Ode ao ebook

Posted: 15th julho 2013 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
15 de julho de 2013

Por Vanessa Barbara


Sou fã do cheiro dos livros, da maciez das lombadas, das manchas de café nas páginas, das dobras no alto das folhas e do volume físico que você pode morder, arremessar e brandir para matar baratas. Mas também sou entusiasta do livro eletrônico.

Quando ganhei um e-reader de presente no ano passado (um Kindle, da Amazon), agradeci polidamente e julguei que nunca iria usá-lo, como se fosse uma incômoda pipoqueira ou uma panela elétrica de fazer arroz.

O primeiro livro eletrônico que comprei foi a biografia do Steve Jobs, por motivos puramente práticos: faltavam menos de 100 páginas para terminá-lo e eu não queria ter que levar para a França um livro de 935 gramas. Rasgar os últimos capítulos não me parecia uma opção adequada. Então decidi concluir a leitura no aparelho.

Naquela temporada, que se estendeu por cinco meses, fui mandando de volta para casa todos os livros já lidos e fiquei com apenas um: aquela engenhoca acinzentada, sem cheiro nem peso, mas que podia conter as obras completas de todos os romancistas deprimidos, poetas suicidas e jornalistas bêbados que eu desejasse.

Foi assim que os acionistas da Amazon.com.br tiveram o melhor Natal de todos os tempos: sim, a culpa foi minha. Passei a comprar compulsivamente os últimos lançamentos em literatura estrangeira, as obras de referência em luto, os manuais práticos para cuidar de quelônios e tudo o que me parecia remotamente interessante (ou barato demais para ser dispensado). Tive acesso a livros que demorariam meses para chegar ao Brasil, a preços razoáveis. Passei a ler três vezes mais do que antes, sobretudo no ônibus, onde é sempre penoso portar volumes pesados. Comprei por engano um título sobre o desenvolvimento macroeconômico dos tigres asiáticos (maldito “Compre agora com 1-Clique”) e fui prontamente reembolsada.

Meses atrás, antes de passar 28 horas no avião, fui às compras e empilhei treze novos títulos na minha biblioteca portátil, diversificando os gêneros: de romances duvidosos a thrillers da moda, passando por tratados sobre a psicologia da rejeição, clássicos da literatura, guias de Hong Kong e contos completos do Conan Doyle. Fui alternando as leituras conforme meu estado de espírito, e na volta precisei comprar mais.

O Kindle básico custa R$299, possui capacidade para até 1400 livros, pesa 170 gramas e sua bateria aguenta 15 horas de leitura ininterrupta. O Kobo custa R$ 259, armazena até 1000 livros e sua bateria dura até um mês. Para quem passa muito tempo no transporte coletivo, é um item de extrema necessidade. É bom também para desdenhar das revistas ruins nas salas de espera dos consultórios médicos.

A oferta de livros em português ainda é muito baixa e os preços não são tão convidativos quanto poderiam, mas este cenário está mudando.

Para quem adora destacar trechos das obras que lê (www.hortifruti.org), os leitores de livros eletrônicos são bem práticos e agrupam todas as marcas num só arquivo, com a nota bibliográfica pertinente (título, autor, página).

Desde que aderi ao leitor de e-books, melhorei da lordose típica de quem carrega livros pesados. Minha mala de viagens também ficou mais leve, embora eu ainda insista em empacotar, junto com a escova de dentes, alguns tomos antigos de valor sentimental ou que não possuem versão eletrônica. (Confesso: a mala para esta Flip não continha um só livro “de verdade” e voltei com apenas dois, o que deve ser uma espécie de recorde às avessas. Por outro lado, a lista de futuras compras eletrônicas só aumenta.)

E a geringonça é discreta: você pode ler as coisas mais vergonhosas sem que ninguém o identifique como fã de Dashiel Hammett, de Agatha Christie ou de livros de zumbis do espaço.

