Anfíbios fazem

Posted: 2nd setembro 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista

Folha de S.Paulo – revista da Folha
1 de setembro de 2013

por Vanessa Barbara

Quando eu era pequena, não entendia por que o governo mandava todo mundo usar camisinha. Apareciam uns artistas na tevê repetindo a recomendação federal muito sérios, como se fosse uma questão de vida ou morte, e nunca explicavam ao certo o que havia de errado com o restante do guarda-roupa. E mais: qual o tamanho máximo do referido item da indumentária, em proporção ao torso do indivíduo? Qual a diferença entre camisinha, camiseta e camisola?

Eu realmente imaginava cidadãos em trajes muito apertados, cumprindo seus deveres cívicos, e olhava desconfiada para os que andavam por aí com roupas folgadas.

Um pouco mais tarde, encontrei umas edições velhas da revista Capricho e fui me instruir. Àquela altura, as crianças da rua já circulavam informações mais precisas sobre a origem dos bebês (sem repolhos ou cegonhas nessa equação), mas pairava uma certa dúvida sobre o verdadeiro significado de sexo oral: seria só ficar falando sacanagem ao telefone? Teria algo a ver com dentistas?

Na mesma época, havia um programa de televisão chamado “Cocktail”, que passava altas horas da noite e só uma das meninas da nossa turma conseguia assistir.

Ela vinha contar como rebolavam as mulheres seminuas, e nós lhe fazíamos perguntas objetivas sobre a circunferência e o formato dos glúteos – tínhamos um fascínio curioso por essa parte da anatomia tão redonda e sofrida.

Sempre que alguém fazia uma piada obscura, de interpretação duvidosa, a melhor política era dar risada e nunca admitir que não entendeu – depois vinha o silêncio e todos podiam pensar no possível teor do duplo sentido que, na verdade, ninguém captou. Em geral, nem quem contou a piada.

Muitos de nós ainda achavam que era possível engravidar sentando num banco de ônibus recém-ocupado por um desconhecido, outros pensavam que gays namoravam lésbicas e que coito interrompido era quando você estava aos beijos e alguém abria a porta.

Lembro também da história de um menino que foi dissecar um sapo na aula de ciências e, depois da aula, contou à mãe como foi a experiência. Esta, julgando estar diante de uma boa oportunidade de ensiná-lo sobre os órgãos reprodutores, empreendeu uma longa e truncada explicação de como os sapos se reproduziam e de onde vinham os girinos, julgando mandar bem na metáfora.

Por muito tempo, ele achou que as relações sexuais envolviam necessariamente um bom par de sapos. (A logística ainda era fonte de especulação, mas que aquilo tinha a ver com anfíbios – isso era certeza.)

O nome da rede

Posted: 18th agosto 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
18 de agosto de 2013

por Vanessa Barbara

No início de agosto, a prefeitura inaugurou um ponto de wi-fi gratuito na praça Dom José Gaspar. A rede, chamada Wifi_livre, oferece uma conexão de internet de 512 kbps e faz parte do projeto Praças Digitais, a ser implementado em 120 espaços públicos até o fim de outubro.

É uma boa notícia para os sem-sinal, aquela parcela da população que vaga pelas ruas procurando uma rede desprotegida para filar; são munícipes que não podem pagar um plano de 3G e dependem da bondade de estranhos para acessar a internet do smartphone – ou da ingenuidade de quem escolhe “admin” como senha de segurança. 

A prática de sair por aí detectando sinais de rede em uma área tem nome: wardriving, variação do método popularizado nos anos 80 que consistia em discar números aleatórios de telefone até encontrar um modem (wardialing). Acessar redes sem autorização é eticamente questionável e se chama piggybacking (termo para pegar carona nos ombros de alguém).

Eu, de minha parte, pratiquei warwalking só por diversão. Fico imaginando o momento em que a pessoa batizou o sinal e, emocionado, lançou-o para o universo.

Minha rede preferida era a RickyMartinForever, fornecida pelo morador anônimo de um prédio em Santa Cecília e acessada pelos pacientes da clínica de fisioterapia que eu costumava frequentar.

Em Campos Elísios há redes com o nome “cutícula”, “maritaca voadora” e “avante zóião”. Em Diadema, o dono da “Patópolis” é vizinho à “Casa do Bozo”. O largo do Arouche abriga as redes “podre” e “Rodolfo o GATO”.

Criativos são os residentes da Consolação: lá se encontram as redes “Not in Kansas anymore”, “sou maravilhoso”, “it’s Britney bitch”, “Playboy Mansion”, “etdamaopreta”, “nenê careca”, “tigre cintilante” e “jesus rodrigo”. No Centro, a ótima “homelete”.

Há cinco categorias de nomes: os de família (“Família Pessoa”), os de logradouros (“apto64”), os de pessoa física ou jurídica (“Casa do Croquete”, “Silas”), os de máquinas (dlink, linksys, HP568 Desk) e os hostis (“Vai conectar na mãe”, “Querusar?Paga!”, “Conexão com Satanás” e “Vcnaotemmaisoquefazer”).

Na rua Dr. Vila Nova, temos “Datavenia”, “Árvore”, “Comuna” e “Comuna-1871”. Na Major Sertório, “Capivara Hermafrodita”, “Batcaverna” e “Raskonikov Uai Fai”.

A av. 9 de Julho conta com a curiosa “Release the Bacon”, e, na Turiassu, o depressivo: “foreveralone”. Há um “Balzac” e um “Casanova”, além de um “Batata” e um “Tadeuzão”. Na rua das Palmeiras, o wi-fi do “mindigo”.

Em Santana, o “Balneário 1” e o “Balneário 2”, além do misterioso “Oi querida procurando…”, cujo final não pude distinguir, mas deve ser impublicável.

Blog da Companhia das Letras
12 de agosto de 2013

Por Vanessa Barbara

 funny library sign furia bibliotecario
Perigo: é proibido ingerir comida ou bebida nas proximidades deste computador, sob pena de incitar a fúria do diretor da biblioteca.

 

O texto a seguir é a tradução de um artigo de Umberto Eco publicado no livro How to Travel with a Salmon & Other Essays. Foi escrito em 1981 e sugerido por uma leitora deste blog.

Lembramos aos presentes que se trata de um artigo bem-humorado e crítico sobre os vícios na administração das bibliotecas públicas escrito por um usuário frequente destas, não um libelo antibiblioteca ou uma tentativa de exterminar todos os profissionais da área e trocá-los por vendedores de livrarias, favorecendo assim a sanha capitalista em detrimento do processo de equalização social das bibliotecas públicas e renegando os valores elementares de acesso à leitura e melhoramento da humanidade, a fim de perpetrar a estratificação social e impedir a ilustração de todos os setores da sociedade etc. etc.

(Por favor, não me excomunguem do cadastro unificado do Sistema Municipal de Bibliotecas.)

* * * 

Como organizar uma biblioteca pública
por Umberto Eco (tradução de Vanessa Barbara)

 

1. Os diversos catálogos devem ser alocados com o máximo possível de separação entre si. É preciso apartar adequadamente o catálogo de livros do catálogo de periódicos, e ambos do catálogo por assunto; da mesma forma, as aquisições recentes devem ser mantidas bem distantes do acervo antigo. Se possível, a grafia adotada nos dois catálogos (aquisições e acervo) deve ser diferente. No caso das aquisições, por exemplo, assovio deve ser grafado com v, e no acervo deve constar assobio com b. Um Chaikovskii da área de lançamentos irá seguir a classificação da Biblioteca do Congresso; no acervo o nome será grafado à moda antiga, com Tch.

2. A classificação por assunto deve ser determinada pelo bibliotecário. Na folha de rosto com os dados para catalogação não deve haver nenhuma indicação do assunto sob o qual o livro poderá ser listado.

3. Os códigos de catalogação devem ser incompreensíveis e, se possível, extremamente complexos, a fim de que não haja espaço na papeleta de solicitação de livros para incluir os últimos numerais, que portanto seriam descartados como irrelevantes. Então o atendente pode devolver o papel com uma advertência para o usuário preenchê-lo de forma adequada.

4. O tempo decorrido entre o pedido e a entrega do livro deve ser o mais longo possível.

5. Deve-se liberar apenas um volume por vez.

6. Assim que o pedido de consulta for corretamente preenchido, os livros cedidos pelo atendente não podem ser transportados à seção de obras de referência, forçando assim os pesquisadores a cindirem sua vida profissional em dois aspectos fundamentais: de um lado, ler, e do outro, consultar referências. A biblioteca deve desencorajar, mencionando os perigos do estrabismo, quaisquer tendências multidisciplinares ou tentativas de leitura de vários livros ao mesmo tempo.

