Despedida

Posted: 23rd abril 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV

 

Folha de S.Paulo – Ilustrada
22 de abril de 2013

por Vanessa Barbara

Aquele momento em que acaba a luz no meio da novela e todos ficam no escuro, sem ter o que fazer; alguém vai procurar uma lanterna e outro acende uma vela para iluminar não se sabe o quê.404736_449313005163306_1787845195_n

É o instante em que alguém abre um livro, liga o radinho de pilhas, resgata um volume de palavras cruzadas, telefona para a Eletropaulo e descobre que a luz só vai voltar lá pelas três da manhã. Os vizinhos decidem sair à rua, alguns de meias, e há quem se proponha a trazer umas cadeiras enquanto as crianças rolam no chão e comem terra.

A janta é esquentada no fogão, em banho-maria, e as novidades da rua são compartilhadas num telejornal participativo que termina com um adolescente botando fogo num bombril e girando – um espetáculo pirotécnico severamente punido pelos pais. Alguém barbudo aparece com um violão. Um tiozinho já meio bêbado começa a recitar poesia, sendo ardorosamente aplaudido quando se esquece dos versos originais e passa a inventar.

O banho é decretado opcional e a calçada já está cheia de brinquedos, cobertores, tabuleiros de xadrez, uma roda de pôquer à luz de velas, um par de patins e um pessoal que conta histórias de terror sobre um bairro sem luz que é sitiado por zumbis.

Já são onze e meia quando alguém decide ir ao banheiro e descobre que a luz voltou, sabe-se lá há quanto tempo – um segredo que decide guardar para si, pelo menos até terminar a pipoca.

 

**

 

É chegada a hora de sabotar os disjuntores e desligar a tevê puxando pela tomada: depois de 153 crônicas e quase três anos de tendinite provocada pelo constante manuseio do controle remoto, esta coluna deixa de ser publicada hoje, antes que os leitores inadvertidamente cochilem ou mudem de canal.

A partir deste domingo irei transmitir diretamente da revista sãopaulo, onde revezarei com Fabrício Corsaletti na cobertura dos principais assuntos da cidade – ou nem tão principais assim. Na verdade, um tanto quanto aleatórios.

Foi um prazer dividir este espaço com vocês, continuem enviando mensagens alvissareiras, sugestões, protestos, ameaças e ofensas em geral. Deixo aqui um agradecimento especial para Águeda Horn, a competente ilustradora deste espaço, que não reclamou nem uma vez dos assuntos mais abstratos e me desenhou com o cabelo azul.

Fiquem agora com nossa próxima atração, “Flor do Caribe”. Boa noite.

 

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Leitor de livraria

Posted: 15th abril 2013 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
15 de abril de 2013

por Vanessa Barbara

A megalivraria é a nova biblioteca. Muita gente almoça às pressas e deixa de escovar os dentes só para poder passar mais tempo lendo confortavelmente num pufe de livraria. Comprar o livro, nunca — a graça é ler um trecho por dia, pular o almoço, disputar com outros dois clientes o único volume em estoque e fazer anotações teóricas num caderninho.

O típico leitor de livraria é aquele que traz seu próprio marcador (ou pega emprestado no caixa do estabelecimento) e esconde os livros ainda não concluídos em lugares aleatórios, a fim de garantir seu paradeiro no dia seguinte. Para esse indivíduo, é muito difícil lidar com a realidade de que o seu livro pode ser vendido de repente, antes que ele chegue ao final, e ainda por cima para alguém que não pretende lê-lo. Ou que não vai lhe dar o devido valor. Por isso, o leitor inveterado recorre a associações mnemônicas a fim de recordar onde deixou o tomo dois de Guerra e paz: na estante de viagens, atrás do guia da Coreia (nota mental: parei na página 234). As benevolentes, de Jonathan Littell, pode ser oculto na área de estudos religiosos. Já a edição comentada de Alice no País das Maravilhas ficaria na seção de moda, ao lado de um livro sobre chapéus. Ou na de literatura brasileira, junto a um romance do Paulo Coelho. (Advertência: a associação com o Chapeleiro Maluco e o Coelho Branco é um tanto manjada e pode ser de fácil decodificação para os vendedores mais calejados.)