* * * * *

Vanessa Barbara nasceu em 1982, é jornalista e escritora. É autora da graphic novel A máquina de Goldberg (Quadrinhos na Cia., 2012, em parceria com Fido Nesti), O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008, Prêmio Jabuti de Reportagem), O verão do Chibo(Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e do infantil Endrigo, o escavador de umbigo (Ed. 34, 2011). É tradutora e preparadora da Companhia das Letras, cronista daFolha de S.Paulo e colaboradora da revista piauí. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
Site – Facebook

Antes do vôlei – Entrevista para o Rascunho

Posted: 15th julho 2013 by Vanessa Barbara in Clipping
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Jornal Rascunho
Julho de 2013

Vanessa Barbara. Foto: Nino Andrés

Foto: Nino Andrés/Divulgação CosacNaify

Para Vanessa Barbara, literatura é mais que uma “questão de status e posteridade”. A jornalista e escritora, nascida em São Paulo, em 1982, desenvolveu um estilo de escrita despreocupado e envolvente, seja na ficção, na crônica ou na reportagem. Seu trabalho de conclusão do curso de jornalismo se transformou em O livro amarelo do terminal, livro-reportagem sobre a rodoviária do Tietê lançado em 2008, mesmo ano de sua estréia na ficção, com O verão do Chibo, romance escrito em parceria com Emilio Fraia. Vanessa já se aventurou também no terreno dos infantis, com Endrigo, o escavador de umbigo (2011) e, mais recentemente, no dos quadrinhos, com a graphic novel A máquina de Goldberg (2012), em parceria com Fido Nesti. Como tradutora, já verteu obras de F. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein e Art Spiegelman para o português, e agora trabalha numa tradução de Alice no país das maravilhas. Ainda cronista da Folha de S. Paulo e colaboradora da revista piauí, neste Inquérito, Vanessa confessa suas manias, revela seu método em casos de falta de inspiração e estipula um importante limite para a ficção.

 Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Acho que até hoje não me dei conta. 

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Adoro usar ponto-e-vírgula, para desgosto de muitos; não sou fã de frases curtas e telegráficas, sobretudo as impactantes e pomposas. Adoro ler romances longos, prolixos e cheios de digressões, de preferência que se passem numa cidadezinha do interior da França. Ou na Rússia agrária.

• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
A leitura de antes de dormir, que pode ser qualquer coisa entre um romance clássico, um thriller policial e um livro de estatísticas sobre divórcio.

• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?
Se fosse a Dilma da revista piauí, eu certamente recomendaria O morro dos ventos uivantes ou alguma coisa caramelosa. Ela ia amar, se apaixonar pelo Heathcliff e reler para as tias na Noite do Fondue. (A piauí publica mensalmente o Diário da Dilma, escrito pelo Renato Terra.)

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Não existem; gosto de escrever quando estou no ônibus, a caminho de um compromisso, ou no chão do Sesc, esperando a hora de começar o vôlei, mas também em casa, de madrugada, no silêncio absoluto. Uma vez passei uma semana num hotel-fazenda para revisar um livro e deu certo também.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Antes de dormir, deitada na cama com o abajur ligado.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Depende do que estou fazendo: reportagem, tradução, crônica.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Eu gosto de reler os textos e ver que ficaram redondinhos, então entregá-los. Também é bom ler alguma coisa antiga e rir em voz alta, achar legal, dá uma satisfação boa. Outra coisa feliz é quando estou sem idéias de como começar um texto e decido sair pra fazer outra coisa, aí no caminho vou montando um parágrafo na minha cabeça, corrigindo e alterando palavras, até ficar perfeitinho. Então eu despejo no papel e é só continuar. Isso também acontece quando estou no banho, o que é pior, porque eu saio de toalha pingando pelo corredor, morrendo de medo de esquecer o parágrafo.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Editores ruins ou negligentes.

 O que mais lhe incomoda no meio literário?
O oba-oba social, as fofocas do meio. Gosto de ficar bem longe.

 Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
O Antonio Prata, melhor cronista da nossa geração. O Rubem Braga corinthiano.

 Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: O demônio do meio-dia, de Andrew Solomon. Descartável: Hercólubus ou planeta vermelho, de V. M. Rabolú. Mentira, esse é legal.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A pomposidade, o existencialismo forçado, o autor que se leva muito a sério e quer escrever algo profundo.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Vampiros? Micose? Cutelaria? Se bem que…

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
A praça Tito, um amontoado de mato e cadeiras velhas que alguém erigiu aqui perto, em memória do pai que morreu. Lá tem a inscrição: “Praça Tito — Favor não mexer nos móveis”.

• Quando a inspiração não vem…
Ah, ela vem. Eu me entupo de chicletes e puxo o texto com um fórceps.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Flaubert.

• O que é um bom leitor?
Aquele que não é analfabeto.

• O que te dá medo?
Lagartixas, autoridades, palhaços, metaleiros com voz fininha.

• O que te faz feliz?
Tartarugas, astronomia, sol, sapateado, vôlei, torta de limão, literatura, filmes antigos.

• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
A certeza de que depois deste texto eu posso escrever outro, depois deste livro um outro, e nada é tão importante para ser levado miseravelmente a sério, como se fosse uma questão de status e posteridade.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Que o texto tenha ritmo e fluidez, seja surpreendente e divertido para o leitor.

 A literatura tem alguma obrigação?
Não.

 Qual o limite da ficção?
Zebras infláveis. Quando chegou em zebras infláveis, tem que parar.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Ao PJ, que é um amigo meu que dança esplendidamente e é o melhor líder no rockabilly que eu já vi. Os ETs iam se divertir muito. Tem também o Fran, que no quesito lindy hop é o líder mais competente.

• O que você espera da eternidade?
Que lá tenha um bom sinal de internet.

Em boca fechada…

Posted: 15th julho 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas
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Revista Gloss
Julho de 2013

por Vanessa Barbara

“Como saber se um finlandês gosta de você? Fácil: se ele estiver olhando para o seu sapato em vez do dele.” Quem conta a piada é a escritora Susan Cain em “O Poder dos Quietos” (ed. Agir, 2012), falando da fama de introvertidos dos nórdicos.

Não sou finlandesa, mas poderia. Muitas vezes prefiro ficar em casa lendo em vez de ir a uma festa, fazer palavras cruzadas em vez de socializar com estranhos, assistir a um filme em vez de sair para beber. Gente muito animada me dá alergia, assim como rodinhas de violão estridentes. Dar entrevistas para a tevê me é tão prazeroso quanto tomar uma injeção.

O introvertido é uma pessoa sensível que se sente confortável tendo a si mesmo como companhia, prefere ambientes sossegados e gosta mais de ouvir do que de falar. Segundo Susan, um terço da população é assim. A introversão é um pouco diferente da timidez, que é o medo do julgamento social, e se define melhor pelo modo como respondemos aos estímulos, incluindo os sociais. Introvertidos sentem-se bem com menos estímulos e são atraídos pelo mundo do pensamento e do sentimento; extrovertidos pelas atividades e a companhia dos outros. Funcionam de forma diferente.

Ainda assim, ao longo da vida, aprendemos que introversão é um defeito. Na escola e no trabalho, a extroversão tornou-se um padrão opressivo que a maioria de nós acha que deve seguir.

Quando eu estava no ensino médio, tomei uma advertência por ser antissocial. Diziam que eu devia me esforçar para ser mais extrovertida, do contrário não seria nada na vida. Assim como muita gente, fui coagida a “sair da concha”.

Com o tempo, entendi que o ideal expansivo é uma bobagem. Ninguém deveria se sentir obrigado a ser quem não é; em lugar disso, deveríamos valorizar os introvertidos pelas suas qualidades singulares.

Hoje adoro jogar vôlei e dançar, mas sei que preciso recarregar a bateria ficando sozinha. Virei escritora em vez de repórter e não sinto necessidade de provar o meu valor sendo sociável o tempo inteiro.

E acho a maior graça quando me aconselham a “sair da concha”: respondo que ninguém diz isso ao molusco e boto de volta o fone de ouvido.

Apologia do vinagre

Posted: 11th julho 2013 by Vanessa Barbara in esquinas, Reportagens, Revista piauí
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Revista piauí n. 82
Julho de 2013

O ácido acético entra para a pauta da política nacional

por Vanessa Barbara

“Galera, por favor, esta é uma manifestação pacífica”, alertou no Facebook o jornalista Gilberto Americo da Silva. “Não deem motivos para discriminar o movimento: por favor, não consumam vinagre durante o trajeto; evitem as saladas”, pediu.

No rastro das manifestações populares que tomaram o país nas últimas semanas, um único tema conseguiu aglutinar a indignação de todos os setores da sociedade: a injusta criminalização do vinagre.

Tudo começou em 13 de junho, quando o jornalista Piero Locatelli foi preso por porte ilegal do produto enquanto cobria os protestos contra o aumento da passagem, no Centro de São Paulo. Assim como muitos manifestantes, ele trouxera uma garrafa de ácido acético a fim de neutralizar os efeitos do gás lacrimogêneo.

Num primeiro momento, a polícia alegou que o ingrediente poderia ser utilizado para fazer uma bomba caseira, misturado com bicarbonato de sódio. Depois argumentou que eram prisões preventivas, efetuadas apenas para averiguar a natureza do líquido. “Não tenho condições de pegar uma garrafa e saber que é vinagre. Só quem vai dizer com certeza é o Instituto de Criminalística”, declarou o tenente-coronel Ben-Hur Junqueira, comandante da operação.