7. Na medida do possível, não deve haver máquinas de xerox disponíveis; se tal máquina existir, o acesso a ela precisa ser necessariamente demorado e cansativo, as taxas devem ser bem mais altas do que as praticadas nas copiadoras da região e o número máximo de páginas reproduzidas não pode exceder dois ou três.

8. O bibliotecário deve tratar o leitor como um inimigo, um perfeito desocupado (caso contrário estaria trabalhando) e um ladrão em potencial.

9. A sala do bibliotecário-chefe deve ser inexpugnável.

10. Empréstimos devem ser desencorajados.

11. Empréstimos entre bibliotecas devem ser inexequíveis ou, no mínimo, demandar vários meses para se concretizarem. Em todo caso, o ideal é garantir a impossibilidade de consultar o acervo das outras bibliotecas.

12. Devido a essa política, o roubo se torna bastante fácil.

13. O horário de funcionamento deve coincidir precisamente com o horário comercial, determinado em reuniões prévias com os sindicalistas locais e a Câmara do Comércio; o não funcionamento aos sábados e domingos, à noite e no horário de almoço é uma prerrogativa óbvia. O maior inimigo da biblioteca é o estudante que trabalha; seu melhor amigo é Thomas Jefferson, que possuía uma enorme biblioteca privada e portanto não precisava frequentar bibliotecas públicas (às quais ainda assim legou seus livros como herança).

14. Deve ser proibido consumir qualquer tipo de lanche no interior da biblioteca; tampouco permitido sair desta para alimentar-se em outro lugar sem antes devolver todos os livros em utilização, obrigando assim o estudante a preencher novas solicitações depois de tomar um mísero café.

15. Deve ser impossível encontrar, no dia seguinte, o livro consultado na tarde anterior.

16. Deve ser impossível descobrir quem está na posse de um volume atualmente em empréstimo.

17. Se possível, não manter nenhum banheiro público disponível.

18. Idealmente o leitor deve ser impedido de entrar na biblioteca. Se por acaso conseguir fazê-lo, usufruindo com tediosa insistência de um direito garantido nos princípios de 1789, porém jamais assimilado pela sensibilidade coletiva, ele nunca, mas nunca mesmo — com exceção a rápidas visitas às seções de referência — deve ter acesso ao templo sagrado das estantes.

 

* * * * *

Meus acréscimos:

19. Quarenta minutos antes do fechamento da biblioteca, é necessário fazer soar um alarme estridente e dúbio, a fim de inquietar os usuários e incutir-lhes a dúvida de incêndio.

20. Meia hora antes do fechamento da biblioteca, deve-se acionar uma buzina e um aviso ao microfone anunciando que o estabelecimento está para encerrar suas atividades. Solicitações de empréstimo não serão mais aceitas, assim como devoluções — sobretudo as de última hora. Recomenda-se que a buzina esteja sempre com defeito e funcione por aproximadamente dez minutos ininterruptos, sem que ninguém faça caso disso.

21. É sempre mais importante terminar a leitura do catálogo de cosméticos antes de atender os usuários. O mesmo vale para sessões vigorosas de lixamento de unhas e telefonemas pessoais.

22. O real fechamento da biblioteca deverá ocorrer quinze minutos antes do fechamento oficial, acelerado por rondas insistentes de funcionários que começarão a varrer o chão e empilhar as cadeiras.

23. O processo de apagar as luzes e trancar as portas deve levar exatos quinze minutos, e não por desejo de cumprir o expediente: é que deve haver funcionários para balançar a cabeça em negativa quando um leitor fatalmente aparecer atrasado para devolver um livro.

24. Convém se queixar o tempo todo do aumento no índice de furtos e da lamentável depredação ao patrimônio emprestado, dando a entender que o povo não merece um serviço gratuito e de qualidade.

25. O estatuto administrativo deve se sobrepor a toda e qualquer noção de bom-senso no atendimento. Donde: é proibido trazer lanche para prevenir as manchas de molho de tomate na página e a proliferação de insetos alados no ambiente da biblioteca; é proibido espiar a lombada de um livro e empurrá-lo de volta porque assim se pode arruinar todo o sistema de catalogação e condenar determinada obra a um vórtice temporal; é proibido entrar com bolsas e mochilas para não incentivar meliantes; é proibido se emocionar com um romance porque as lágrimas podem apodrecer o papel; é proibido, enfim, o que quer que você esteja arquitetando ao olhar para essa estante de forma duvidosa e com as mãos para trás. Movimentos suspeitos serão punidos e a multa para atraso na devolução deverá ser maior do que a de tráfico de drogas. O roubo de livros será julgado por uma corte marcial e até crianças poderão ser condenadas à prisão.

26. Na dúvida, dificulte.

Voz online

Posted: 9th agosto 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Revista Harper’s Bazaar
Agosto de 2013

por Vanessa Barbara

Tenho acompanhado com rigor e método a cobertura das manifestações populares pelo Facebook, como um interessado em finanças que abre o The Wall Street Journal todos os dias no café da manhã.

Meus correspondentes preferidos são um amigo que é analista de marketing e mora a duas quadras do Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, e outro que é detentor de uma janela privilegiada na Haddock Lobo, na Consolação, em São Paulo, bem onde a Tropa de Choque costuma confraternizar com os manifestantes.

O primeiro é dado a coberturas em tempo real e funciona como uma agência de notícias que repassa as informações dos colegas. O segundo é mais opinativo, tem novidades em primeira mão e vive rimando “polícia” com “delícia”. Jornalista de formação e pai de uma menina, ele admitiu que “o Brasil acordou. Mas pediu só mais cinco minutinhos, deitado no berço esplêndido”.

(Contrariando as expectativas, ele chegou até a colaborar com o comando da Polícia Militar dando informações sobre o trajeto da manifestação. “Para ajudá-lo, vazamos o seguinte mapa que circula dentro do movimento: nele percebemos que os vândalos sairão do Leste Europeu em 330 d.C., atravessarão a Europa, cruzando com os hunos e os visigodos, e chegarão à África em 419 d.C., de onde partirão para saquear Roma, em 455 d.C”, informou.)

Ágil e polifônica, a cobertura das manifestações pelas mídias sociais tem algo de quixotesco. Além de divulgar os protestos oficiais do Movimento Passe Livre, o Facebook serviu para propagar dois grandes eventos no mês passado: a Manifestação Contra a Copa de 1954, que ocorreu numa tarde de sábado, e a Levitação do Palácio dos Bandeirantes, no dia 18 de junho, organizada por um amigo que é cientista político.

“Em 1967, cidadãos pró-paz nos Estados Unidos tentaram levitar o Pentágono, que tomava decisões desastradas e assassinas na Guerra do Vietnã. Em 2013, me parece razoável tentar levitar o Palácio dos Bandeirantes, onde trabalha o governador do estado de São Paulo”, explicou.

Em plena Copa das Confederações, também foi anunciado um novo direcionamento para os protestos: “Acabo de criar o Movimento Passe Certo”, decidiu um jornalista na minha timeline. “Não vamos sair das ruas enquanto Hulk e Daniel Alves seguirem na Seleção”.

Na rede foi possível aprontar-se para os confrontos escolhendo a indumentária adequada (casaco impermeável, tênis) e os acessórios essenciais para se proteger das bombas de gás e spray de pimenta: óculos de natação, máscara de soldador, snorkel e cilindro de oxigênio. “Tem que ver o que é permitido além do vinagre”, alertou um programador de computadores. “Acho que chá de boldo e molho shoyu foram vetados.”

Meu vizinho da frente, que é policial militar, também contribuiu com sua visão dos acontecimentos. Os amigos cariocas, mineiros, gaúchos e baianos me mantiveram informada sobre o andamento dos protestos pelo Brasil, enquanto meus conterrâneos alertavam sobre os trajetos, localização da polícia, presos e feridos – tanto quanto o 3G permitia.  

 

FORMAÇÃO DE QUADRILHA 

A Revolta da Salada foi o assunto que dominou as madrugadas juninas. Após muito debate, chegou-se à conclusão de que a “cebola será a próxima”. Primeiro caiu o tomate (muito caro), depois o vinagre (muito revolucionário), então logicamente a próxima vítima do vinagrete seria a cebola. “Que tem múltiplas camadas, como a sociedade”, filosofou um analista de sistemas.