A livraria é mais agradável do que a biblioteca por conter uma miríade de poltronas, cadeiras e almofadões com níveis variados de comodidade — muitos leitores caem no sono e são acordados no fim do expediente por um funcionário fechando a loja. Há quem diga que encontrou a cura da insônia na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, outros preferem um lugar mais intimista como a Livraria da Vila para pegar no sono lendo contos de fadas. A Saraiva Mega Store do Shopping Center Norte é recomendada para quem deseja comentar passagens de livros com desconhecidos.

As livrarias possuem os últimos lançamentos e todas as obras têm cheiro de novas. Além disso, nas lojas não é preciso deixar a bolsa no guarda-volumes e é muito difícil levar bronca, ao contrário do que acontece nas bibliotecas. Nenhum funcionário segue o leitor perguntando incessantemente o que ele está procurando, nem há proibição expressa de vasculhar livros por conta própria, vagando pelas prateleiras e tirando volumes do lugar. Isso, como todos sabem, é severamente punido nas bibliotecas públicas, onde o que menos se aprecia é a existência de leitores.

A habilidade do leitor de livraria é a de ler sem deixar vestígios, sem machucar as páginas ou provocar dobras desagradáveis. Ele às vezes leva um laptop para fazer anotações enquanto avança e para pesquisar o significado das palavras, caso esteja com preguiça de ir à seção de dicionários. Ri em voz alta e pede silêncio se alguém está conversando nas proximidades. Quando devora um thriller policial e está nas últimas páginas — o detetive prestes a desvendar o culpado —, pode se incomodar com a interrupção de um vendedor pedindo licença para mostrar o título a um cliente interessado. “Só um segundo”, diz, correndo a página com os olhos. “Eu sabia! Desde o começo!” e, levantando-se: “Você precisa ler isto aqui. É muito bom”. Entrega o volume nas mãos do funcionário, agradecendo e dando boa tarde a todos. No dia seguinte, volta para pedir indicações de títulos policiais naquela mesma linha.

Há quem afirme ter lido nessas condições todos os sete volumes de “As crônicas de gelo e fogo”, de George R. R. Martin (o primeiro tomo está na seção de literatura infantil, perto de um conhecido clássico da Companhia das Letrinhas) e Caninos brancos, de Jack London (na estante de livros técnicos, atrás de Onze técnicas avançadas para clareamento dental). No mesmo setor se encontra O deserto dos tártaros, de Dino Buzatti, e a biografia de Tiradentes, ambos na diagonal, bem no fundo da estante.

Os banheiros desses estabelecimentos também costumam ser melhores do que os de bibliotecas, mas infelizmente não é possível levar um livro para acompanhá-lo lá dentro — há detectores na entrada.

Nas megalivrarias também há cafés, de modo que o leitor mais folgado pode apreciar um bolo de morango com suco enquanto se dedica à fruição de algo que não vai comprar. Vez ou outra há distribuição gratuita de champanhe, vinho e amendoim nos vernissages de lançamento, o que pode ser um incentivo a mais para ler a obra da noite, tirando dúvidas in loco com o autor. Ou para pedir emprestada uma das cadeiras do anfitrião (“Eu não vou incomodar, só estou aqui terminando o capítulo”), lançando assim a moda das noites de autógrafo com um autor e um leitor, numa espécie de showroom do produto.

Duas regras de etiqueta para o leitor de livraria: levar a própria garrafa térmica de casa não é recomendado, tampouco fica bem tirar os sapatos para maior conforto.


ps 1. Leitura recomendada: “Leitor de livraria”, no Blog do Paulo Velho, que serviu de inspiração para este post.

ps 2. A autora gostaria de pedir as mais sinceras desculpas ao Pedro Herz, da Livraria Cultura, pelos eventuais transtornos causados.