Locatelli e outros suspeitos foram liberados algumas horas depois. Mas era tarde demais: àquela altura, a legalização do vinagre já tinha se convertido em bandeira popular na internet, onde se disseminaram memes como a expressão “V de Vinagre”, em referência aos quadrinhos V de Vingança. Em questão de horas organizou-se no Facebook uma Marcha pela Legalização do Vinagre, que uniu virtualmente 52 816 pessoas em franca apologia ao ácido.

Detalhe: a despeito do barulho, a ciência nunca comprovou a eficácia do vinagre para minimizar os efeitos do gás lacrimogêneo. Especula-se que o efeito seja apenas psicológico; alguns toxicologistas defendem que o uso do ácido acético pode até piorar a irritação das mucosas.

 

o latim vinum (vinho) + acer (azedo), o condimento consiste numa mistura de água e ácido acético, proveniente da fermentação do etanol. O vinagre existe há milhares de anos e é comumente servido como molho para saladas, embora possua uma infinidade de usos domésticos, industriais e médicos. Aplicado nos cabelos, serve para combater piolhos. Também é útil para remover manchas, eliminar pragas, curar soluços, tratar infecções causadas por fungos, cozer ovos, fortalecer plantas, desentupir pias, aliviar hematomas, lustrar dentaduras e prevenir o refluxo gástrico.

No evento do Facebook, a indignação era vistosa. Preocupado, o assessor de comunicação Rodrigo Pereira alertou: “Vinagre com repolho é uma receita de bomba usada há muito tempo pelos terroristas da Alemanha. Conhecida também como chucrute, a reação química ocorre no próprio corpo do terrorista, que se converte em uma arma química imprevisível de gases venenosos. O efeito é devastador em ambientes fechados como elevadores. É incontável o número de vítimas do chucrute.”

Foram postadas fotomontagens com a apresentadora Palmirinha Onofre sendo presa por porte ilegal do tempero, além de vídeos de microexplosões provocadas por vinagre e bicarbonato de sódio. Alguns manifestantes pediram seriedade. Em resposta, criou-se novo slogan: “Faça salada, não faça guerra.”

“O verdadeiro foco da nossa luta deveria ser combater os pontos de venda dessas substâncias”, reivindicou César Dias. “Aqui perto de casa, na Zona Leste, ele é vendido livremente, de forma organizada, num ponto de vendas chamado supermercado.”

O estudante Lucio Daleiro Ayala discordou: “Acredito que a legalização do vinagre para uso recreativo irá ajudar a combater o tráfico que ocorre há anos em nossa sociedade”, declarou, amparado pela maioria.

Nesses primeiros dias de luta, uma das grandes preocupações era estipular o volume (em litros) que diferenciaria o usuário do traficante, e se para os dependentes caberia internação compulsória. Na opinião do militante Kadu Vido, o vinagre é uma droga de entrada: “A pessoa começa por ele e, quando vai ver, já está cheirando gás lacrimogêneo e vendendo o corpo para pagar a passagem de ônibus.” Uma visitante, incrédula, concluiu que ele só podia estar sob o efeito de vinagre branco.

 

egundo enquete efetuada nos dias que se seguiram à proibição, 32% dos membros da comunidade virtual defendiam que se injetasse vinagre na veia. Outros 30% preferiam diluir a substância no Eno Guaraná, enquanto 22% o cheiravam. “Não uso entorpecentes tão poderosos”, foi a resposta de míseros 8%, e o restante se dividiu entre baforar, fazer chá e ingerir o produto com gás lacrimogêneo.

Como previsto, o movimento descambou para a clandestinidade: “Tenho vinagre do bão aqui. Dá pra cheirar, fumar, injetar, fazer bomba; filma, fotografa e reproduz MP3”, anunciou uma mulher. Firme, o líder João Alves pediu que não se perdesse o foco: “Temos de pensar na segurança e integridade da militante Palmirinha, uma das principais perseguidas políticas desta revolta.”

Tamanha controvérsia incentivou a empresa Flux Game Studio a desenvolver o jogo para Facebook V de Vinagre, em que o protagonista comanda um manifestante mascarado fugindo da polícia. Ao fim do jogo, após ser preso e levar uma surra, o herói recebe um rótulo de acordo com a quantidade de vinagre apreendida: desocupado, vagabundo, meliante e, no pior dos casos, comunista.