Alguns jovens se organizaram pelo Facebook e, de chapéu de palha e trajes caipiras, compareceram aos atos portando uma faixa: “Formação de quadrilha”.

Os slogans mais compartilhados foram: “O povo/ Unido/ É gente pra caralho” e “Dilma, que vergonha/ A tarifa está mais cara que a maconha”, além do instrutivo: “Eu já falei/ Vou repetir/ Eu já falei, vou repetir”.

Os portadores de cartazes também ganharam inspiração adicional com os comentários no Twitter. “Eu tô tão puto que fiz um cartaz” foi o mais popular, seguido de perto por “3,20 só se for open bar” e “Pelo direito de ficar parado”.

Um dos trocadilhos mais infames foi cometido na legenda de uma foto: “Tropa de nhoque vai de encontro às massas”. Também gostei da imagem de um flautista mambembe entretendo as forças policiais, da foto antiga de um protesto contra o aumento na tarifa do bonde e do vídeo de um jovem dançando uma canção dos Bee Gees diante dos “poliça”.

Em Belo Horizonte, correram boatos de que o governo pretendia mandar a Marinha para conter os manifestantes, pois tinha “um mar de gente se aproximando”.

Na tarde dos protestos de 13 de junho, a imagem mais repassada era de uma enquete promovida pelo apresentador José Luiz Datena, na qual ele perguntava: “Você é a favor de protesto com baderna?”. A turma do “sim” ganhou por 2351 votos a 998.

O personagem mais comentado foi um rapaz enorme, careca e com o rosto pintado de branco, que ficou encarando um grupo de anarquistas durante o ato na Avenida Paulista e quase apanhou. Questionado por um repórter, disse, em voz baixa, ser um estudante de psicologia fazendo uma experiência comportamental.

Já meu post preferido foi o de uma moça que, na passeata, encontrou uma amiga que não via há anos e com quem fez aulas de kung fu. “Ao avistá-la, corri em sua direção e fingi que ia dar-lhe uma bicuda na cara”, contou. “Ainda gritei: ‘iááááááá!’. Mas não era ela.”

 

OS NINJAS TOMAM AS RUAS

Foi através das redes sociais que fiquei sabendo da Pós TV (www.postv.org), emissora livre que faz frente aos veículos tradicionais utilizando a tecnologia do streaming (transmissão simultânea de vídeo pela internet). De celular em punho, os jornalistas da Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Mídia e Ação) cobriram as manifestações ao vivo, conversando com populares, fugindo da polícia e andando até 10 km sem parar. Num dos links (http://twitcasting.tv/ninja2rj), há uma caixa de comentários através da qual os espectadores podem opinar e fazer perguntas.

No dia 11 de julho, os ninjas acompanharam a greve em mais de 20 cidades, com uma audiência de aproximadamente 20 mil pessoas por link. Os últimos protestos no Rio de Janeiro contaram com três ninjas gravando em pontos diferentes.

Madrugada adentro, o correspondente da TV Globo em Nova York, Jorge Pontual, chegou a tuitar: “Se a bateria do Ninja não morrer, eu não durmo esta noite”.

O coletivo foi criado para atender à demanda por um novo tipo de jornalismo, com uma lógica múltipla que agregasse referências distintas e um contato com acontecimentos mais próximos do indivíduo. “Há uma crise dos intermediários, sejam os partidos ou a própria mídia”, afirmou um dos fundadores em entrevista para o jornal Meio&Mensagem. “A rede e a rua se fundiram”, concluiu.

É curioso perceber que debates tão importantes como a crise na representatividade democrática e o modelo de transporte público que queremos adotar nas cidades tenham sido suscitados por comentários muitas vezes despretensiosos e apartes irônicos nas mídias sociais, ganhando as ruas e desembocando no que o historiador britânico T. J. Clark chamou de “momento político extraordinário” do país. No fim das contas, o celular e as redes sociais podem até propiciar uma gestão flexível da nova política, aumentando em muito a potencialidade da democracia direta.

No Facebook, há poucas semanas, meu amigo com camarote na rua Haddock Lobo se queixou da volta súbita das postagens cotidianas em sua timeline. “Já vi até gente falando do frio em São Paulo. Tudo normal de novo. Seguem fotos das férias em família”, informa, um tanto decepcionado.

Garoa nos olhos

Posted: 5th agosto 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista
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Folha de S.Paulo – Revista sãopaulo
4 de agosto de 2013

por Vanessa Barbara

“Minha Londres das neblinas finas!”, exclamou Mário de Andrade num poema sobre a capital paulistana. “Faz frio, muito frio…/ […] Meu coração sente-se muito alegre!/ Este friozinho arrebitado/ dá uma vontade de sorrir!”

Na noite de 25 de julho, 30 pessoas pesadamente encapotadas se encontraram diante do Theatro Municipal para participar da 400ª edição da Caminhada Noturna pelo centro de São Paulo.

Chovia e os termômetros marcavam 8°C. O vento era “como uma navalha nas mãos dum espanhol”.

Na rua, quase ninguém além dos bravos expedicionários, que portavam uma enorme bandeira amarela e arrastavam pela noite uma caixa de som numa bicicleta.

Desde setembro de 2005, o grupo se reúne todas as quintas, às 20h, para caminhada temática com a presença de especialistas em áreas como arquitetura, urbanismo e história. O evento é gratuito, dura cerca de duas horas e costuma agregar grupos de 50 a 100 pessoas.

No 399º passeio, o assunto foi a Revolução de 1932. No quadringentésimo, o foco foi o poeta, musicólogo e folclorista Mário de Andrade –o roteiro passou pela Biblioteca Municipal que leva seu nome e pelo primeiro parque infantil idealizado por ele (na praça da República).

Além de fundador do modernismo e figura central da vanguarda artística, Mário foi diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura. Provavelmente gostava da cidade quase tanto quanto Carlos Beutel, 58, idealizador da caminhada e dono do restaurante vegetariano Apfel, que patrocina a iniciativa.

Ao lado do guia turístico Laercio Cardoso de Carvalho, ele comenta o passeio, define o trajeto e golpeia distraidamente os presentes com a bandeira oficial do grupo, que ganhou até um cabo extensor para evitar acidentes mais graves.

Carlos conta que, antes, comunicavam-se com um megafone. Hoje já possuem um “som motorizado”, que consiste num alto-falante com microfone transportados numa bicicleta. “Na caminhada de número 500 vamos inaugurar um trio elétrico.”

Nesses oito anos, os passeios guiados abordaram temas como maçonaria, Corinthians, Partido Comunista, grafite, Parada Gay, idioma guarani, Adoniran Barbosa, catadores de lixo, Minhocão e circo.

Entre os convidados destacaram-se os síndicos do Copan e do Martinelli, durante a celebração do aniversário da cidade, em 2010; e os diretores da Associação dos Criadores de Lobisomens de Joanópolis e da Sociedade dos Observadores de Saci, em 2011, quando o passeio especial à meia-noite reuniu mais de 600 pessoas.

