gêneros cinematográficos, fez comédias, filmes de guerra, suspenses e dramas. Leia mais…

Jack Lemmon e Billy WIlder

Jack Lemmon e Billy WIlder

Whose mall is it?

Posted: 16th janeiro 2014 by Vanessa Barbara in New York Times, Reportagens

The New York Times
January 16th, 2014

by Vanessa Barbara
Contributing Op-Ed Writer

SÃO PAULO, Brazil — LAST Saturday, security officers stopped two tall young black men at the entrance of JK Iguatemi, a luxury shopping mall in São Paulo. The young men were wearing flashy tennis shoes and brand-new soccer jerseys. “What are you doing here?” I heard the guards ask. “We came to buy something,” explained one. “My cousin here is a soccer player. From Bragantino.”

The guards didn’t seem impressed (Bragantino is a lower-division team), but eventually let them inside, where they bought a pair of flip-flops and then left. The whole time they were shopping, they stuck to their story — my cousin is a soccer player, sir, so we’re entitled to be here.

That afternoon, JK Iguatemi had established a tight security zone at the entrance. Guards were asking for the documents of those who “looked like unaccompanied minors.” A second checkpoint was directed at those who, well, looked definitely suspicious but not underage. Some visitors were asked their intentions, or to show an ID if they claimed to work at the mall. As far as I could tell, older people with whitish skin and richer looks weren’t stopped.

The mall’s security had been stepped up because of an event that had been publicized on Facebook: the “rolezinho,” or little strolling — a gathering of teenagers from the poor suburbs for the purpose of “kissing, enjoying, taking photos and scoring some babes.” The rolezinho is a recent phenomenon, dating from early December, when some 6,000 young people turned out at the Metrô Itaquera mall. One week later, something similar happened at the Guarulhos International mall; 23 people were arrested (and later released without charges).

Now, as if in response to the crackdown, rolezinhos are spreading fast: There are five more scheduled in São Paulo over the next two weeks, and other cities are planning solidarity events. On Tuesday, President Dilma Rousseff convened an emergency staff meeting on the issue.

All this because some young people wanted to (as they wrote on Facebook): “go up the down escalator,” “press all the elevator buttons” and “enter the movies through the exit door.” Some predicted a food fight. “Let’s show up at the mall tomorrow ’cause we’ve got nothing else to do,” they wrote, all of it in a messy mix of capital letters and slang.

From the beginning, the middle class has panicked. Shopkeepers have called 911. Restraining orders have been issued, even though there was no actual organized movement — nothing related to the political protests that swept across Brazilian cities in June. Just a lot of youngsters walking around and singing.

The poor suburbs where many of them live are roughly two hours by bus from downtown, and they offer few free opportunities for entertainment. São Paulo has 64 parks and squares for a population of 10.8 million; 13 of the 96 city districts don’t have any green spaces at all. There are 40 cultural centers, 41 recreation centers and 23 public pools. Number of shopping malls: 79.

Many of the teenagers are fans of a Brazilian funk music called “funk ostentação,” whose lyrics speak of expensive clothes, cars, watches, women and money. Wearing flashy baseball caps, colorful tennis shoes, soccer jerseys, sunglasses and rings, they aspire to be part of the very consumer society that excludes them.

At JK Iguatemi, a man was approached and asked to show his employee ID. “This is absurd, I work here,” he told me angrily. He defended the rolezinho: “People from the suburbs really need to start invading everywhere.” I heard someone saying, sarcastically, “Look, he’s wearing a flat-brimmed cap! Arrest him.”

In the end, the strolling at JK Iguatemi never happened — it turned out to be a prank. The real rolezinho took place 16 miles away, at the same mall where it had all started — Metrô Itaquera, in the heart of the suburbs. Little by little, some 3,000 young people filled the corridors, outnumbering security officers and the military police. Some were detained and searched, but officers found nothing illegal. I went to Metrô Itaquera in the afternoon, and didn’t witness a single robbery or act of violence by the teenagers. There was only a growing tension between the police and the participants, who became increasingly cornered within the building, as shops were closed and escalators shut down.

At one point, a policeman passed by me saying, “I’m gonna beat you all up,” then kicked a boy for no apparent reason. When I approached him and asked his name, saying I had seen what he did, he promptly tore off his name tag. He said I should be writing about “important people.” Another officer told a reporter she’d better keep away from the police if she didn’t want to “tomar pedrada” (be hit by a stone). Later that day, the police tossed stun grenades to disperse the crowd in the mall parking lot.

At least six malls have gotten restraining orders against rolezinhos, and the majority of the public favors drastic action by the police. Some say these teenagers are favela-dwelling vagrants who should find a job and stop frightening decent people. They are seen as criminals and treated accordingly — hence the rush to identify yourself (or your cousin) as a soccer player from the Bragantino team, as if that were the only way to be seen as a real citizen.

At one point, I saw a bunch of youngsters detained and searched in the parking lot. They acted as if they were accustomed to this, and were expressionless, even numb. “Can we go now, sir? Are we released?” one of them asked. I surely wouldn’t be so polite.


Vanessa Barbara, a novelist and columnist for the Brazilian newspaper Folha de São Paulo, edits the literary website A Hortaliça.

A version of this op-ed appears in print on January 16, 2014, on page A27 of the New York edition with the headline: Whose Mall Is It?.