Em 16 de junho, finalmente, o secretário de Segurança de São Paulo, Fernando Grella, liberou o uso do produto para propósitos revolucionários e gastronômicos. Ainda assim, no Facebook, alguns militantes interpretaram a manobra como uma armadilha.

Quem deu a palavra final foi a engenheira de computação Cássila Kirst, que, experiente, sugeriu que os manifestantes fossem cautelosos e contrabandeassem vinagre dentro de armas de fogo.

Tô Rocco

Posted: 8th julho 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo
Festa Literária Internacional de Paraty – Flip 2013
8 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

A última noite da Flip é sempre antológica, embora a maioria dos participantes não se lembre disso. É quando péssimas ideias são levadas a cabo, velhos inimigos de letras decidem levar suas divergências para o embate físico, e o pessoal, em suma, cede à tentação de dançar um hit do Michael Jackson com as mãos erguidas aos céus, preferencialmente fantasiado de imperador romano ou mulher das cavernas.

No sábado à noite, quando ocorrem congestionamentos bem paulistanos na ponte que dá acesso às tendas, nenhuma festa de editora ousa agregar todos os presentes, que se espalham pelos bares da cidade e pela praça da Matriz.

Lá pelas três da manhã, o cenário é de perda total: um homem pouquíssimo preocupado cavouca a terra da praça em busca de uma chave perdida (“É muito álcool”, explica). Uma menina empolgadíssima anuncia aos amigos: “Aí, galera! Tá rolando uns banheiros químicos! Quem vem comigo?”.

Numa micareta improvisada em que até os membros da banda estavam quimicamente alterados, um rapaz mantinha erguido o cartaz: “Fora Cabral”.

Ao longo da madrugada, correu o boato de que havia fartura de um produto do bom na casa onde se hospedava a equipe do blog literário Posfácio, e que o esquema de distribuição era open bar – em nome da precisão jornalística, esta repórter foi lá conferir e garante ter consumido boa parte do conteúdo de um pote branco com 114 unidades de pães de mel trazidas de Minas Gerais por um entusiasta do doce.

Outro momento da noite de que só os sóbrios se lembrarão (e somos cinco) inclui uma aparição-relâmpago do tradutor Samuel Titan Jr. na festa da editora Companhia das Letras, bradando: “Primeiro eu dou as caras, depois eu dou as costas”.

O Hamlet dos quelônios

Posted: 7th julho 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo

Folha de S.Paulo
Festa Literária Internacional de Paraty – Flip 2013
7 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

Incógnito entre os escritores e intelectuais, Leonardo é o protagonista real de uma sórdida trama shakespeariana que envolve dissimulação, traição e vingança. O menino, de aproximadamente 11 anos, anda pelas ruas de Paraty vendendo trufas que “são mais gostosas do que parecem”.

Quem vê de longe não imagina a contundência de sua história, desenvolvida soberbamente num arco narrativo que durou cinco minutos.

Onisciente, ele sempre soube que sua antiga babá não era uma pessoa boa, embora o aparentasse. “Ela fritou a minha tartaruga”, acusa, “e eu soube disso porque instalei uma câmera”.

A ex-babá defendeu-se dizendo que o quelônio fugiu e que ela não conseguiu apanhá-lo, mas a desculpa era inverossímil e as imagens, incontestáveis. Como todo bom arquétipo de herói, Leonardo transformou o incidente em cruzada. “Já faz uns dois anos que me dedico a fazer da vida dela um inferno”, declara.

Demitida, a assassina de quelônios virou professora da turma dele. Botar cola na cadeira da docente e bagunçar os papéis da aula é o mínimo que os justiceiros mirins costumam praticar contra a vilã: “Um dia ela cochilou na aula e acordou de ponta-cabeça”, garante.

Outra passagem dramática desta Flip ocorreu na Tenda dos Autores, pouco antes da conferência de abertura sobre Graciliano Ramos. Seguranças barraram a entrada de uma sofrida cadela manca, que tinha um olhar literário e talvez fosse uma reencarnação da cachorra Baleia, de “Vidas Secas”.

Defensor dos aflitos, Leonardo não se pronunciou sobre o assunto. Especula-se que o dinheiro das trufas seja empregado em atividades clandestinas voltadas à reparação de crueldades aleatórias.

Leonardo é o herói trágico do ano.

É gente pra caramba

Posted: 7th julho 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Revista
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Folha de S.Paulo – revista sãopaulo
7 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

“Sábado” me representa.