A caminhada comemorativa terminou com pés molhados e pizza. “Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas/ dialoga um lamento com o vento…”

Verbos dicendi

Posted: 1st agosto 2013 by Vanessa Barbara in Sem categoria
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cortesia da prof. Nanami Sato

  1. acentuar
  2. achar
  3. aconselhar
  4. acreditar
  5. acrescentar
  6. acusar
  7. adiantar
  8. admitir
  9. advertir
  10. advogar
  11. afirmar
  12. alarmar-se
  13. alegar
  14. alegrar-se
  15. alertar
  16. alfinetar
  17. aludir
  18. ameaçar
  19. analisar
  20. antecipar
  21. anunciar
  22. apontar
  23. apregoar
  24. aprovar
  25. argumentar
  26. arrolar
  27. articular
  28. assegurar
  29. asseverar
  30. assumir
  31. atestar
  32. avaliar
  33. avisar
  34. balbuciar
  35. brincar
  36. calcular
  37. citar
  38. cobrar
  39. colocar
  40. comentar
  41. complementar
  42. completar
  43. comprovar
  44. comunicar
  45. conceituar
  46. conciliar
  47. conclamar
  48. concluir
  49. concordar
  50. condenar
  51. confessar
  52. confirmar
  53. considerar
  54. constatar
  55. contar
  56. convencer
  57. corrigir
  58. corroborar
  59. cortar
  60. criticar
  61. decidir
  62. decifrar
  63. declamar
  64. declarar
  65. defender
  66. definir
  67. delegar
  68. demonstrar
  69. denominar
  70. denunciar
  71. depor
  72. desafiar
  73. descrever
  74. desculpar-se
  75. desmentir
  76. destacar
  77. discorrer
  78. discursar
  79. discutir
  80. dizer
  81. duvidar
  82. endossar
  83. entusiasmar-se
  84. enumerar
  85. enunciar
  86. esclarecer
  87. exemplificar
  88. explicar
  89. expor
  90. expressar
  91. exprimir
  92. falar
  93. finalizar
  94. frisar
  95. fundamentar
  96. garantir
  97. gracejar
  98. ilustrar
  99. imaginar
  100. indagar
  101. indicar
  102. informar
  103. insinuar
  104. insistir
  105. interpretar
  106. ironizar
  107. julgar
  108. justificar
  109. lamentar
  110. lembrar
  111. listar
  112. manifestar
  113. mencionar
  114. mostrar
  115. murmurar
  116. narrar
  117. notar
  118. objetar
  119. observar
  120. opinar
  121. ordenar
  122. participar
  123. partilhar
  124. perguntar
  125. pontificar
  126. pregar
  127. presumir
  128. prevenir
  129. proclamar
  130. proferir
  131. prometer
  132. pronunciar
  133. propor
  134. prosseguir
  135. protestar
  136. provocar
  137. publicar
  138. ratificar
  139. reafirmar
  140. reagir
  141. rebater
  142. reclamar
  143. recomendar
  144. reconhecer
  145. reconsiderar
  146. recordar
  147. referir-se a
  148. reforçar
  149. refutar
  150. reivindicar
  151. relatar
  152. reprovar
  153. resmungar
  154. retificar
  155. retrucar
  156. ressaltar
  157. ressalvar
  158. resumir
  159. revelar
  160. salientar
  161. sugerir
  162. surpreender-se
  163. sussurrar
  164. transcrever
  165. vaticinar

Uma em um bilhão

Posted: 28th julho 2013 by Vanessa Barbara in Reportagens, Revista piauí
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china

Revista piauí – n. 82
Julho de 2013

O que faz uma escritora brasileira em um festival literário em Macau

por Vanessa Barbara

 

Quando, há cinco meses, recebi um convite para participar do Festival Literário de Macau, a única resposta possível foi: Por que não? Se a ideia é mudar de ares, nada melhor do que ir o mais longe possível, mais exatamente a 18 014 quilômetros, que é a distância entre o bairro do Mandaqui (Zona Norte de São Paulo) e Macau.

Confesso que tive de abrir um mapa–múndi para descobrir onde ficava a tal península, na costa sudeste da Ásia, ex–colônia portuguesa e atual região administrativa especial da República Popular da China. Embora os idiomas oficiais sejam o português e o cantonês, nas ruas ninguém fala uma palavra reconhecível. Macau é delimitada por Hong Kong, Guangzhou, Zhuhai e Shenzen. Ao leste temos Taiwan, ao sudeste as Filipinas e, ao sul, o Vietnã.

A moeda oficial é a pataca, indexada ao dólar de Hong Kong. Conhecida como “Las Vegas do Oriente”, Macau tem uma economia lastreada no turismo e em cassinos – enormes edifícios revestidos por camadas de neon piscante que funcionam madrugada adentro, assegurando que há sempre alguém mais acordado, mais perdido no calendário e mais rico do que você em algum lugar. É a região com a maior densidade populacional do mundo (19,84 pessoas por metro quadrado, segundo o Banco Mundial).

Fora isso, eu nada sabia quando embarquei no Aeroporto Internacional de Guarulhos, numa terça de madrugada, com 18 quilos na mochila só de livros, prestes a encarar um voo de catorze horas até Dubai, mais três horas e meia aguardando no aeroporto, oito horas até Hong Kong, duas horas de espera e, por fim, um ferryboat.

O piloto da Emirates também parecia confuso, tendo anunciado de repente: “Passageiros cujo destino final é Dubai esta noite… manhã… não, tarde… enfim!, devem apanhar a bagagem na esteira de número…”

Vinte oito horas e meia depois, sem saber o dia da semana (era quinta-feira), cheguei ao destino e fui para o hotel, onde passei a sexta-feira dormindo.

 

O FESTIVAL

A segunda edição do Rota das Letras, o Festival Literário de Macau, reuniu escritores lusófonos e chineses, além de músicos, atores e cineastas. Criado em 2012 pelo jornal Ponto Final, o evento deste ano se estendeu por sete dias de março, com palestras e apresentações nas escolas, universidades e institutos culturais. Foi um curioso simpósio de tons vagamente surrealistas, que pode ser resumido numa única piada:

“Estavam uma brasileira, um português, um timorense, um surdo e um canadense conversando numa rotatória em Coloane quando…”

(O resto da piada eu não sei porque o ônibus passou e tive de sair correndo para pegá-lo.)

Outra boa forma de resumir o festival é descrevendo a mesa de abertura, ocorrida na tarde do dia 10, com a participação de quase uma dezena de autores falando sobre “Influências e perspectivas dos escritores num mundo globalizado”. O debate durou duas longas horas e teve tradução simultânea em português, inglês e cantonês – a sensação, porém, era de que os três idiomas estavam sendo falados ao mesmo tempo e de trás para a frente, tamanha a confusão. A tradutora do português, coitada, estava tão perdida que quase fui lhe oferecer um abraço.

Em falas curtas, os convidados fizeram o possível para trazer unidade à discussão: o diretor da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), Mauro Munhoz, falou sobre festivais literários em cidades de porto; o timorense Luís Cardoso observou que, em matéria de globalização, o melhor é pensar no que temos a oferecer, e não a perder; e o angolano José Eduardo Agualusa mencionou um vídeo no YouTube em que um estrangeiro executa à perfeição uma dança típica de Angola. “Sendo que este imigrante chinês sabe dançar o kuduro muito bem”, afirmou, taxativo, e sua fala fez todo o sentido.

A mim coube a participação em dois debates, cujo tema só me informaram ao chegar. A primeira mesa, na Universidade de Macau, foi dirigida aos estudantes do departamento de inglês e contou com a presença do seriíssimo Pan Wei (China), o simpático Luís Cardoso (Timor Leste) e a louquíssima Hong Ying (China), que tirou uma foto nossa com o smartphone durante a palestra, postou na rede social Renren e recebeu curtidas imediatas de uma galera da fileira de trás da sala. Foi um dos pontos altos da viagem: receber um feedback instantâneo, barulhento e em chinês no decorrer da própria palestra.

Que, aliás, ocorreu no mais autêntico e vergonhoso “Macarronic English”. Com um detalhe: Pan Wei não falava inglês e a organização só havia enviado uma tradutora chinês–português, embora a plateia fosse quase que exclusivamente composta de anglófonos. Cogitou-se a tradução em duas etapas (chinês–português e português–inglês), mas felizmente uma aluna fez a ponte para o idioma final. Não havia mediador, nem tema específico.

Ainda assim, a mesa fluiu bem e não foi preciso defender-se de possíveis objetos arremessados pela turma do fundão, como temia Luís Cardoso, com quem posteriormente saí para almoçar e testemunhar um casamento entre desconhecidos na Igreja São Francisco Xavier, em Coloane, onde o hospedaram.

Em tom de galhofa, ele passou os dias se apresentando como vice-rei de Coloane – uma simpática ilha a quarenta minutos do Centro, ligada a Macau por uma ponte. Outros autores foram alocados em hotéis na ilha de Taipa e arredores, bons mas distantes entre si e do Centro. Houve muita reclamação e alguns convidados decidiram ir embora mais cedo. “Falta de chá, falta de respeito pelos autores e muita ignorância”, declarou um dos escritores. Eu, por sorte, fiquei no Centro e não tive do que reclamar nesse quesito.

A segunda palestra foi um completo desastre. Fui destacada para uma mesa no penúltimo dia ao lado de Valter Hugo Mãe (Portugal), Paulina Chiziane (Moçambique) e Antoine Volodine (França). O tema era: “As literaturas dentro da literatura de expressão portuguesa”, e preparei às pressas um material sobre a crônica. A partir das poucas pistas que me deram, pensei em falar desse gênero que se desenvolveu com suas peculiaridades no Brasil, mas acabei não aproveitando nada.