Folha de S.Paulo – Ilustrada
15 de abril de 2013

por Vanessa Barbara

Começou com uma sátira ao restaurante Spoleto, no qual os clientes precisam escolher oito acompanhamentos para o macarrão. No vídeo, divulgado pela internet, uma moça é pressionada por um atendente neurótico, que grita: “Milho, presunto, o que mais? O que mais?”.

Apavorada, ela pede pimentão (“Ai, meu Deus, odeio pimentão”). “Ervilha, quer mais o quê? Fala!”

A moça responde, chorando: “Eu só queria almoçar”. E o atendente: “Ninguém mandou vir almoçar no inferno”.

Produzido pelo grupo humorístico “Porta dos Fundos”, o quadro fez enorme sucesso e foi adotado como propaganda da própria empresa, numa corajosa e bem-sucedida ação de marketing.

A trupe, fundada pelos comediantes Fábio Porchat, Gregório Duvivier, Antonio Tabet, Luis Lobianco e Clarice Falcão, entre outros, posta vídeos inéditos todas as segundas e quintas-feiras num canal exclusivo do YouTube.

São curtos esquetes de temática absurda e humor nonsense, com um quê de Monty Python. Os melhores trazem um sotaque carioca de classe média totalmente fora de lugar.

Em alguns dos roteiros, Moisés discute com Zaqueu e sua turma o conteúdo das tábuas da lei (“Dez Mandamentos”), uma torcida organizada acompanha uma reunião da firma (“Torcedores”), e dois guerreiros escoceses comentam a falta de quórum numa batalha. “Vou aproveitar e resolver umas coisas, tenho um perrengue ali em Camelot, mas eu volto, tá? Vai segurando aí o pessoal”.

“Assembleia Geral” aborda uma reunião de condomínio na ala 9 da penitenciária Bangu 1. Na pauta, o andamento das obras do túnel subterrâneo e sugestões de nova data para a rebelião.

Em “Trago a pessoa”, um funcionário é designado para buscar e entregar pessoas amadas em três dias. Já em “Van”, um homem conta como pretende levar a família a Miami usando milhas, sobretudo agora que a Viação Itapemirim entrou para a Star Alliance.

“Eu faço Galeão–Guarulhos, Guarulhos–Campinas, Campinas–Belém, Belém–Bogotá, Bogotá–Cidade do México, aí depois a balsa direto. Meu filho, o Luquinha, vai de Saveiro até Cuiabá, e de lá tentamos pegar carona por um site de compras coletivas.”

Ao fundo, o cobrador do lotação grita: “Belém, Bogotá, Miami, via Rezende”.

Bem distantes do humor forçado da televisão, a turma da Porta dos Fundos promete aos fãs um mundo “repleto de fantasia, diversão, aventura e possíveis processos cíveis e criminais”.

Yada Yada Yada

Posted: 8th abril 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
8 de abril de 2013

por Vanessa Barbara

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Águeda Horn

Uma das características mais curiosas da memória é quando ela teima em reter coisas que não são nossas e nem sequer são relevantes.

Por exemplo, toda vez que eu vejo alguém fritando bolinhos me lembro de uma história absolutamente sem graça que aconteceu com uma amiga: alguns acepipes explodiram na frigideira e ganharam o apelido de “bolinhos Bin Laden”. Não tem importância e nem foi comigo, mas me recordo com nitidez.

Há uns anos, eu e minha mãe evocamos um episódio pitoresco e ficamos dias tentando descobrir quem era o protagonista da história – Eu? Ela? Então percebemos que aquilo estava num livro e acontecera com o Sting.

O mesmo vale para episódios de séries, cenas de novela ou bordões de personagens que compartilhamos como se tivessem acontecido conosco.

Na hora de fazer um pedido no restaurante, por exemplo, alguém pode citar “Friends” e dizer que “Joey não divide comida”. Na outra ponta da mesa, o primo de um amigo de um conhecido exclama: “Lembra quando ele tirou um garfo do bolso e começou a comer um troço do chão? E quando a Rachel fez pavê de carne porque as páginas do livro estavam grudadas?”.

De longe, pode parecer que estamos falando de algo que ocorreu com o grupo.