O filme de 1995, dirigido por Ugo Giorgetti, é até hoje um dos melhores retratos da diversidade paulistana, sobretudo em momentos de curiosidade e de grandes provações.

No longa, uma agência de publicidade vai ao Edifício das Américas, no Centro, para gravar um comercial de perfume. Um dos elevadores quebra, e a multidão começa a se aglomerar no saguão. Alguns dão palpite nas filmagens, outros aplaudem fervorosamente; surgem um vendedor de raspadinha e um homem-placa com os dizeres: “Compro ouro”.

Um grupo se ajoelha para pedir ao Todo-Poderoso que dê um jeito no elevador “para que as pessoas subam para os seus desígnios na casa do Senhor”. O pregador brada: “É a quinta vez que este elevador nos coloca à prova”.

Há um casal de sem-teto, um punk, uma quiromante, uma grã-fina com um cachorrinho, um zelador bêbado e um pessoal tocando baião.

Presa no elevador, uma publicitária de classe média se vê obrigada a dividir o espaço com um mano pançudo de gorrinho, dois funcionários do IML (Instituto Médico Legal) e um cadáver, singelamente chamado de “podrão”.

Enquanto isso, na casa de máquinas, dois “técnicos” (o Zecão e o Bahia) tentam consertar o mecanismo, ligando aleatoriamente o 8D no N19. “Cuidado que é força trísica”, dizem.

Quando o problema elétrico se resolve, os populares aplaudem e alguém comenta: “O que não é a instrução, hein?”.

Em certo momento do filme, um dos papa-defuntos observa, referindo-se à publicitária: “Quando é que ela ia se dirigir para a gente na rua? Mas viu como é que é a vida? De repente ela colocou a gente aqui junto”.

Foi essa buliçosa mistura que testemunhei na Virada Cultural e nas manifestações que tomaram a cidade nas últimas semanas. São Paulo como um gigantesco elevador pifado, em que uns reclamam que queriam estar no terraço “comendo umas carne”, e outros já se habituaram a ficar de pé ao lado do podrão.

Na Virada Cultural, vi senhores de sobretudo esperando um concerto de jazz enquanto assistiam ao final do show do rapper Rappin’ Hood.

Havia ambulantes oferecendo drinques na bandeja como se estivessem numa festa chique; outros cobravam R$ 10 pela dose de uísque ou faziam churrasco num fogareiro. O “tio do guarda-chuva” e o comerciante autônomo de bebidas são os microempreendedores mais presentes nos congraçamentos populares.

Durante os protestos, vi um menino com o cartaz “vendo Palio 98” e algumas patricinhas parando no meio da passeata para tirar fotos de si mesmas fazendo biquinho.

Entoado por milhares de concidadãos, o melhor grito de guerra –em adaptação livre para omitir o palavrão — não rimava e nem tinha propósito: “O povo/ Unido/ É gente pra caramba”.

Folha de S.Paulo – Folha Online
Festa Literária Internacional de Paraty – Flip 2013
6 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

“A experiência brasileira nessas últimas três semanas representa um momento extraordinário na política mundial, marcada por crises de representatividade democrática”, afirmou o historiador britânico T. J. Clark nesta noite de sábado (6), na Flip.

Numa mesa marcada por ânimos marxistas, três pensadores de esquerda se reuniram para discutir as aspirações e características dos protestos que tomaram o Brasil nas últimas semanas: além de Clark, estavam presentes o filósofo e colunista da Folha Vladimir Safatle e o psicanalista Tales Ab’Saber. O debate, que teve mediação do jornalista Mario Sergio Conti, ex-diretor da revista Veja e apresentador do Roda Viva, começou com 25 minutos de atraso (o que estranhamente não gerou protestos) e foi marcado pela confluência de opiniões entre os participantes e a plateia.

Autor de Uma esquerda sem futuro (ed. 34), T. J. Clark começou citando o poeta caribenho Derek Walcott, que, no poema “A Sea Change”, fala sobre a inquietação política e a “raiva sombria e agregadora de um eleitorado ferido, cansado das imagens de outdoors”. Ele interpretou as manifestações no Brasil como um repúdio ao que chamou de “igrejas do futebol”, catedrais esportivas cada vez maiores e mais caras que o governo impõe ao povo. Ao longo da história, palácios, estátuas e pirâmides – e agora, estádios – foram utilizados para subjugar as massas.