Logo de início, a moderadora portuguesa me apresentou da seguinte forma: “À minha direita está Vanessa Barbara, escritora brasileira de quem não sei muita coisa além de que é muito jovem, como vocês podem ver, e escreveu alguns livros que não tive oportunidade de ler.”

Mais tarde, ela me perguntou algo sobre a ética inerente às literaturas de expressão portuguesa que eu, juro, quase me levantei e disse: “Minha senhora, eu não faço a menor ideia de como responder a essa pergunta.” Acabei conseguindo encaixar umas coisas sobre crônica aqui e ali, mas basicamente só falei nada com nada. Houve uma porção de perguntas sem rumo e, a certa altura, o autor francês declarou que a humanidade não tinha esperança e estava próxima do fim. Eu me afundei na cadeira, torcendo pelo Apocalipse.

 

MACAU: NOODLES COM FANTA UVA

Cada um por si, os escritores do festival foram explorando pontos turísticos macaenses, como o largo do Senado (uma pracinha com chão de pedras portuguesas e lojas de grife), o jardim Lou Lim Leoc (tranquilo e superpovoado de tartarugas aquáticas), o templo de A-Má, a Fortaleza do Monte, a estátua de Kun Iam e as famosas Ruínas de São Paulo (fachada de igreja incendiada que é como um portal para outra dimensão, um cenário de Hollywood sem fundo).

Sozinha, fui a uma sessão do planetário, experimentei carne de porco crua e quadrada, vi os pandas-gigantes de Coloane, comprei um sapato tipo chinesinha, passei por uma igreja pentecostal Deus É Amor e aproveitei meu nababesco quarto de hotel, que era maior do que a minha casa. (Dava pra andar de bicicleta lá dentro.)

No Jardim de Camões tirei as meias e tentei andar por um caminho de pedras redondas, utilizado como massageador de pés. Tive de segurar na cerca, avançar bem devagar e a cada passo conter um “Ai! Ai!”, sob a chacota generalizada dos locais. Aprendi que os velhinhos chineses costumam levar seus pássaros para passear todas as manhãs e penduram as gaiolas nas árvores. Descobri que Paulina Chiziane adora girafas e que o macarrão cantonês precisa ser elástico, ou seja, você deve poder esticá-lo sem quebrar. Tirei fotos da Venda de Bolinhos Kuong Hou Tai Iat Ka e da Sala de Explicações Pat Mui. Frequentei todas as barracas de pijamas de flanela. Explorei o Mercado de São Domingos com uma jornalista macaense que adorou a palavra “rural”, cuja pronúncia em inglês é realmente engraçada. Me identifiquei com a Igreja de Santo Antônio, “construída em 1638, incendiada em 1809, reconstruída em 1810, de novo incendiada em 1874, reparada em 1875”.

Jantei um prato enorme de noodles com Fanta Uva na companhia de um casal desconhecido de chineses que alternava cantonês e inglês numa conversa desvairada. Eles perguntaram se o Brasil ficava na Europa, me ofereceram wontons com molho agridoce e no final pagaram a conta. “A hospitalidade de Macau! Conte para os seus amigos. Nós somos legais”, ela dizia, animada.

Flanei pelos salões do maior cassino do mundo, The Venetian, na companhia de dois músicos croatas, que riam sem parar das ridículas réplicas da cidade de Veneza. O gigantesco complexo fica em Taipa e é conhecido por obter um faturamento anual maior do que o de todos os cassinos de Las Vegas juntos. Dentro há canais com gôndolas, casas de mentira e um falso céu azul. Gondoleiros filipinos soltam a voz. “E cantam muito bem, os danados”, atestaram Ines Trickovic e Joe Pandur.

A maioria absoluta dos turistas dos cassinos vem da China continental. São autorizados pelo governo a levar no máximo 20 mil yuans para fora do país (7 mil reais) e retirar até 10 mil yuans por dia no caixa eletrônico. Diante das limitações, muitos recorrem às casas de penhores. Os salões de jogos estão sempre abarrotados de chineses, alguns com pinta de mafiosos, e para percorrê-los é preciso suportar os olhares zangados dos seguranças e quebrar uma quase sólida nuvem de fumaça de cigarro. Os jogos mais populares são o bacará, o vinte e um, a roleta e o fan tan.

Em Macau descobri que é proibido andar de boné nos cassinos por causa das câmeras de reconhecimento facial, e também que as janelas dos hotéis são lacradas para evitar suicídios de apostadores desiludidos. Quem quiser abri-las deve assinar um termo de responsabilidade em que supostamente se comprometeria a não atentar contra a própria vida. É uma cidade de muitas luzes, insônia e chinesas fumando na calçada com bobes na cabeça, enquanto falam ao celular.


PRESA EM  MACAU
 

Então fiquei presa em Macau. A ideia original era conhecer Hong Kong, depois Hainan e Pequim, mas para isso eu precisaria obter um visto de entrada específico. Como a organização do festival só emitiu a passagem quatro dias antes da partida, perto de um fim de semana, não pude solicitar tal visto em São Paulo. Então, em Macau, fui ao Comissariado do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, onde preenchi formulários e apresentei a passagem de volta, reservas de hotéis e seguro-saúde. Disseram-me que o visto demoraria duas semanas e só valeria por sete dias. A ilha de Hainan foi imediatamente cortada do roteiro.

Terminado o festival, no domingo, o plano B era tomar o ferry rumo a Hong Kong, passar uma semana lá e voltar a Macau para buscar o visto. Hotel reservado, passagem comprada, mala despachada. Usei naturalmente meu passaporte português, pois o brasileiro estava retido no Comissariado. Contudo, na saída de Macau, uma surpresa: não me deixaram passar. Segundo uma regra escrita em algum lugar, deve-se sair de Macau com o mesmo passaporte da entrada. Mostrei o recibo do Comissariado que reteve meu passaporte brasileiro. Mostrei o passaporte português perfeitamente válido. Mostrei meu carimbo de entrada, num papel separado. Mostrei meu comprovante de vacina contra febre amarela. A resposta, no ininteligível inglês macaense: “Meu chefe decidiu que você não vai para Hong Kong.” E, apontando para o saguão de entrada: “Já pra fora! Out!”

Não adiantou chamar Fish Ho, o chinês faz-tudo da organização do festival, nem apelar para a cara de cachorrinho pidão: fui para um hotel passar a noite e esperar a chegada da segunda-feira, quando o Comissariado estaria aberto.

De manhã, o funcionário informou que não devolveria meu passaporte, pois estava em processo de solicitação de visto. Tentei explicar em inglês (que ele pouco entendia) e com vigorosas mímicas que eu não queria mais o maldito visto, só a minha liberdade e, talvez, um cafuné. Ao final, consegui entender que ele me liberaria o documento se eu apresentasse um bilhete de ferry marcado para aquela tarde. Por pura falta de perspectivas e desânimo existencial, andei até o terminal, comprei o tal bilhete e retornei ao Comissariado, onde o bom chinês me presenteou com o passaporte e um visto de urgência. Fui liberada para embarcar com destino a Hong Kong naquela mesma tarde, onde passaria ainda uma semana antes de viajar a Pequim.

 

HONG KONG: MEIAS SUICIDAS

A coisa mais interessante de Hong Kong são as roupas caídas dos varais, enganchadas em vigas de ferro e recônditos inacessíveis das fachadas dos prédios. Por falta de espaço, os moradores dos apertados edifícios penduram suas roupas lavadas para fora das janelas. Vez ou outra, uma camisa ou meia se desprende com o vento e tomba de lá de cima, ganhando a rua. Em alguns casos, fica pelo caminho, presa num fio ou num poste de luz. Grande diversão é percorrer as ruas olhando pra cima, identificando aqui e ali uma blusa verde estrebuchada num telhadinho e uma camiseta órfã sobre um aparelho de ar-condicionado, ainda com o pregador de madeira grudado. Ideia para ficar rico em Hong Kong: abrir um serviço de resgate de roupas com uma vara de bambu bem comprida ou uma escadinha de bombeiros.

Assim como Macau, Hong Kong também foi colônia europeia (no caso, britânica) e hoje é região administrativa especial da China, com um sistema político independente. Ao longo da última década, firmou-se como um forte centro financeiro internacional.