A memória compartilhada da televisão pode aproximar desconhecidos e afastar bons amigos que não conhecem “Seinfeld” e não entendem por que estes pretzels estão me dando sede. Quando alguém pergunta o que vamos fazer hoje, provavelmente será “o que fazemos todas as noites, Pinky: tentar dominar o mundo”. Quem ignora o desenho “Animaniacs” vai ficar boiando. 

Um jantar pessimamente executado logo é rebatido com a frase: “Amigo, junte suas facas e vá embora”, como no reality show de culinária “Top Chef”. Se algo estranho acontece, a música-tema de “Arquivo-X” é entoada em coro. Em caso de gripe, a sugestão é sempre uma punção lombar. E o diagnóstico, lúpus. Como em “House”.

Às vezes a citação cai no vazio: “Justamente quando pensei que tinha escapado, eles me puxaram de volta”, imita alguém, e é preciso explicar que se trata de uma menção a “Família Soprano”, que por sua vez tirou as palavras de Michael Corleone.

Há até quem conte uma história como se fosse sua, confundindo detalhes e descartando a fonte até que alguém diga: “Isso não aconteceu com o seu primo em Jaguariúna, cara. Foi com o Bob Esponja e um molusco que luta caratê”. 

Sinistros

Posted: 2nd abril 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
1 de abril de 2013

por Vanessa Barbara

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Num típico programa do canal Investigação Discovery, que estreou em julho, um assassinato hediondo ocorre numa cidadezinha de Ohio, Oregon ou Colorado. A comunidade fica chocada e dois homens são detidos, ex-presidiários em passagem pela região.

Os investigadores falham em colher evidências na cena do crime e não conseguem extrair uma confissão. Dias depois, os suspeitos apresentam um álibi e são liberados.

Durante uma quermesse, a polícia se depara com uma nova pista. Mal podem esperar pelas novas revelações que viriam, deslindando uma seita de rituais satânicos conduzida pelos próprios familiares da vítima.

Fim do primeiro bloco. Segue-se uma série de comerciais sobre programas da emissora: “Índice da Maldade”, “Sinistros”, “O Diabo a Seu Lado”, “Encontros Perigosos”, “Vizinho Assassino”, “A Sangue Frio”. Um anúncio convida os espectadores a participarem da comunidade do canal no Facebook, na qual um anônimo escreve: “Meu primo poderia ser um serial killer”.

Após o intervalo, o caso é retomado e se divulga a tal evidência, algo provavelmente encontrado antes e que só figura nesse momento para fins de suspense: a vítima frequentava um grupo gótico que se reunia no cemitério. Faz-se a reconstituição teatral de uma discussão ocorrida dias antes do crime.

Apesar dos novos rumos da investigação, os detetives não encontram um fio condutor que possa levar à violenta abreviação da vida de Tiffany, mas estão prestes a descobrir algo que mudaria para sempre o vilarejo de Yellow River.

Fim do segundo bloco. No intervalo são exibidos vídeos curtos e chocantes de pessoas se salvando por um triz de ocorrências alarmantes.

O decorrer do caso é detalhado mais uma vez, há nova leva de depoimentos chorosos com música dramática de fundo e uma evidência atordoante: manchas de sangue no cemitério. Sangue de cabrito – assim se encerra o terceiro bloco.

Cinco ou seis comerciais depois, o desfecho: os primos de Tiffany confessam ter matado a jovem num sacrifício ritualístico que envolvia caprinos; seguem-se o julgamento, a condenação e a prisão de membros da seita.

Cenas do coreto de Yellow River, jovens brincando, frases de efeito sobre cidades pacatas onde coisas terríveis podem acontecer. Fim do programa.

Vejam a seguir: uma prostituta lésbica que atraía os clientes para áreas afastadas e os alvejava à queima-roupa, em “Dementes”. 

As coisas que restam

Posted: 27th março 2013 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
27 de março de 2013

por Vanessa Barbara

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Aprender uma coreografia nova de sapateado que envolva pausas dramáticas e movimentos excêntricos com o calcanhar; passar a noite comendo sequilhos; ir ao cinema ver o mesmo filme pela quinta vez só para decorar as falas da voz em off; pesquisar sobre rastros de lesmas e recitar as informações obtidas para um desconhecido numa festa barulhenta; andar na rua como se fosse um enviado secreto do governo da Rússia, um pirata ou um viajante no tempo.