“A força das imagens é uma decorrência da falta de força do povo nas outras esferas”, afirmou. “É possível resistir a essa colonização? Espero que sim. Acho que sim”, disse Clark, que, a certa altura, chegou a sugerir que os brasileiros fossem às ruas protestar contra a realização da Copa do Mundo.

O britânico ressaltou que, nos protestos atuais, existe uma tentativa de elevar os cartazes feitos à mão como legítimas imagens do povo, numa transferência simbólica de poder.

Ele encara o movimento como algo positivo, mas perigoso, na medida em que deu voz a fantasias antipartidárias.

IMAGEM ERÓTICA DO HOMEM LULA

Autor de A esquerda que não ousa dizer seu nome (Publifolha), Vladimir Safatle comemorou a volta da política às ruas. “Os últimos vinte anos foram um hiato na participação popular brasileira, período de exceção em que a política foi relegada aos bastidores. Mas a onda de protestos recolocou na pauta as demandas das ruas, abrindo novos eixos de conflito e embates democráticos”, afirmou. A insatisfação atual, para Safatle, decorre de uma crise de representação, do esgotamento das possibilidades da democracia parlamentar. “Queremos combater a desigualdade econômica por meio de serviços públicos de qualidade, e é importante colocar isto de forma séria”.

Safatle falou também da política de virtude baseada no bem comum, reivindicada por quem deseja que “o último mensaleiro petista seja enforcado nas tripas do último tucano corrupto”. (Nesse momento, foi crivado de aplausos.) Disse que a democracia é sempre um porvir e demanda um constante reordenamento do estado de direito, que não tem como responder por toda e qualquer nova demanda do povo.

Sob a perspectiva da psicanálise, Tales Ab’Saber falou da “imagem erótica do homem Lula” e se mostrou empolgado com o momento histórico. “Temos um movimento de movimentos, ou seja, um produtor de outros movimentos”, explicou ele, que é autor de um livro sobre o fenômeno do lulismo publicado pela editora Hedra.

Ab’Saber elogiou a visão política dos “meninos” do Movimento Passe Livre, que utilizaram um verdadeiro padrão de análise marxista ao diagnosticarem as falhas da máquina da nossa democracia, os pontos nevrálgicos que podiam ser trabalhados com vistas a agregar demandas e abalar o governo – no caso, a pauta escolhida foi a briga contra o aumento da tarifa e a discussão sobre transporte público. De quebra, o movimento abriu um debate sobre a militarização da polícia de São Paulo, oriunda da ditadura, uma força de exceção e ilegalidade que “precisa começar a agir dentro da lei”. Ele fez questão de dizer que grande parte da civilização se fundou a partir de conflitos e que este é um caminho legítimo.

Clark concordou com a análise política de Ab’Saber, mas discordou terminantemente de sua visão otimista das novas mídias. Animado, o psicanalista brasileiro afirmou que o celular e as redes sociais trouxeram uma gestão flexível da nova política, aumentando em muito a potencialidade da democracia direta. O historiador britânico rebateu dizendo que mídias sociais podem ser instrumentos poderosos –como o capitalismo–, mas se limitam ao virtual e isolam o indivíduo. Clark relaciona a estagnação política brasileira nos últimos vinte anos ao declínio da força dos sindicatos e pediu que as mídias sociais levassem o movimento às ruas.

Folha de S.Paulo – Folha Online
Festa Literária Internacional de Paraty – Flip 2013
6 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

Uma conversa entre duas figuras elegantes, à meia-voz, marcou a mesa “Traduzindo Flaubert”, que ocorreu no final da tarde desta sexta-feira, em Paraty.

No ambiente intimista do auditório da Casa de Cultura, a escritora norte-americana Lydia Davis e o tradutor Samuel Titan Jr. falaram sobre os desafios de traduzir Gustave Flaubert. O debate, que teve mediação do jornalista Guilherme Freitas, versou sobre a dificuldade de encontrar equivalentes para a famosa “palavra justa” do romancista francês, que se notabilizou pelo perfeccionismo e pela busca de perfeição vocabular.

Titan, que assinou a tradução de Três Contos (CosacNaify, 2004) em co-autoria com Milton Hatoum, explicou, logo de saída, que o estilo de Flaubert consiste justamente na ausência de floreios retóricos e gestos eloquentes – o que, no século XIX, chegou a ser considerado sinônimo de má escrita e ignorância gramatical. “Durante a tradução, temos de resistir ao impulso de tornar elegante ou polido o que é áspero no original”, disse, apelidando esse fenômeno de “vontade de melhorar Flaubert”. Ele também comentou sobre a necessidade de empregar palavras que tenham a mesma conotação moral do original.