É um território superpovoado e verticalizado com uma das skylines (silhueta de edifícios ao horizonte) mais impressionantes do mundo. São 112 edifícios com mais de 180 metros de altura, incluindo o quinto maior prédio do mundo, em Kowloon; a imponente sede do HSBC, projetada pelo arquiteto britânico Norman Foster; a icônica sede do Banco da China, executada por I. M. Pei; e o edifício em que o Batman aterrissou estrondosamente a fim de sequestrar o contador do mal, em Batman – O Cavaleiro das Trevas (de Christopher Nolan, 2008). Todas as noites há um espetáculo de som e efeitos especiais chamado “Sinfonia das Luzes”, em que os prédios da ilha acendem e apagam em ritmo de música clássica.

Assim como São Paulo, Hong Kong é uma cidade coalhada de carros, viadutos e pontes, onde o pobre andarilho é obrigado a fazer desvios quilométricos, atravessar sinuosas passarelas, subir escadarias, singrar viadutos pelo acostamento, passar por baixo de uma cama de gato e por cima de uma cama de pregos só para mudar para o lado de lá da rua.

Os ônibus, contudo, são eficientes e fáceis de utilizar, com letreiros em inglês, mapas das linhas que atendem a determinado ponto, avisos de próxima parada e uma grande frota servindo todo o território. O metrô é igualmente eficiente – e cheio.
 

PRAGAS SOB ENCOMENDA 

Em Hong Kong encontrei uma profusão de andaimes de bambu até nos edifícios mais altos, duas estátuas de um porco feliz, meia dúzia de riquixás à venda (falar com o sr. Hung pelo tel. +852 63839439), uma estátua do Bruce Lee, um estabelecimento que se intitula Alfaiate Muito Bom, uma loja chamada Sofa So Good e um agasalho do Corinthians à venda numa banca minúscula e aleatória numa travessa da Nathan Road, em Kowloon. Dancei lindy hop num bar de jazz e tomei um chute na canela de um coreano, vi franceses sacolejando ao som de Bate Forte o Tambor, da banda Carrapicho, subi o Victoria Peak de ônibus e andei num simulador de gravidade lunar no Museu Espacial.

Comprei um repelente de insetos à base de tomate, que promete “confundir os mosquitos na hora de reconhecer os seres humanos”. Vi uma senhora respeitável conversando na calçada com uma amiga, vestida de pijama e tênis.

No aeroporto fiquei intrigada com o aviso: “Tirem seus chapéus para controle de temperatura.” Quando da entrada em Hong Kong, é preciso passar por um sensor infravermelho que mede o calor humano. Dois funcionários de máscaras monitoram e barram os indivíduos mais esquentadinhos. Deve-se tirar o chapéu para mostrar que o cocuruto está bem e que você não trouxe consigo nenhuma espécie de febre aviária, réptil ou mandaquiense.

Meu hotel tinha uma máquina de escrever para alugar e ficava no bairro cosmopolita de Mid-Levels, zona residencial servida pela maior escada rolante do mundo, com 800 metros de comprimento. A Central Mid-Levels Escalator liga uma porção de ruas morro acima e é ladeada por bares, restaurantes e lojinhas. Mais tarde, tive de me mudar por causa de um campeonato internacional de rúgbi – que lotou os hotéis – e fui para um estabelecimento em Wan Chai, onde a grande atração era um deslocado centro de convivência para idosos no 2º andar.

Foi perto dali, debaixo da passarela de Canal Road, que finalmente encontrei as cursing ladies, senhorinhas que rogam pragas sob encomenda. Por 60 dólares de Hong Kong (cerca de 17 reais), elas amaldiçoam quem você quiser – o esconjuro pode ser direcionado a um indivíduo específico ou a um grupo. O interessado preenche um formulário–padrão em forma de corpo humano e explica a situação à boa senhora, que começa a fazer coisas estranhas tipo queimar objetos, dar banha de porco a uma dobradura de tigre e bater com um sapato no papel. O nome do ritual é da siu yan, ou seja, “dando uma sova nessa gentalha” (tradução livre).

A praga tem duração variável em consonância com o valor pago, podendo vigorar de uma semana a toda a eternidade. “Consulte a sua cursing lady para maiores detalhes.”
 

PEQUIM: CUSPE IN CONCERT

Desembarquei em Pequim no dia 24 de março, pouco depois de uma inesperada frente fria. A primeira coisa que vi não foi a Muralha: foi a neve. “Índia mandaquiense não conhecer neve”, expliquei para o meu guia e intérprete, Daniel, enquanto chafurdava num montinho de gelo.

A capital chinesa é uniformemente cinzenta. Em janeiro, o índice de poluição chegou a ultrapassar 45 vezes o limite considerado seguro pela Organização Mundial de Saúde (OMS), contaminando fontes de água potável e gerando problemas sociais e de saúde. Depois da neve, a situação melhorou um pouco, mas não muito. Os cidadãos andavam pelas ruas com máscaras cirúrgicas e era difícil enxergar. No meu quarto de hotel, ao lado dos amendoins, havia duas máscaras respiratórias para utilizar em incêndios, mas que eu quase empreguei no dia a dia. Segundo as instruções, após ajustar as tiras atrás da cabeça, deve-se “escolher um caminho e correr resolutamente para salvar sua vida”.

É uma cidade hostil para introvertidos, já que os turistas são incansavelmente abordados por pessoas vendendo bonés, bandeirinhas, bolsas, passeios turísticos, caronas de riquixá e livros vermelhos. Nas lojas, basta fixar o olhar despreocupadamente numa camiseta para ser assediado por uma vendedora estridente de calculadora em punho, gritando: “70! 70!” Se por acaso o sujeito transfere o olhar para um sapato, a moça brada: “Sapato? Sapato 100 pra você!”

Em caso de fuga, ela faz questão de puxar o indivíduo de volta pelo braço, repetindo “10! 10!” pela mesma camiseta que custava 70 yuans minutos atrás. O mesmo acontece com os camelôs, massagistas de rua, comerciantes de iogurte e outros.

Em Pequim quase ninguém fala inglês, nem mesmo os taxistas. Por isso é importante trazer consigo um cartão do hotel com indicações em chinês e algumas frases básicas em ideogramas, além de um smartphone com um aplicativo chamado Pleco. É muito perturbador ser analfabeta em mandarim, e até agora não sei por que dois taxistas se recusaram a me levar de volta ao hotel a partir do parque Jingshan. Só o que entendi foi “não, não” e a porta se abrindo. Também não compreendi o teor da briga (aos gritos) entre meu guia turístico e o motorista, mas tenho quase certeza de que era a meu respeito e fiz questão de gravá-la para pesquisas posteriores. Outro problema: o letreiro dos ônibus é escrito só em ideogramas.

Em território revolucionário vermelho, driblei as restrições da internet usando um serviço de Virtual Private Network (VPN), que conecta o computador virtualmente a uma rede local norte-americana e mascara o lugar físico onde ele se encontra. Assim pude acessar livremente o Google, o Facebook, certos jornais estrangeiros e o SongPop, joguinho virtual de adivinhação de músicas, que por algum motivo também é bloqueado.

A despeito das dificuldades, Pequim é tremendamente interessante. Na Cidade Proibida pode-se visitar o trono do imperador, o Jardim Imperial, o Hall da Elegância Literária e dezenas de casinhas com telhados cor de laranja; há também o suntuoso Palácio de Verão, o Mausoléu de Mao Tsé-Tung, o estádio Ninho de Pássaro e a praça Tiananmen, onde se veem guardas armados e detectores de metal por todos os lados.

Cospe-se muito na China. Há cinco anos, o escritor Antonio Prata foi a Xangai e descobriu que o governo estava engajado numa campanha para erradicar a escarrada no país. Queriam chegar à Olimpíada de 2008 com pelo menos 20% a menos de catarro nas ruas, mas, pelo visto, a luta continua. Em lugar de “Proibido fumar” ou “Não pise na grama”, o que mais se lê é “Proibido cuspir”. Não raro os arredores do aviso estão cercados de pequenas poças salivares.

 

FUTEPETECA E REPOLHO DE JADE

Apesar de soar uma redundância, impressionante mesmo é a Grande Muralha da China, edificação que vai serpenteando pelos picos gelados das montanhas feito um dragão, a perder de vista. Visitei a seção Remanescente de Badaling (Badaling Remnant Great Wall), onde, ao contrário da parte principal, não se avista um único turista em quilômetros. O local também não possui infraestrutura, o que contribui para a sensação de isolamento e imensidão.