Folha de S.Paulo – Cotidiano
13 de janeiro de 2014

por Vanessa Barbara

No estacionamento do shopping Metrô Itaquera, onze jovens de bermudas coloridas e tênis chamativos estavam sendo revistados. Tinham um olhar vazio e sem expressão; cederam as mochilas, os documentos e explicaram o que tinham vindo fazer ali: dar um rolezinho. O tenente encarregado da operação não encontrou nada de ilícito nos pertences dos jovens, em sua maioria negros e menores de idade. Explicou que a polícia estava abordando pessoas que pudessem ter vindo para o evento, pois tinha um mandado de proibição.

Anotaram o nome e endereço de todos e avisaram que, se causassem tumulto, seriam multados em 10 mil reais. Os adolescentes não me olhavam nos olhos e pareciam resignados. “Não vou embora não, quero ir ao cinema”, disse o calmo Rodney Batista, de 20 anos. No grupo de onze, apenas um deles tinha o olhar duro de quem estava engolindo a raiva.

Os chamados rolezinhos são encontros marcados pelo Facebook em que jovens da periferia vão para “curtir, tirar foto, catar mulher”. No sábado, foram 3 mil adolescentes cantando e circulando pelos corredores.

Não vi ninguém com armas; ninguém roubando, depredando ou fazendo arrastão. Ainda assim, a multidão era grande e os lojistas entraram em pânico. Em alguns momentos, houve corre-corre e repressão da polícia.

Segundo a opinião pública, trata-se de adolescentes infratores, bandidos com históricos de crimes; no melhor dos casos, vagabundos e desocupados que vão lá para causar tumulto, cometer delitos e assustar “gente de bem”. São tratados como tais pelas autoridades: passando pelo corredor, um policial repetia no ouvido de todos: “Eu vou arrebentar vocês, vou arrebentar” – e plaf, deu um chute no menino que estava do meu lado.

Eu pedi: “licença, gostaria de saber o nome do senhor, ouvi o que o senhor disse e vi o que fez”, ao que ele prontamente tirou a etiqueta de identificação e escondeu no bolso. Eu insisti em saber o nome, tentei tirar uma foto, recorri ao tenente e falei com outros policiais – todos identificados. Depois me acovardei e pensei que, bem, talvez ele tenha ficado assustado por ter sido flagrado, talvez tenha sido um momento de fraqueza do qual se arrependeu, ele é um ser humano… Pensei  também que arrogar qualquer tipo de coisa – “eu sou da imprensa, olha só o meu crachá lustroso” – me rebaixaria ao mesmo nível dele, que usou do poder para fazer algo contra alguém mais fraco.

Vi gente filmando e sendo obrigada a apagar o arquivo, e mesmo a imprensa foi orientada a não registrar o que ocorria.

A gente fica só imaginando o que não devem fazer quando ninguém está realmente olhando.

Um novo conceito em fila de ônibus

Posted: 12th janeiro 2014 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista

Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
12 de janeiro de 2013

por Vanessa Barbara

Depois dizem que a prefeitura não faz planejamento. Pois vejam vocês: ao longo das últimas administrações, lenta e sistematicamente, colocou-se em prática um plano pioneiro em políticas públicas no bairro do Jardim São Paulo, zona norte da cidade.

De início, logo após a inauguração do metrô no bairro, em 1998, ficou definido que apenas uma linha de ônibus atenderia o ponto: 178Y/ Vila Amélia – Metrô Jardim São Paulo. Isso contrariava a expectativa de que a nova estação serviria para desafogar o sempre saturado terminal Santana, para onde convergem quase todas as linhas das redondezas.

E é assim até hoje. O itinerário de seis quilômetros do 178Y é percorrido em meia hora por uma frota de 13 micro-ônibus verdadeiramente intimistas, com capacidade para 21 pessoas sentadas (nenhuma delas acima do peso) e 12 em pé (sem sacolas). No interior das peruas, invariavelmente lotadas, é proibido amarrar o cabelo e vestir a blusa, por absoluta falta de espaço.

Entre os nativos, é lendário o comprimento médio da fila do micro-ônibus, que oscila entre o risível e o estratosférico. Nos horários de pico, o tempo de espera para embarque é de 50 minutos, com os veículos chegando e saindo quase que na mesma hora, abarrotados de sardinhas.

Inventiva, a população bolou um esquema inédito de duas filas: uma de passageiros que querem viajar sentados e outra de pessoas que irão em pé. A primeira corre junto à calçada e a segunda, perpendicular a esta, cruza o parque Domingos Luis. Um fiscal coordena a operação, fazendo a contagem dos passageiros e entoando os clássicos “sobe aí um degrau” e “um passinho para a frente, por gentileza”. Não raro, os que estão na fila dos sentados têm que ir de pé, e os da outra fila vão deitados em cima do motor, em posição de tatu-bola.

O ponto de ônibus é um abrigo robusto, dos antigos. Acaba de ganhar dois bancos de concreto que foram trazidos do meio da praça pela rapaziada, sempre preocupada com o conforto dos que esperam – três, quatro veículos – até conseguirem entrar.

Em decorrência dessa inteligente logística dos transportes (uma linha só, composta unicamente de micro-ônibus), o comércio informal de pipoca, milho, refrigerante, sanduíche de pernil, cachorro-quente e espetinho triplicou no entorno. Não há estatísticas oficiais, mas estima-se que o pipoqueiro Paulinho deve entrar para a próxima lista da Forbes.

É a Prefeitura de São Paulo incentivando os pequenos empreendimentos, a meditação zen-budista, o contato íntimo e a amizade entre os locais.