Falando baixinho, a simpática Lydia Davis, que há três anos traduziu Madame Bovary para o inglês, observou que nenhuma das antigas edições norte-americanas era fiel ao estilo flaubertiano, tomando liberdades desnecessárias em nome da clareza ou da elaboração formal. Afirmou ter sentido muita dificuldade com a sintaxe e o “uso bizarro do ponto-e-vírgula” que cortava bruscamente as frases do escritor.

“Devemos confiar no autor e não tirar conclusões próprias”, ela defendeu, usando como exemplo uma cena de Madame Bovary em que damas flanavam pelo salão segurando “pequenos frascos”. Alguns tradutores optaram por escrever “frascos de perfume”, mas, consultando os rascunhos do romance, Davis descobriu que se tratavam de frascos de vinagre utilizados para despertar donzelas desmaiadas. Mesmo sabendo disso, ela escreveu apenas “pequenos frascos”, conforme o desejo do autor, e acrescentou uma nota explicativa.

Usando essa mesma lógica, Samuel Titan Jr. criticou a tradução do título Um coração simples para Um coração singelo, numa edição antiga do livro. Essa opção é um erro, pois o termo “singelo” é açucarado demais e prescinde da neutralidade do original. Para ele, tais julgamentos somente são possíveis quando o tradutor desenvolve uma espécie de “ouvido” para as palavras.

Empolgado, Titan afirmou que Madame Bovary transcende as fronteiras da literatura francesa, representando o ápice de um processo evolutivo do romance que começou com Dom Quixote, de Cervantes. “Não por acaso Madame Bovary foi chamada de ‘Dom Quixote de saias’, o que não é só uma piada tola”, afirmou, atribuindo a Flaubert a fundação da modernidade literária.

A pedidos da plateia, ambos terminaram falando sobre o “Dicionário de Ideias Feitas”, uma compilação de lugares-comuns coletados pelos heróis de Bouvard e Pécuchet, que copiavam trechos de obras sempre que detectavam algum sinal de estupidez. Classificado por Lydia Davis como “radical”, o derradeiro romance de Gustave Flaubert ficou inacabado.

“Em todo caso, a intenção era escrever um livro que, uma vez pronto, deixaria o leitor sem saber se estão ou não zombando dele”, concluiu Titan.

Cenas do capítulo 11

Posted: 5th julho 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo
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Folha de S.Paulo – Cotidiano
Festa Literária Internacional de Paraty – Flip 2013
5 de julho de 2013

por Vanessa Barbara

Cada Flip traz em si todas as edições anteriores, como um livro que você adora reler, mas que por vezes até se arrepende de abrir.

Na primeira, em 2003, dizem que o romancista norte-americano Don DeLillo foi visto nas ruas de Paraty tentando vender uma bola de beisebol usada (a anedota é boa, mas carece de veracidade).

No mesmo ano, Julian Barnes aprendeu a dizer “paralelepípedo” e o historiador Eric Hobsbawm foi flagrado comprando paçocas.

Em 2004, Chico Buarque fez um gol “de letra” no goleiro e eletricista Nanã em partida contra um time local. Na plateia, Paul Auster confessou desconhecer as regras do esporte. O trocadilho da vez decorreu da insólita aparição de um apresentador de televisão, que logo ganhou a alcunha de “Gugu Literato”.

As lendas e fofocas correm soltas, feito subtramas de um romance russo: Arnaldo Jabor acusou uma professora de stalinista, um grilo cruzou o palco, Zuenir Ventura foi chamado de Saramago e Humberto Werneck disse “períneo”.

A escritora americana Toni Morrison andou de charrete na Flip 2006 e Simon Schama dançou “Thriller” com uma camisa aberta até o umbigo, em 2009. Dois anos depois, James Ellroy circulou com a mesma camisa amarela florida. Já o jornalista Gay Talese levou uma mala cheia de ternos.

Lembro de, uma vez, ficar presa numa mesa de restaurante em que Xinran e Ma Jian discutiam violentamente em mandarim, enquanto suas moquecas esfriavam no prato.

Este ano, na 11ª Flip, quem já virou assunto foi Gilberto Gil, que, no show de abertura, propôs a criação de um “carnê-Copa” para os desfavorecidos. A ideia era comprar ingressos de partidas da Copa do Mundo e abrir um crediário para os pobres.

Cada Flip tem sua mitologia própria, reviravoltas e tropeços memoráveis.