Durante horas eu e o guia subimos e descemos ladeiras íngremes e escadarias de pedra, exploramos torres de observação milenares, escorregamos na neve e percorremos longos trechos da Muralha. Ele provavelmente tinha medo de altura e grudava-se às paredes nos momentos mais vertiginosos. No percurso inteiro, encontramos apenas uma família de turistas alemães e uma enorme fotografia do ator Jackie Chan em visita ao local. A sensação era de haver retrocedido 2 mil anos no tempo. Pude ouvir o exército mongol marchando ao longe e os opositores da dinastia Ming ameaçando nosso território, brandindo seus compridos bigodes.

O inglês do meu guia era truncado e a comunicação foi difícil, sobretudo nas primeiras horas do passeio – de acordo com o que entendi da explicação, o muro foi construído com latas de molho de tomate e era bastante joelho, assim como o shopping center cachorro yakult. Aos poucos, fui assimilando o sotaque e hoje ostento um curioso inglês macarrônico com toques asiáticos.

Casado, Daniel tem uma filha pequena, duas tartarugas e é fã do cinema de Hollywood. Disse que assistiu a Titanic três vezes e chorou em todas. Interessou-se pelo preço dos imóveis em São Paulo e disse que comprar uma casa em Pequim é quase impossível. Confessou que nunca saiu do país e queria aprender outras línguas.

De lá fomos a uma fábrica de jade para turistas, com repolhos gigantes esculpidos na pedra, e depois a uma degustação de chás. Jantei um caprichado pato laqueado à Pequim, com panquecas, pele crocante, molho missô e cebolinha.

Tirando a Muralha, os coloridos pôsteres de Mao, a praça Tiananmen e a Cidade Proibida, o melhor de Pequim são os parques e praças públicas, como o parque Tiantan, nos arredores do Templo do Céu. O espaço é ocupado por velhinhos exercendo práticas das mais variadas, como adeptos do tai chi, praticantes de lutas marciais com espada e bastão, grupos de ginástica, indivíduos se alongando, mulheres treinando coreografias com leques vermelhos, homens empinando pipas e brincando com bilboquês. Há um corredor imenso de gente dedicada ao carteado. Há grupos dançando em ritmos variados e uma trupe de senhoras que se reúne quase todas as noites numa praça perto da Cidade Proibida para executar dancinhas curiosas. No parque Jingshan há um espaço para tocar instrumentos musicais e cantar, onde conheci um compenetrado tocador de erhu e sua instrutora.

No parque Tiantan pratiquei o jianzi, uma espécie de futevôlei com peteca que é muito popular na China. Basta dizer que não fiz feio, embora o vento tenha prejudicado a minha performance nos momentos finais – e ainda que eu não tenha entendido as instruções em mandarim do capitão do meu time, que ria muito. Antes de partir, fui merecedora de uma garbosa peteca amarela. Todos riram muito. Espero que não tenha sido de mim.

Folha de S.Paulo – Poder
28/07/2013 – 14h15

VANESSA BARBARA
DE SÃO PAULO

Um dos aspectos mais marcantes dos protestos de rua no Brasil, desde o início, é a presença de muitos jovens com celulares e câmeras nas mãos, filmando a manifestação de todos os ângulos.

Se, por um lado, isso pode ser visto como um ponto fraco de uma geração que prefere postar a vida no Instagram antes mesmo de vivê-la, por outro pode ser facilmente interpretado como uma resposta à crise dos intermediários –tanto na política quanto na mídia–, uma tentativa de produzir contranarrativas e tomar para si a cobertura dos acontecimentos.

Quando os canais tradicionais não dão conta das novas demandas, surgem outros mediadores. Entre eles, a “Mídia Ninja” (sigla para “Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”), coletivo que se dedica a filmar e transmitir os eventos usando a tecnologia 3G do celular.

Nos últimos dias, esse embate ficou evidente. Para o jornal britânico “The Guardian”, “com a TV Globo sob frequente ataque dos manifestantes, a Mídia Ninja se tornou uma fonte confiável de informação para muitos dos envolvidos”.

Durante passeata nas imediações do Palácio Guanabara, na segunda-feira (22), o estudante Bruno Ferreira Teles foi preso pela Polícia Militar, acusado de portar e arremessar um coquetel molotov contra a barreira policial.

A cena do confronto foi filmada e transmitida, via streaming, pela internet. Enquanto Bruno passava a madrugada na penitenciária, usuários das redes sociais compartilhavam vídeos que desmentiam as acusações: num deles, Bruno é visto na linha de frente, gritando palavras de ordem para os policiais, no momento em que o artefato incendiário é arremessado de trás.

Outra filmagem flagrou o anônimo que acendeu a bomba: de rosto coberto, ele veste uma camiseta de manga curta com estampa e calça jeans clara. É auxiliado por um rapaz com mochila nas costas. Já Bruno usa uma jaqueta, traz um óculos de proteção na testa e está sem mochila.

Ele foi solto pela manhã. Segundo o desembargador que analisou o caso, a prisão em flagrante não tinha fundamento concreto.

Ainda na noite de terça, o “Jornal Nacional” dedicou quase seis minutos aos protestos, incluindo a exibição de uma entrevista do rapaz à “Midia Ninja”. “Nas redes sociais, pessoas que acompanhavam a manifestação acusaram a PM de ter infiltrado policiais sem farda para provocar o tumulto”, informou o âncora.

Na edição de quarta (24), o “Jornal Nacional” teve acesso ao inquérito e revelou que, ao contrário do que tinha sido divulgado nas notas oficiais da polícia, Bruno não portava explosivos no momento da detenção. Também mostrou imagens em que ele é visto sem mochila. O governador e o secretário de Segurança do Rio se apressaram em declarar que as circunstâncias da prisão serão investigadas e haverá um pronunciamento na segunda-feira, dia 29.

“Vocês são do Mídia Ninja, né? Aquela que salvou o carinha lá?”, indagou um popular nas manifestações do final da semana, atribuindo a soltura de Bruno aos vídeos compartilhados pela internet e à cobertura dos ninjas.

O fato de haver muita gente filmando, além de ajudar a elucidar ocorrências, também é útil para inibir infrações de ambos os lados, como vandalismo e abuso de autoridade.

Na quinta-feira, houve uma mudança drástica na abordagem dos policiais, que apenas acompanharam a passeata – esmagadoramente pacífica. A certa altura, abriu-se até um canal de diálogo com a tropa de choque, que pediu para os manifestantes liberarem uma pista da avenida. Tendo ninjas como mediadores, a PM foi atendida.

NINJAS

O “Jornal Nacional” de terça (23) informou que, segundo a PM, sete pessoas foram detidas nas manifestações por “desacato, incitação à violência, formação de quadrilha, exposição ao perigo, resistência e dano qualificado”. Dessas, seis foram liberadas porque teriam praticado “crimes de menor potencial ofensivo”.

Mas quem seguiu ao vivo a cobertura da Mídia Ninja viu como foi arbitrária a prisão dos dois membros do grupo. O primeiro, Felipe Peçanha, foi abordado sem motivos, colocado num camburão e levado à delegacia, ainda que repetisse: “Mas por quê? Mas por quê?”.

O segundo caso foi ainda mais surreal: Filipe Gonçalves de Assis transmitia da porta da delegacia, onde questionava a prisão de seu colega quando um tenente o abordou.

“Existem indícios de que você está participando de uma incitação ao movimento”, disse, depois de receber ordens pelo celular. Nesse momento, foi levado para dentro da delegacia sob os olhos de 14 mil espectadores. Eles foram soltos horas depois.

Eu não entendo

Posted: 22nd julho 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, Revista

Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
21 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

Até pouco tempo atrás, passando pelo túnel Rebouças, no sentido da Consolação, lia-se uma frase escrita no muro: “Eu não entendo”.

Irmão grafiteiro, seja você quem for, fica aí um recado: eu também não. Há anos não tenho compreendido coisa alguma, fora uma ou outra lei da física e a certeza de que o 177-H vai demorar pra passar.

Não entendo, por exemplo, por que existem 198 salões de beleza para cada cinema na cidade; por que há mais pet shops do que padarias; mais agências bancárias do que postos de saúde; por que a piscina do Pacaembu fecha às 16h45, inclusive no verão; por que os novos abrigos de ônibus não protegem contra a chuva, não têm assentos suficientes e nem quadros de informações sobre as linhas –ou seja, só servem de suporte publicitário.