Às vezes perdemos coisas importantes na vida e um conjunto de lápis de cor é o que nos resta; a decisão de pintar as janelas; de nos concentrarmos em campeonatos de mímica; de bater coisas no liquidificador e olhar debaixo da cama só para ver se tem gente. Pessoas vão embora e, na partilha extrajudicial, ficamos com os restos.

O que geralmente nos resta é cantar músicas com os olhos fechados, chacoalhando a cabeça feito um Ray Charles; comprar o próprio peso em palavras cruzadas; praticar o pingue-pongue com estranhos num domingo à tarde e competir como se a vida dependesse disso. Resta é cuidar das plantas, cultivar tomates e manter na sala uma bola gigante de plástico; passar a noite no telhado examinando o céu e aguardando impacientemente a explosão da Eta Carinae; arrumar as gavetas; jogar fora coisas importantes; contar piadas ruins e aprender uma língua morta.

São coisas que nos salvam quando nada mais parece existir: ler um romance russo numa única madrugada e se afeiçoar ao mocinho; consertar um relógio de ponteiros; escrever uma carta; fingir que acabou a luz. Levar um tombo de bicicleta e se ralar inteiro; conversar com estátuas; convidar alguém para tomar chá com sucrilhos.

Resta girar muito rápido enquanto se dança e perder o equilíbrio; espirrar e perder o equilíbrio; dar risada e perder o equilíbrio; viver tropeçando; ter uma crise de soluços. Repetir o swing out até ficar com enjoo; fazer a segunda voz das músicas; fingir que a vida é um musical da Broadway e conversar com o taxista cantando; tomar sol com as tartarugas; vestir uma roupa excêntrica; atualizar as vacinas; correr para pegar o ônibus.

São coisas que nos restam: o vazio, a raiva e a tristeza, mas também os chinelos de pano, as pessoas que tocam tuba, as luzes coloridas, o sorvete de manga e os velhinhos ao sol. Restam-nos as noites de rockabilly, as crianças vestidas de Batman, as piscinas aquecidas, os amigos de infância e o centro histórico de Macau − isso sem falar numa barraca de rua que só vende pijamas de flanela.

Restam, enfim, o amarelo, o azul e o umami, os filmes tolos dos anos 40, as Olimpíadas, o vento, o suco de maçã. Amigos que gostam de mágica, astronomia, pôquer, carpintaria, triatlo, futebol americano e que estão sempre para operar o joelho. As lojas de R$1,99, os jardins, os telescópios e as viagens com escala em Dubai. Sair para comprar couve. Escolher um novo abajur.

O que, veja bem, não é pouco.

Con los terroristas

Posted: 25th março 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
25 de março de 2013

por Vanessa Barbara

Às vezes, ao ligar a televisão, me dá vontade de ceder a um gratuito, incongruente e revoltado “Harlem Shake”.

Explico: no mais recente meme da internet, um grupo de pessoas se reúne diante das câmeras. A primeira cena mostra um sujeito absolutamente sozinho, com um capacete ou uma cabeça de cavalo, dançando loucamente ao som da música eletrônica “Harlem Shake”, do DJ americano Baauer.

Ao redor, pessoas executam suas tarefas cotidianas sem fazer caso, como se nada estivesse acontecendo: trabalham no computador, jogam videogame, conversam ou leem. O homem dança sozinho durante uns 15 segundos. A cena é surreal, porém não mais bizarra do que o que vem a seguir: corte rápido.

Na tomada seguinte, o lugar é o mesmo, mas desta vez todos entraram no surto de loucura convulsiva – há sempre alguém dançando de ponta-cabeça, outro sem as calças, alguém rastejando, virado para a parede ou metido em fantasias bizarras.

