The New York Times
5 de julho de 2021
by Vanessa Barbara
Contributing Opinion Writer
SÃO PAULO, Brasil — Hidroxicloroquina não é eficaz contra Covid-19. Não. Definitivamente não. Mas os brasileiros ainda não têm certeza. Afinal de contas, outro dia mesmo o primo de um amigo repassou uma notícia no WhatsApp dizendo que todos os leitos de U.T.I. da cidade de Miracatu estão vazios porque o prefeito adotou o “tratamento precoce” do presidente Jair Bolsonaro contra a Covid-19 – que consiste em hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina. Ok, é verdade que Miracatu não tem nenhum hospital. Mas ainda assim: como é que nós podemos ter certeza?
Essa é só uma entre as dezenas de notícias falsassobre tratamentos para Covid-19 que circulam nas mídias sociais do país — incluindo uma que defende a nebulização com hidroxicloroquina, a nova obsessão de Bolsonaro. Mais de um ano após o início da pandemia, as fake news ainda proliferam. É verdade que as máscaras reduzem o fluxo de oxigênio para os pulmões e podem causar câncer? Seria o novo coronavírus uma arma biológica desenvolvida pela China? E quanto ao envolvimento de Bill Gates, Mark Zuckerberg e George Soros? (Os checadores andam bastante ocupados.)
Mesmo hoje, depois da morte de meio milhão de cidadãos, os brasileiros continuam repassando alegações de que os hospitais estão vazios e pessoas estão sendo enterradas vivas para inflar as estatísticas do coronavírus. Ano passado, enquanto as mortes diárias disparavam, houve uma abundância de notícias falsas sobre caixões vazios e enterros simulados. É quase como se os brasileiros não conseguissem — ou não quisessem — aceitar que as coisas possam mesmo estar tão ruins e procurassem refúgio na paranoia, na desconfiança e na conspiração. Nisso, é claro, eles têm um mentor: a cada passo que deu, Bolsonaro procurou espalhar maldades e desinformação.
Talvez isso pareça familiar. Afinal de contas, as fake news e o negacionismo da Covid não seriam problemas globais? Mas há algo de especial no Brasil. Um grupo interdisciplinar de pesquisadores brasileiros descobriu que o país não só tem um dos maiores índices de notícias falsas do mundo — apenas a Índia e os Estados Unidos ostentam um número maior — como também a desinformação no Brasil está nitidamente isolada dos demais países. Isso pode representar, conforme a conclusão dos pesquisadores, “uma forte evidência de que o país está se distanciando do debate científico corrente.”
Parece correto. No Brasil, certas mentiras prevaleceram sobre o senso comum, e não há nada que possamos fazer a respeito. Por exemplo: sempre que você entra em um supermercado, em uma loja ou até em um consultório médico, alguém irá medir sua temperatura com um termômetro de testa — mas irá apontar para o seu pulso. Trata-se da vitória acachapante de uma notícia falsa que dizia que os termômetros infravermelhos podem causar danos na glândula pineal.
Se isso é política oficial, imagine o que acontece dentro de casa. Logo no começo da pandemia, meu pai compartilhou um vídeo de maneira hesitante — “será que é verdade?” — que dizia que o vinagre era melhor do que o álcool gel para combater o vírus. (Pensei que pelo menos assim seríamos capazes de sentir o cheiro dos negacionistas chegando.) Outro parente jurou pela eficácia de fazer gargarejos com água salgada após frequentar eventos sociais, pois isso supostamente impediria o vírus de se alojar na boca e então descer para os pulmões. Alguns brasileiros se perguntaram se o coronavírus podia ser tratado com aspirina. Outros evitaram estourar plástico-bolha fabricado na China, dessa forma negando a si mesmos um dos grandes prazeres da vida, pois tinham medo de estar liberando ar contaminado.
Nos últimos meses, de forma até previsível, a desinformação sobre vacinas se multiplicou. Aparentemente, as vacinas podem causar dez tipos de câncer, infertilidade, doenças autoimunes, pensamentos suicidas, ataques cardíacos, reações alérgicas, cegueira e “homossexualismo”. Elas podem alterar seu código genético. Elas vêm com um microchip (ou nanorrobôs) para coletar os nossos dados biométricos. E são geralmente feitas com as células de fetos abortados. Pessoalmente eu adoro a alegação de que pessoas plenamente imunizadas podem se conectar a redes wi-fi ou parear com dispositivos bluetooth — ou que vacinas tornam as pessoas magnéticas. (A prova? Vídeos de pessoas grudando moedas nos braços.) A bem da verdade, a palavra “Covid” pode ser uma abreviatura para “Certificado Internacional de Vacinação com Inteligência Artificial.” (Não funciona em nenhum idioma.)
“É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da Terra Plana a gente vai pular”, disse a infectologista Luana Araújo durante a Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a atuação do governo na pandemia. Ela poderia estar descrevendo qualquer uma de nossas crenças bizarras. Mas se referia à persistência do nosso governo em promover drogas ineficazes para prevenir ou curar a Covid-19. E é esse o cerne do problema: quando o próprio presidente da República — com a ajuda do aparato estatal — está repetidamente propagando informações falsas sobre a pandemia, não se pode esperar que as pessoas fiquem céticas ao saber que chá de boldo é capaz de curar Covid-19 em três horas.
Na ausência de uma campanha informativa de saúde pública sobre o vírus — não há necessidade disso, segundo Bolsonaro, porque “todo mundo sabe o que está acontecendo” — muitos brasileiros se veem forçados a depender das informações tendenciosas que circulam nas mídias sociais. Isso dá um enorme poder àqueles que propagam notícias falsas.
Eu sempre escuto, por exemplo, que as vacinas e a hidroxicloroquina são basicamente iguais porque nenhuma delas possui comprovação científica. Bolsonaro chegou a repetir isso algumas vezes. Obviamente não é verdade — mas a farsa dá resultados. Uma pesquisa recente revelou que quase um em cada quatro brasileiros usou algum remédio para “tratamento precoce” contra a Covid-19, seguindo o exemplo do próprio presidente, cuja resposta diante de um teste positivo foi tomar hidroxicloroquina. Em comparação, apenas 13 por cento dos brasileiros estão completamente imunizados.
Ainda assim, há limites para os poderes de sugestão de Bolsonaro. Ele pode até fazer as pessoas acreditarem em uma cura milagrosa ou em plástico-bolha letal. Mas, a despeito de seus esforços, há um fato que ele não é capaz de apagar: o vírus tirou a vida de mais de 520 mil brasileiros.
Vanessa Barbara é a editora do sítio literário A Hortaliça, autora de dois romances e dois livros de não-ficção em português, e escritora de opinião do The New York Times. Tradução para o português da autora.
Uma versão deste artigo apareceu na edição impressa do The New York Times em 6/7/21, Section A, Page 14 com a manchete: Miracle Cures and Killer Bubble Wrap.