Não entendo por que justo na avenida Higienópolis há um iate clube.

Não entendo uma menina andando na rua com uma toalha enrolada na cabeça; assim como não entendo por que sempre falta cloridrato de sertralina nos postos da farmácia Dose Certa.

Ilustração Catarina Bessel

 

Difícil compreender por que os serralheiros do Mandaqui muitas vezes chegam para trabalhar com soluço e sabem falar frases em sueco; por que o sindicato dos jornalistas, na República, me lembra uma mistura de repartição contábil com um consultório de dentista da década de 1970, repleto de funcionários destacados só para repor os copinhos de plástico.

Misteriosos também são os desígnios das mulheres que vão de carro até a academia; do metrô que não chega dentro da USP; das férias de 75 dias dos vereadores da Câmara.

Não dá pra compreender como ainda não despoluíram o Tietê e o Pinheiros; nem por que só um em cada dez orelhões costuma funcionar.

Escapam-me por completo as motivações de um certo passageiro de ônibus, um jovem oriental que sacou um cubo mágico da mochila e pôs-se a resolvê-lo numa velocidade incrível, sabendo realmente o que fazia, e dali a dez minutos concluiu a empreitada, levantou-se de um salto e desceu no ponto seguinte.

Não saberia dizer se ele teve um timing e um senso de oportunidade incríveis, desses que só acontecem uma vez na vida, ou se a ideia era descer exatamente quando tudo estivesse terminado; sei que o restante dos passageiros soltou um suspiro coletivo de admiração, louvando o espetacular (e modesto) prodígio do terminal Princesa Isabel.

Não entendo por que é tão divertido avistar um conhecido num lugar inesperado –outro dia vi o meu irmão subindo a rua do colégio Salesiano e quase me arremessei para fora da janela do ônibus, acenando animadamente. (Ele fingiu que não me viu.)

Não entendo por que na vida tudo passa, menos o 177-H.

18 de julho de 2013
Blog da CosacNaify

MINHA VIDA COM VANESSA BARBARA

Por Vanessa Rodrigues*
18/07/2013 às 12:12

A gente não se conhece, apesar das coincidências: temos o mesmo nome, somos jornalistas e escrevinhadoras, gostamos dos ínfimos detalhes da vida, como moscas ziguezagueantes, ávidas de cenas da vida real e fazemos aniversário no dia 14, embora em meses diferentes. Isso me dá alguma vantagem para quebrar o gelo.

Nunca nos vimos, muito embora tenhamos galgado já as mesmas calçadas. E vivemos o mesmo surto psicótico: observar o Terminal Rodoviário Tietê, em São Paulo (cidade onde vivi durante 5 anos), a segunda maior rodoviária do mundo (parece que a primeira é em Telavive, Israel), percebendo que é uma espécie de país neutro, uma súmula de Brasil, um tratado etnográfico. Bastam cinco minutos e até o escritor italiano Italo Calvino – autor de Cidades Invisíveis – ficaria louco, achando que todas suas urbes caberiam nesta anatomia. Regra básica: para entender esta central de “busões” temos de ser, porém, observadores participantes. E agora me cai nas mãos a missão de escrever sobre o livro de Vanessa. Como se escreve sobre um livro, no qual nos revemos, ou quem sabe, podemos mesmo ser personagem invisível?

 tiete1 A estação rodoviária Tietê (foto de C. Alberto)

 

Talvez a escritora e jornalista Vanessa Bárbara (VB) tenha me visto enquanto fazia trabalho de campo. Talvez a gente tenha se cruzado, lado a lado, observando a “cidade de coisas perdidas”, como ela apelida o Terminal. Talvez, quem sabe, tenhamos estado na mesma fila, ou pegado o mesmo ônibus. Em rigor, se passarmos pelo Terminal Tietê, qualquer um de nós pode ter partilhado um fragmento de vida com a autora. Não só porque o livro é carnalmente real, como também poderia ser o divã de todos nós, metafisicamente contemporâneo. 

Em todo o caso, minha vida com Vanessa debaixo do braço mudou um pouco. Deixa eu explicar melhor: minha vida com O livro amarelo do Terminal de VB se transformou em literatura, verdadeiramente, portátil, pela cidade do Porto, em Portugal. Virou uma espécie de ficção andante na primeira pessoa. Vamos por partes: o livro veio de avião, até Portugal, cruzando o Atlântico, quiçá sua estreia na Europa, na mala de dois amigos queridos, que mo compraram, porque na Cosac Naify ele estava esgotado e bem que, finalmente, merece esta reedição para acabar com o jejum.

Depois, é bom que se diga que eu levei “o Terminal” para passear pelos transportes públicos portugueses. Primeiro foi de ônibus, tomando a linha 602. Me acompanhou, ainda, de metrô, pegando a linha verde, até a estação da Trindade, outro centro nevrálgico da muvuca portuense.

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Alguns passageiros, como eu, acharam estranho meu livro nas mãos (cheio de colagens e frases na capa e contracapa), sob meu olhar grudado em páginas amarelas (aliás, nome antigo para listas telefônicas comerciais), e tentavam driblar minha distração para ver se conseguiam decifrar o enigma da capa tão esquisita. Até porque, livro amarelo em Portugal é sinônimo de livro de reclamações.

O livro de Vanessa também tem gente reclamando, é um fato, mas, sobretudo, filosofia de botequim, gente graduada em vida e relações (ralações) humanas; tem gente simpática, preguiçosa, perdida, flirt, busologia (estudo de ônibus, claro), sapato velho, perdidos e achados, xerifes, caminhoneiros, faxineiros, arroz com feijão, notícia de jornal, amigos que nunca se viram, e até Gerador automático de Reportagens. E ela, a repórter de serviço, precisou de um ano para gerar esta longa-metragem da prosa-verdade, muita conversa fiada, aprendizado de telemarketing e anotações q.b., para dar conta do recado com tantos dados e histórias cruzadas, inteligentemente, sobre o Terminal. Nada é escrito à toa e sem um sentido de ligação.

Depois, Vanessa se mune de episódios caricatos:

São mais de 2 mil informações fornecidas diariamente pelas atendentes do balcão (117 por hora, quase duas a cada minuto). Respostas a todo o tipo de pergunta, feitas pelas pessoas mais incomuns e em qualquer idioma. ‘Você conhece aquela teoria de que o ser humano consegue se comunicar em qualquer lugar?’, é o que Rosângela responde, quando lhe perguntam se ela sabe falar inglês. Não, nenhuma delas sabe um idioma estrangeiro, conhece a linguagem de sinais ou decorou o tomo L da enciclopédia, mas parece não fazer diferença.

Poderia ser o design a grande originalidade deste livro (não deixa de o ser, claro), que resulta de um trabalho de fim de curso e a estreia da autora na literatura, mas há vida além do julgamento pela capa. A grande proeza desta obra é, sem dúvida, a mistura equilibrada de estéticas literárias: ora se serve do jornalismo narrativo, ora da técnica de roteiro, passeando pelo discurso direto e indireto, do grafismo neoconcretista, da técnica do microconto, para misturar recursos estilísticos como a metáfora, as onamotopeias, e a enumeração sui generis que abunda num terminal onde a overdose é apenas um eufemismo para a iniciação a São Paulo.

Isto só prova que esta paulistana balzaquiana, além de dominar muito bem os recursos da Língua Portuguesa, sintaxe, semântica, gramática, e estéticas literárias, sabe brincar com as palavras, reinventando um estilo eclético, para este livro-reportagem.

Depois, sua cadência de prosa acelerada, numa contemplação quase sem fôlego, por vezes, é um retrato fiel da fugaz São Paulo, com seus cerca de 15 milhões de habitantes. Por isso, esse terminal só pode ser a loucura desenfreada, como se estivéssemos olhando um filme em fast-forward. Só que é a vida real, nessa aceleração. Uma análise cirúrgica sobre a psicologia e os hábitos humanos, uma microscópica dissecação das rotinas quotidianas.

 


* Vanessa Rodrigues é jornalista independente. Nasceu em 1981, em Portugal. Viveu cinco anos em São Paulo, como correspondente da rádio portuguesa TSF e jornal Diário de Notícias. Atualmente colabora com a TSF, Revista (jornal Expresso) e Notícias Magazine.

** A foto da rodoviária Tietê foi extraída daqui.