O meme teve início em 2 de fevereiro, quando um grupo de jovens australianos postou o vídeo no YouTube, gerando imitações imediatas por todo o mundo. Em duas das melhores, um sujeito com cabeça de urso lidera o Harlem Shake numa reunião da empresa e uma divisão do exército norueguês perde a razão ao som da música.

Neste último, há um soldado dançando com esquis nos pés, outro rastejando dentro de um saco de dormir, um completamente pintado de azul, outro de cuecas.

Há sempre ligação com um ambiente sisudo e entediante que, no fim, é completamente subvertido pelos participantes.

Muita gente afirma que a internet virou um repositório de tolices sem propósito, engajamento ou utilidade. Pessoas se reúnem para reproduzir um vídeo irrelevante, gastam tempo e energia para se dedicar a bobagens. É verdade. Mas não me parece um problema.

É que a vida em si lembra o “Harlem Shake”: há sempre alguém que entendeu tudo e está dançando sozinho, sem se importar.

E vou além. No fundo, o homem com cabeça de cavalo não entendeu nada, e é isso o que nos diz a segunda parte do “Harlem Shake”: a vida provavelmente não faz sentido. Você dança mal e não sabe por que vestiu uma fantasia aleatória de borracha cinza. Sua coreografia particular não está nem sequer dentro do ritmo.

Mas você continua sacolejando porque é divertido e porque não tem nada melhor do que isso passando na tevê.

Sigam aquele inhame

Posted: 19th março 2013 by Vanessa Barbara in Crônicas, Folha de S. Paulo, TV
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Folha de S.Paulo – Ilustrada
19 de fevereiro de 2013

por Vanessa Barbara

Nunca tinha visto “Community” (Sony, quartas às 17h30 e sábados às 14h30) até ser atraída pelo episódio “Basic Lupine Urology”, eleito o melhor capítulo de comédia de 2012 pelo site TVLine.

A série aborda um grupo de adultos desajustados numa faculdade comunitária na cidade de Glendale, Colorado. Uma das peculiaridades da atração é o uso de metalinguagem em paródias cinematográficas e televisivas, e o episódio acima é um belo exemplo.

O capítulo segue os clichês de séries policiais na investigação do assassinato de um inhame, experimento de biologia que foi covardemente arremessado e pisoteado.

A cena do crime é lacrada e uma das alunas, fã de histórias policiais, destaca dois colegas para a investigação: “Encontrem testemunhas, estabeleçam a hora da morte, descubram o motivo e me tragam um suspeito. Vocês têm 48 horas antes que a trilha esfrie. Comecem pela última pessoa a ver o inhame vivo”.

Troy e Abed passam a agir como uma dupla de detetives durões. Munidos de frases de efeito, invadem um asilo para interrogar o velhinho responsável por regar a planta, que, pressionado, confessa que não chegou a fazê-lo. Seu álibi, considerado plausível pelos investigadores: “Adormeci tomando um solzinho”.

No laboratório, uma mulher faz a autópsia do legume e diz que “o cilindro vascular foi totalmente desintegrado”. Abed pergunta: “Alguma possibilidade de ter sido natural?”, e ela ri: “Para um inhame ficar assim, é preciso mais do que gravidade. Precisa de uma bota”.

Por trás do vidro de um aquário, na sala de interrogatório, o aluno designado para ser o “tira mau” perde o controle e brada: “Não faz sentido! Ketchup é um condimento!”, dando um soco na parede.

Na sequência, há uma perseguição em que ambos gritam: “Saiam da frente! Não somos policiais!”.

O episódio é bem encadeado e cheio de reviravoltas. Na hora de deter um suspeito, os policiais recitam: “Todd, você tem o direito de fazer o que quiser. Nada do que disser ou fizer poderá ser usado contra você, mas realmente gostaríamos que viesse, por favor e obrigado”.

Naturalmente, há um julgamento, quando os policiais afirmam que concordaram em omitir uma informação por motivos de “promessa do mindinho”.

O episódio tem cortes ousados, diálogos divertidos e cenas excêntricas. Será exibido na próxima quarta-feira, no canal Sony. 

Revisionismo etário

Posted: 18th março 2013 by Vanessa Barbara in Blog da Cia. das Letras, Crônicas
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Blog da Companhia das Letras
18 de março de 2013

por Vanessa Barbara

Foi minha mãe quem me ensinou a ler. Não só as palavras, as sílabas e os adjuntos adnominais, que aprendi fazendo a lição de casa do meu folgado irmão (provavelmente em troca de um amendoim que ele pegou do chão), mas a lidar com os livros e a tratá-los com carinho.

Quando eu era pequena, ela abria volumes enormes de capa dura, com ilustrações de ciclopes e sereias, e lia em voz alta os mais antiquados contos de fada. Desses que continham afogamento de bebês, decepamento de membros e pássaros arrancando os olhos de princesas.

Às vezes lia o que tivesse em mãos no momento: me lembro de um volume com capa de papelão sobre arqueologia bíblica que passamos semanas desvendando. E a série de aventuras de dom Camillo, do escritor italiano Giovanni Guareschi, que ela contava com voz macia imitando gestos e entonações, enquanto descobria ela mesma a trama ao virar as páginas.

Decifrava histórias infantis, gibis e romances adultos usando o mesmo ritual: sentada na cabeceira da cama, esticava as pernas, abria o livro no colo, limpava a garganta e começava. Percorria os parágrafos com os dedos. Às vezes se detinha numa passagem, correndo rapidamente os olhos, e por fim repetia os gestos do personagem: “Ele limpou o ombro esquerdo disfarçadamente, depois o direito com a escovinha, então coçou a testa e tocou a barriga. Entendeu? Fez o sinal da cruz sem ninguém perceber”.

Mais tarde, contou que às vezes mudava as histórias. Preocupada com alguma passagem forte demais para uma menina altamente impressionável, a revisionista de plantão abrandava diálogos, amolecia vilões e promovia o distanciamento brechtiano das tramas mais assustadoras. “É só um moço fantasiado de monstro”, ela ponderava. Os contos de fada dos irmãos Grimm, por exemplo, ganhavam novo final. Na história do menino teimoso, em vez de fazê-lo adoecer, morrer e sair com a mãozinha pra fora da cova, o que, convenhamos, é francamente grotesco, a narradora inventava algo sobre um tatu-bola amigável e um final feliz. Não sei como ela fazia com Olhinho, Doisolhinhos e Trêsolhinhos, trigêmeas briguentas que realmente possuíam a quantidade de globos oculares que apregoavam, mas sei que Cachinhos Dourados devia pedir “por favor” para tomar a sopa dos ursos e o Lobo Mau revelava ter escondido a vovozinha debaixo da cama.

Conforme fui crescendo, o revisionismo protecionista perdeu a força e passei a ler por conta própria histórias sangrentas da Agatha Christie ou do Stephen King, gerando pesadelos óbvios. 

Ainda assim, qualquer livro que minha mãe estivesse lendo e julgasse interessante continuava a ser contemplado com leituras de trechos, ou mesmo um resumo do enredo. Passei eu também a destacar cenas que me chamavam a atenção, apontando com o dedo e as repetindo em voz alta. Aprendi a abrir o livro no colo com reverência, virar as páginas e alisá-las como se estivesse preparando o texto para um evento de gala.

Hoje em dia, meu sobrinho de 3 anos pede que a avó lhe conte histórias de livros infantis, gibis e catálogos de lojas. Vê-se que ela não perdeu o jeito: continua exímia adaptadora de enredos conforme a idade e o grau de atenção da criança, resumindo, reinterpretando e trazendo para perto da realidade as tramas mais aleatórias. A movimentada aventura urbana que inventou a partir de um folheto de supermercado já é lendária entre as crianças locais. Continua imitando as vozes dos personagens e, tal qual um empresário do entretenimento, faz sondagens periódicas da reação da audiência, que pode se ressentir de uma trama sem cachorros de chapéu e ir embora, decepcionada. (O que já aconteceu.)

O público anda cada vez mais exigente. 

Cadernos Expedicionários – Pijamas de flanela

Posted: 11th março 2013 by Vanessa Barbara in Cadernos Expedicionários
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